Função e necessidade do sofrimento
O sofrimento é um fenômeno de tal amplitude e gravidade que é extremamente delicado abordá-lo, tanto por aqueles que não experimentando alguma sensação de sofrimento o receiam e assim o descartam, quanto por aqueles que vitimados pela dor, têm como único desejo obter um apaziguamento.A dor física é, mais freqüentemente, um aviso da natureza que procura nos preservar dos excessos. Sem ela abusaríamos de nossos órgãos a ponto de os destruir antes da hora. Quando um mal perigoso penetra em nós que ocorreria se não lhe sentíssemos logo os efeitos desagradáveis? Ele avançaria pouco a pouco, nos invadindo e exauriria em nós as fontes da vida.
E mesmo quando, persistindo em desconhecer os avisos repetidos da natureza, deixamos a doença se desenvolver em nós, ela pode ser ainda um benefício se, causada por nossos abusos e vícios, nos ensinar a detestá-los e a nos corrigirmos. É preciso sofrer para se conhecer e para bem conhecer a vida. Epicteto dizia: «É uma falsa idéia pretender que a saúde é um bem e a doença um mal. Usar bem a saúde é um bem; e usar mal é um mal. Usar bem a doença é um bem; e usar mal é um mal. Tira-se o bem de tudo, mesmo da morte ».
A dor, sob suas múltiplas formas, é o remédio supremo para as imperfeições e as enfermidades da alma. Sem ela nenhuma cura seria possível. Da mesma forma que as doenças orgânicas são com freqüência o resultado de nossos excessos, as experiências morais que nos atingem são resultantes de nossas faltas passadas. Cedo ou tarde, essas faltas recaem sobre nós com suas conseqüências lógicas. É a lei da justiça e do equilíbrio moral. Saibamos aceitar os efeitos como aceitamos os remédios amargos e as operações dolorosas que devem restituir a saúde e a agilidade ao nosso corpo. Ainda mesmo que o desgosto, as humilhações e a ruína nos oprimam, suportemo-las com paciência. O trabalhador dilacera o seio da terra para fazer brotar a colheita dourada. Assim, de nossa alma dilacerada surgirá uma abundante colheita moral. Então, não é por vingança que a lei nos atinge, mas porque é bom e proveitoso sofrer.
O primeiro movimento do homem infeliz é se revoltar sob os golpes da sorte. Mas, mais tarde, quando o espírito já escalou os declives e contempla o áspero caminho percorrido, o desfilar de suas existências, é com um enternecimento alegre que recordará as provas e tribulações com ajuda das quais pode galgar os mais altos cumes.
Se nas horas de provação soubermos observar o trabalho interior, a ação misteriosa da dor em nós, em nosso eu, em nossa consciência, compreenderemos melhor sua sublime obra de educação e de aperfeiçoamento. Veremos que ela atinge sempre o ponto sensível. A mão que dirige o cinzel é a de um artista incomparável; não deixa de agir até que os ângulos de nosso caráter estejam aparados, polidos e gastos. Para isso, ela volta à carga tantas vezes quantas sejam necessárias. E por seus golpes repetidos, a arrogância e a personalidade excessiva de alguns deverão cair; a fraqueza, a apatia e a indiferença deverão desaparecer de outros; a dureza, a cólera e o furor de outros ainda. Para todos haverá diferentes procedimentos, variados ao infinito, conforme os indivíduos, mas em todos agirá com eficácia, de maneira a fazer nascer ou desenvolver a sensibilidade, a delicadeza, a bondade, a ternura e a fazer sair das dilacerações e das lágrimas qualquer qualidade desconhecida que dormia silenciosa no fundo do ser, ou aquela nobreza nova, adorno da alma, adquirida espontaneamente.
E quanto mais sobe, engrandece e se faz bela, mais a dor se espiritualiza e se torna sutil. Aos malvados são precisas provas numerosas, como a árvore precisa de muitas flores para produzir algum fruto. Mas quanto mais o ser humano se aperfeiçoa, mais os frutos da dor se tornam admiráveis nele. Às almas impolidas, mal desbastadas, incumbem os sofrimentos físicos e as dores violentas; aos egoístas e aos avaros caberão as perdas de fortuna, as negras inquietudes e os tormentos do espírito. Depois aos seres delicados, às mães, aos amantes e às esposas, as torturas escondidas e as mágoas do coração. Aos nobres pensadores e aos inspirados, a dor sutil e profunda que faz brotar o gemido sublime, o clarão do gênio!
Por muito tempo ainda, a humanidade terrestre, ignorante das leis superiores e inconsciente do porvir e do dever, terá necessidade da dor, para estimulá-la na sua vida e para transformar o que predomina nela, os instintos primitivos e grosseiros em sentimentos puros e generosos. Por muito tempo o homem deverá passar pela iniciação amarga para chegar ao conhecimento de si mesmo e de seu objetivo. Ele sonha presentemente apenas em aplicar suas faculdades e sua energia em combater o sofrimento sobre o plano físico, em aumentar o bem-estar e a riqueza e em tornar mais agradáveis as condições da vida material. Mas isso será em vão. Os sofrimentos poderão variar, se deslocar, mudar de aspecto, mas a dor persistirá enquanto o egoísmo e o interesse regerem as sociedades terrestres, o pensamento se esquivar das coisas profundas e enquanto a flor da alma não tiver desabrochado.
Todas as doutrinas econômicas e sociais serão impotentes para reformar o mundo e para aliviar os males da Humanidade, porque sua base é muito estreita e porque colocaram na vida presente unicamente a razão de existir, o objetivo de viver e de todos os nossos esforços. Para extinguir o mal social é preciso elevar a alma humana à consciência de sua função, fazê-la compreender que sua sorte depende somente dela, e que sua felicidade será sempre proporcional à extensão de seus triunfos sobre si mesma e de seu desenvolvimento em direção aos outros.
Deve-se colocar um termo às provas de seu próximo quando se o pode, ou é preciso, por respeito aos desígnios de Deus, deixá-los seguir seu curso?
Nós temos dito e repetido bastante freqüentemente que vocês estão sobre esta terra de expiação para terminar suas provas, e que tudo o que lhes chega é uma conseqüência de suas existências anteriores, o juro da dívida que vocês têm de pagar. Mas este pensamento provoca entre certas pessoas reflexões que é necessário impedir, porque poderiam ter conseqüências funestas.
Qualquer um pensa que desde o momento que se está sobre a terra para expiar, é preciso que as provas tenham seu curso. Alguns mesmo chegam até a acreditar que, não é preciso apenas nada fazer para as atenuar, mas que, ao contrário, deve-se contribuir para torná-las mais proveitosas fazendo-as mais vivas. É um grande erro. Sim, suas provas devem seguir o curso que Deus lhe traçou, mas vocês conhecem esse curso? Sabem até que ponto elas devem ir, e se seu Pai misericordioso não disse ao sofrimento de tal ou qual de seus irmãos: «Você não irá mais longe»? Sabem se a providência não os escolheu, não como um instrumento de suplício para agravar os sofrimentos do culpado, mas como o bálsamo de consolação que deve cicatrizar as chagas que sua justiça tinha aberto? Não digam então, quando virem um de seus irmãos aflito: É a justiça de Deus, é preciso que ela tenha seu curso; mas digam, ao contrário: Vejamos que meios nosso Pai misericordioso colocou em meu poder para suavizar o sofrimento de meu irmão. Vejamos se minhas consolações morais, meu apoio material, meus conselhos, não poderão ajudá-lo a transpor esta prova com mais força, paciência e resignação. Vejamos mesmo se Deus não colocou em minhas mãos o meio de fazer cessar esse sofrimento; se não me foi dado, também como prova, como expiação talvez, deter o mal e substituí-lo pela paz.
Ajudem-se então sempre nas suas provas respectivas, e não se considerem jamais como instrumentos de tortura; este pensamento deve revoltar todo homem de coração, todo espírita sobretudo; porque o espírita, melhor que qualquer outro, deve compreender a extensão infinita da bondade de Deus. O espírita deve pensar que sua vida inteira deve ser um ato de amor e de devotamento; que o quer que se possa fazer para contrariar as decisões do Senhor, sua justiça seguirá seu curso. Ele pode então, sem medo, fazer todos seus esforços para adoçar a amargura da expiação, mas é Deus somente quem poderá detê-la ou prolongá-la conforme seu julgamento a respeito.
Não seria um grande orgulho da parte do homem, se acreditar no direito de revolver, por assim dizer, a arma na ferida? De aumentar a dose de veneno no peito daquele que sofre, sob pretexto de que tal é sua expiação? Oh! considerem-se sempre como um instrumento escolhido para cessar o sofrimento. Resumamo-nos aqui: vocês estão todos sobre a Terra para expiar; mas todos, sem exceção, devem fazer todos os esforços para suavizar a expiação de seus irmãos, segundo a lei de amor e de caridade.
Por Marli de Lima Lemos
Fonte:http://www.espiritbook.com.br/forum/topic/show?id=6387740
Para saber mais:
- O Problema do ser e do destino de Léon Denis (3ª parte, cap. XXVI, A dor)
- O Problema do ser e do destino de Léon Denis (3ª parte, cap. XXVII, Revelação pela dor)
- O Evangelho segundo o Espiritismo de Allan Kardec (cap. V, Bem-aventurados os aflitos)
- Após a morte de Léon Denis (5ª parte, cap. L, Resignação na adversidade)
- O Espiritismo, que sabemos? de USFF (cap. XXVI, A quem corresponde o sofrimento)
- Espiritualismo versus a luz de Louis Serré (cap. VI, O mal, o bem, o sofrimento)
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