Um carnaval pós-secular? Novas identidades religiosas e políticas na pista
É tempo de
carnaval, pelo menos no mundo moderno com influência ocidental. Brincar de
sério, colocar entre aspas o mundo sisudo à nossa volta, o mundo dos sexos e
gêneros fechados. Tempo de fazer reversões, inversões simbólicas. Roberto da
Matta, antropólogo brasileiro, já escreveu páginas interessantes sobre a
irreverência e o poder simbólico da festa de Momo em seu clássico livro:
Carnavais, Malandros e Heróis, publicado em 1979.
O
baixo-corporal, os nus, as máscaras que, sob tempos específicos [o tempo de
Momo], aliviam o peso das identidades cotidianas, sérias, graves, que todos
assumimos no dia a dia. Mas, o que significa, nos tempos pós-seculares, a
diversão e irreverência do carnaval e na política? As coisas parecem ter se
transformado, um pouco. Por isso, enquanto estivermos aferradas a chavões,
lugares-comuns, ao uso de termos que são aplicados para explicar qualquer
fenômeno [e portanto de nada valem], não vamos entender o atual cenário, as
imbricações e impactos das novas identidades, religiosas e políticas. Não vamos
entender o poder dos atravessamentos de fronteiras. Vamos ficar presos em
fronteiras que pensamos ser naturais. Mas, o carnaval não é a festa da carne, o
festival de transgressões? E a politica não é a dimensão da seriedade e da luta
renhida por poder?
Há uma série de
reportagens da grande imprensa internacional, repercutida por nossa imprensa, e
as notícias do carnaval, demonstram isso. Uma reportagem da Folha de São Paulo,
sobre uma convenção conservadora norte-americana, pouco antes do carnaval,
mostra muito bem isso. Uma convenção conservadora que procura se livrar a pecha
da extrema direita, acusada de racista e não-americana, de odiar a constituição
dos EUA. Na convenção aludida, pessoas como uma transgênero apoiadora do porte
de armas, uma bandeira de conservadores norte-americanos e um corretor de
seguros negro que, assumindo-se conservador, mostrou-se disposta a disputar com
o liberalismo a ideia de que apenas os liberais gostam de gays, negros e
migrantes e que os conservadores os odeiam. Johnson, o corretor negro deseja
combater essa visão. (leia mais:
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/02/1862074-sob-trump-conservador-quer-rejeitar-rotulo-de-racista-e-extremista.shtml).
Li uma outra
reportagem que mostra um crescimento do apoio dos gays à Marine Le Pen,
candidata da direita francesa com um discurso xenófobo, mas ais simpático aos
direitos de minorias sexuais, ao contrário do pai de Marine. O braço-direito de
Marine Le Pen é homossexual assumido. A direita francesa católica tradicional
torceu o nariz, ou tampou, em alguns casos. (leia mais:
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/02/1862095-cresce-apoio-gay-a-nome-da-extrema-direita-na-franca.shtml)
No Brasil, vemos
o mesmo fenômeno, embora em proporções menores: gays que são simpáticos ao
provável candidato à presidente Jair Bolsonaro, um populista de direita, que
discursa fortemente contra direitos de minorias, entre elas, as sexuais.
É. Parece que o carnaval invadiu
as ruas e identidades, inverteu fronteiras, invalidou antigas classificações e
aposentou de vez velhos termos que, de tão usados, não servem mais nada, O que
significa dizer hoje que alguém é de direita e de esquerda? Dá para falar que
um gripo politico é dono de uma pauta, a dos direitos humanos e minorias? E os
liberais, de vários matizes, que tem uma longa história em defesa dos direitos
humanos? E os grupos de esquerda, que, discordando do ex-governismo de
esquerda, vivem sendo patrulhados ideologicamente?
No coração do próprio carnaval, lemos e ouvimos notícias de antigas marchinhas que não são mais bem-vindas: "Olha a cabeleira do Zezé", por exemplo. Ou ficamos sabendo de homenagens a Nossa Senhora Aparecida no desfile da escola de samba Unidos de Vila Maria, em São Paulo, autorizadas pela hierarquia, sem nudez. Segundo narrou a imprensa, emocionou o público do Anhembi, um lugar com nome indígena, tupi-guarani.
No coração do próprio carnaval, lemos e ouvimos notícias de antigas marchinhas que não são mais bem-vindas: "Olha a cabeleira do Zezé", por exemplo. Ou ficamos sabendo de homenagens a Nossa Senhora Aparecida no desfile da escola de samba Unidos de Vila Maria, em São Paulo, autorizadas pela hierarquia, sem nudez. Segundo narrou a imprensa, emocionou o público do Anhembi, um lugar com nome indígena, tupi-guarani.
Imagem do desfile da Escola de
Samba Unidos de Vila Maria,
São Paulo, 2017. |
Este ano comemoram-se 330 anos da
aparição da santa, datada de 1717. A história do resgate nas águas do rio
parece uma bela metáfora da história do Brasil. dizem que os pescadores, ao
pescar desesperados, içaram primeiro a cabeça da santa e depois de muita
procura, o resto do corpo. O Brasil em busca de seus rumos, dividido. Pelas
redes sociais, li postes de católicos que, mesmo diante das bençãos da
hierarquia, reclamaram, sentiram saudades de antigas fronteiras, protestando
mesmo com o beneplácito da arquidiocese. Mas, nas mesmas redes sociais, outros
católicos, adoraram e elogiaram. Uns são mais católicos que outros? Não creio.
Homenagem de passistas a
padroeira do Brasil,
Vila Maria, 2017. |
Um pouco antes
do Carnaval, a mulher negra "globeleza', que em anos anteriores foi
criticada pela nudez, veio um pouco mais comportada nos comerciais, nos
"plins-plins". No Facebook, li notas de apoio, vinda de mulheres
militantes de esquerda, a nova estética da "globeleza".
Por outro lado,
em sites liberais, vi postagens de vídeos de marchinhas de carnaval que caíram
sob um interdito. Vi um vídeo, nesses mesmo sites, da música Fricote, que em
1985 foi um hit nacional, cantado por muita gente: "Negra do cabelo duro,
que não gosta de pentear". Tornou-se um pecado mortal no carnaval de hoje.
Mas, haveria uma
onde de conservadorismo na política e no carnaval? Minha hipótese é que não. E
quem diz onda conservadora não faz uma boa leitura de fenômenos impressionantes
que estão ocorrendo: ocorreu a implosão de velhos conceitos, as classificações
antigas invalidadas, multiplicaram-se os atravessamentos entre identidades, os
estandartes ou bandeiras trocaram de mãos e de grupos, acentuaram-se mudanças
de semântica [o que não era interdito, tornou-se].
Alguns irão dizer que antigas bandeiras foram instrumentalizadas, roubadas de antigos grupos que estão há mais tempo na luta. Em outras palavras, algumas bandeiras teriam se tornado instrumentos políticos nas mãos de alguns grupos sociais e políticos para suas lutas em busca do poder e, talvez, enganar as pessoas. Mas essa é uma boa leitura? Não, porque se tudo se torna instrumentalização, não se consegue explicar as mudanças de humores, transversalidades de temas, migrações de ideias. Todo grupo político luta pela apropriação do poder e a instrumentalização faz parte dessa dinâmica. O problema é que alguns grupos não enxergam questões que estão debaixo de seus narizes e insistem em discursar como se não houvessem mudanças vertiginosas em muitas identidades, em muitas dimensões sociais.
Alguns irão dizer que antigas bandeiras foram instrumentalizadas, roubadas de antigos grupos que estão há mais tempo na luta. Em outras palavras, algumas bandeiras teriam se tornado instrumentos políticos nas mãos de alguns grupos sociais e políticos para suas lutas em busca do poder e, talvez, enganar as pessoas. Mas essa é uma boa leitura? Não, porque se tudo se torna instrumentalização, não se consegue explicar as mudanças de humores, transversalidades de temas, migrações de ideias. Todo grupo político luta pela apropriação do poder e a instrumentalização faz parte dessa dinâmica. O problema é que alguns grupos não enxergam questões que estão debaixo de seus narizes e insistem em discursar como se não houvessem mudanças vertiginosas em muitas identidades, em muitas dimensões sociais.
Dá para entender esse carnaval
pós-secular com velhas ideias, velhos chavões sobre o que seria e deveria ser a
política, a identidade, a esquerda, a direita, o carnaval? Não, definitivamente,
não.
Postado há 2 hours ago por Emerson José Sena da Silveira
Fonte: http://arcanaestudosdereligiao.blogspot.com.br/
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