"Há muito pouco valor na instrução"
“A única ajuda concreta que você obteve de mim é o fato de que ataco sua auto-reflexão. Não fosse por isso, você estaria desperdiçando o seu tempo.
— Você me ensinou, Don Juan, mais do que qualquer outra pessoa em minha vida inteira — protestei.
— Ensinei-lhe todos os tipos de coisa para prender sua atenção. Você irá jurar, entretanto, que esse ensinamento foi a parte importante. Há muito pouco valor na instrução. Os feiticeiros afirmam que mover o ponto de aglutinação é tudo que importa. E esse movimento, como você bem sabe, depende de acúmulo de energia e não de instrução.
Então ele fez uma afirmação contraditória. Disse que qualquer ser humano que seguisse uma seqüência específica e simples de ações poderia aprender a mover seu ponto de aglutinação.
Retruquei que ele estava contradizendo a si mesmo. Para mim, uma seqüência de ações significa instruções; significa procedimentos.
— No mundo dos feiticeiros há apenas contradições de termos — replicou.
— Na prática não há contradições. A seqüência de ações sobre a que estou falando é uma que se origina de estar consciente. Para tornar-se consciente dessas seqüências você necessita de um nagual. É por isso que falei que o nagual proporciona uma chance mínima, mas essa chance mínima não é instrução, como a que você necessita para aprender a operar uma máquina. A chance mínima consiste em se tornar consciente do espírito.
Don Juan explicou que a seqüência específica que tinha em mente exigia estar consciente de que a auto-estima é a força que mantém o ponto de aglutinação fíxo. Quando a auto-estima é podada, a energia que requer não é mais gasta. Essa energia aumentada serve então como o trampolim que lança o ponto de aglutinação, automaticamente e sem premeditação, para uma viagem inconcebível.
Uma vez que o ponto de aglutinação se moveu, o próprio movimento implica afastar-se da auto-reflexão, e isto, por sua vez, assegura um elo de conexão limpo com o espírito. Comentou que, afinal, era a auto-reflexão que havia desconectado o homem do espírito em primeiro lugar.
— Como já lhe expliquei — continuou Don Juan —, a feitiçaria é uma viagem de retorno. Voltamos vitoriosos ao espírito, tendo descido ao inferno. E do inferno trazemos troféus. O entendimento é um de nossos troféus.
O Poder do Silêncio, de Carlos Castaneda.
Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda: Arturo Gutiérrez
Los testigos del nagual
Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda
Texto de Arturo Gutiérrez
Um duplo é o próprio bruxo, desenvolvido através de seu sonhar. Um duplo é um ato de poder para um bruxo, mas somente um conto de poder para você.
Porta para o Infinito
O único que não tem remédio é a morte. Assim recordo as palavras de meu pai. Assim recordo minha vida antes que o Espírito batesse à minha porta. Eu não sabia que existia outra opção, não sabia que existia a liberdade, a viagem definitiva.
Em uma conferência da qual tive a oportunidade de participar, Carlos disse:
“Os bruxos não morrem, se vão em consciência, levam tudo o que são e não deixam nada. Façam como Dom Juan; ele se foi de sandália e tudo.”
Em algum momento de minha vida pensei em encontrar os mistérios da vida no longínquo Tibete; como estava equivocado! Esperava incentivo de Alberto, um velho conhecido que havia estado naquele inacessível lugar; uma vez mais, esse parecia não ser meu destino; em lugar disso, e por alguma estranha razão que escapou ao meu entendimento, Alberto chamou minha atenção para Carlos Castaneda e um grupo de pessoas que o haviam conhecido. Não pude evitar. Estava enganchado. Este grupo se reunia para executar uns poderosos movimentos outrora ensinados por ele.
Agora eu sei, o Espírito havia batido à minha porta.
***
O contato começou com Martha e sua filha Sandra; ela me confessaria ter conhecido Castaneda desde pequena, a quem ela se referia como o nagual, e como este havia expressado seu desejo de ser apresentado à sua filha; esta proposta Carlos lhe havia feito em diversas ocasiões; parece que o nagual havia visto algo nela.
Eu comecei a me interessar; comecei a ler os livros de Carlos Castaneda; Sandra me incentivava muito, tanto é assim que em uma ocasião me compartilhou o sentir do nagual com respeito ao compromisso do guerreiro:
“Trabalhem e me terão batendo às portas da sua casa.”
***
Meu corpo ainda se recorda dos passes mágicos; ainda recordo o intento do grupo; anos depois os movimentos sairiam de seu hermetismo e se tornariam acessíveis ao mundo. Por Martha e Sandra conheci o grupo e Mariví; era ela que marcava a pauta a seguir com os passes mágicos; ela os havia aprendido diretamente do nagual Carlos.
Mariví nos compartilhava a sabedoria do nagual, assim como também nos deixava tarefas a executar por semana; eu a essas alturas me encontrava lendo “O Fogo Interior”, até então o penúltimo livro do nagual, meu intento estava aí, assim como também, uma vez mais, as palavras do nagual:
“Trabalhem e me terão batendo às portas da sua casa.”
***
Minha atenção de ensonho estava no profundo laranja do crepúsculo; uma longa estrada se perdia no horizonte; meu tio ia dirigindo, e somente o insistente chamado do telefone, e a voz que escutei ao atender, romperia com a aparente hipnose do momento:
“Alô, aqui fala o nagual.”
Como esquecer essa voz? Havia começado a me dirigir ao meu tio, disse a ele que tinha que vê-lo. Foi então que minha atenção se desviou para encontrar a maneira de estar com meu tio quando viesse o nagual. As únicas palavras que meu último resquício de atenção resgatou foram “Castelo” e “5 horas da tarde”.
Acordei, sentia-me surpreendido; de alguma maneira tinha a certeza de que este não havia sido um sonho comum.
Não tinha conseguido despertar completamente quando nisso me assaltou a dúvida, raciocinei que não havia maneira de vê-lo nesse mesmo dia, os únicos castelos para mim nesse momento eram os da Europa, e eu vivia na Cidade do México. Era ilógico. Não tinha a mais mínima oportunidade; certamente só havia sido um sonho, de modo que voltei a dormir.
Passaria o resto do dia inquieto por causa do estranho sonho; entretanto, qual seria minha surpresa e profunda desilusão quando, já passado o dia, tive o que agora acredito ser um genuíno e fugaz momento de sensatez ao me dar conta de que sim, havia um castelo no qual eu poderia estar às 5 da tarde: o Castelo de Chapultepec da Cidade do México.
Assim que houve oportunidade comentei meu sonho com Martha e Sandra; finquei pé no detalhe que mais havia chamado minha atenção e havia ficado profundamente impregnado em minha memória: a voz.
Uma parte de mim queria considerar impossível a possibilidade do contato com o nagual; no entanto, o mais curioso foi que tanto Martha quanto Sandra me disseram que a descrição da voz que eu escutei coincidia com o timbre que caracterizava o nagual Carlos.
Por fim, quando conheci pessoalmente o nagual pude corroborar que ele era o mesmo que me visitou em inumeráveis ocasiões em meu sonho.
***
Se alguma vez a magia e o Espírito bateram à minha porta foi aquele dia. Entretanto, nessa ocasião, a razão impôs suas leis e ganhou a batalha. Hoje, mais de dez anos depois, sinto que de alguma maneira reuni o poder para conectar-me com o mundo do nagual, mas não o suficiente para resistir aos implacáveis embates da razão e atender ao que, agora creio, era um encontro de poder; um encontro com o Espírito.
Uma semana mais de intento, mais relatos e mais passes mágicos. Uma nova faceta do trabalho estava na alimentação; segui certos conselhos que Mariví havia recebido do nagual; finalmente havia um princípio a seguir para poder aspirar às verdadeiras possibilidades do caminho do guerreiro:
Limpa-se o corpo, limpa-se o vínculo com o intento.
***
Recordo que íamos caminhando com um pequeno grupo de pessoas; estávamos com o nagual e o seguíamos. Caminhávamos pelo bosque, até que chegamos à borda de um precipício.
Depois de um momento, chegou a ocasião de saltar; recebemos instruções do nagual com respeito a mover o ponto de encaixe (manipular a atenção e percepção) no sonho. Só lembro de me haver lançado ao abismo e sentir o vazio de ir caindo, toda a minha energia e atenção estavam em manipular minha percepção à vontade e evitar chegar ao fundo do abismo.
Finalmente só recordo obscuridade, após o que recordo haver perdido velocidade na queda até um ponto em que descia suave e estavelmente, cada vez mais devagar, até que finalmente toquei a terra; estava em um novo lugar, e não estava sozinho; parece que havíamos mudado de realidade, havíamos mudado de sonho dentro do sonho.
O último relato que Sandra me deixou foi talvez sem grande significado, mas que sem dúvida teve o suficiente poder para deixar uma profunda marca em minha memória: o penetrante olhar do nagual; o olhar de uns olhos que na verdade diziam ter testemunhado mundos impossíveis de nomear.
***
Estava no bosque, era de dia, e o nagual estava comigo; lembro das sombras das árvores, os troncos e sua folhagem projetados sobre o solo; o contraste entre a luz do sol e as sombras era muito marcante, algo que chamaria a atenção de qualquer um.
Nunca esquecerei essas sombras, assim como tampouco esquecerei como o nagual começou a dizer que fixasse minha atenção nelas; assim o fiz. Nisso aconteceu algo completamente inesperado, as sombras começaram a oscilar de um lado para outro!
“Não perca de vista as sombras”, exigiu, “não perca a atenção!”
Comecei a perder o controle.
“Fixe sua atenção!”, insistiu.
Eu as estava perdendo, havia um extremo sentido de urgência no nagual para que mantivesse essa percepção.
Eu não estava conseguindo executar a simples, mas aparentemente importante manobra perceptiva que o nagual me estava pedindo. Não tive a energia nem o poder suficiente; o nagual se impacientou, e já desesperado me disse que o esquecesse, que esquecesse tudo, que se não conseguia fixar minha atenção que o esquecesse.
Pedi-lhe paciência, disse-lhe que ele poderia entender, que Dom Juan devia ter tido paciência com ele no princípio também. Aparentemente, não foi suficiente meu questionamento.
Naquele momento já havia perdido a atenção. Havia perdido a batalha.
***
Continuei envolvido com a mesma intensidade no caminho do guerreiro, continuei trabalhando sem cessar, no entanto, não importa o que fizesse, o nagual Carlos nunca mais voltou a aparecer em meus sonhos.
O grupo estava por se dissolver. A partir desse momento, a luta seria solitária. Entretanto, houve um último relato que conseguiu sobreviver: a morte de “La Gorda”, guerreira impecável, aprendiz de Dom Juan. Havia decidido separar-se do grupo do nagual Carlos. Havia intentado levar todo o seu corpo para o outro mundo; sofreu uma embolia após o esforço. “La Gorda” havia tido um ataque de egomania antes do intento, diante do que Martha fez um sincero questionamento:
“Se ‘La Gorda’ sucumbiu à importância pessoal e morreu, o que pode nos esperar?”
***
Finalmente, um dia, anos depois, voltaria a saber do nagual Carlos. Fui convidado a uma conferência que daria em um teatro do centro da Cidade do México.
São muitas as coisas de que falou nessa ocasião, mas foram dois os aspectos que mais chamaram minha atenção:
1) a extraordinária vitalidade do nagual;
2) a ênfase que colocou em uma situação que nunca plasmaria em seus livros:
Dom Juan, ao partir com seu grupo, havia ficado preso na segunda atenção; a falta de abstração do grupo o havia puxado, e não lhes havia permitido consolidar a viagem definitiva.
Carlos expressou seu profundo desejo de ajudar Dom Juan quando fosse a sua vez de partir. Um dos presentes lhe perguntou se podíamos ajudar Dom Juan, ao que Carlos respondeu:
“Primeiro ajudem-se vocês, salvem-se vocês.”
Como esquecer esse dia? Um belo dia, soube por uma pessoa de uma notícia impossível de ignorar. Disseram-me que a haviam tirado das notícias e do jornal, busquei e só o que encontrei foi um inevitável sentimento de desconcerto:
O famoso e renomado escritor Carlos Castaneda morreu em 27 de abril de 1998 em estranhas circunstâncias.
Imediatamente, busquei refúgio em uma explicação com sentido; quis esclarecer se havia ido em consciência, se havia podido partir na viagem definitiva, ao que me disseram que não, que realmente havia morrido. A partir daqui não posso dizer mais; um profundo e arrasador sentimento inundou todo o meu ser.
Uma noite, tempos depois de meu último sonho com o nagual Carlos, decidi continuar com meu intento. Nessa noite, terminei de executar os passes mágicos, recapitulei e me dispus a dormir.
***
Estava no deserto, sozinho, era uma espécie de chaparral, parecia ser de noite; de repente percebi que em frente a mim se encontrava uma figura sentada com as pernas cruzadas, a uns cinco metros; por sua forma de vestir parecia um índio e usava um sombrero, não dava para ver seu rosto porque tinha a cabeça baixa, mas quando a levantou recebi um enorme impacto, não havia rosto algum!
Só a escuridão ocupava o espaço onde supostamente devia haver um rosto, enquanto todo o resto era visível de maneira normal; parecia que não queria ser reconhecido.
Tinha esta cena à minha frente quando nisso escutei como se dirigiu a mim:
“Eu sou o ser que o mundo conheceu como Dom Juan.”
Apenas me havia dado conta disso quando ele levantou seu braço direito e o estendeu até mim como se fosse elástico, aproximou-se tanto que sua mão ficou a cerca de um metro, mostrando-me o dorso desta com os dedos esticados; foi nesse instante que minha atenção se fixou em pequenas plantas e ervas que trazia em sua mão, como se as houvesse distribuído entre seus cinco dedos.
Em seguida começou a me dizer o seguinte:
“Esta planta serve para isso, esta para aquilo, esta para isso, esta para aquilo, e esta para isso.”
Havia me indicado e apontado com a outra mão as plantas e ervas conforme falava delas. Depois continuou dizendo:
“Tudo isso é o que no mundo ocidental equivale e se conhece como a estrela de cinco pontas.”
Isso foi tudo. A partir dessas enigmáticas palavras minha atenção começaria a minguar até perder-se completamente no reino da inconsciência.
Acordei completamente sobressaltado, sem dúvida podia ter sido outro produto de meu inconsciente; entretanto, havia um detalhe: a informação parecia ser muito específica, e eu até aquele momento de minha vida não tinha conhecimento algum do que era a estrela de cinco pontas. Nesse mesmo dia e o mais rápido que pude decidi averiguar o que pudesse acerca de, até aquele momento, tão misterioso símbolo.
Após a busca pude encontrar algo, um folheto explicativo do pentagrama, mas qual não seria minha surpresa quando li que o pentagrama é conhecido como a estrela de cinco pontas, e que seu significado é o homem auto-realizado, assim como o domínio do homem sobre as forças da natureza!
***
O segredo de um guerreiro é que ele crê sem crer. Mas obviamente um guerreiro não pode só dizer que crê e deixar assim. Isso seria muito fácil. Somente crer o exoneraria de examinar sua situação. Um guerreiro, quando tem que envolver-se com o crer, o faz como uma escolha, como uma expressão de sua mais íntima predileção. Um guerreiro não crê, um guerreiro tem que crer.
Porta para o Infinito
Hoje, mais de dez anos depois, tenho que crer que o nagual Carlos e Dom Juan mantiveram a consciência de si ao partir. Hoje, mais de dez anos depois, tenho que crer que algo extraordinário me sucedeu.
Se alguma vez minha vida se modificou, foi naquela época. Se alguma vez a magia e o Espírito bateram à minha porta, foi naqueles dias. Assim que hoje, anos depois, só posso intentar unir-me em Espírito à idéia e ao propósito que o nagual Carlos e seu grupo compartilhavam:
Explicar o mundo que Dom Juan nos fez herdar é nossa expressão final de gratidão para com ele, e de nosso propósito de continuar buscando o que ele buscava: a Liberdade.
***
Você está em um ponto terrível. É tarde demais para se retirar, mas cedo demais para agir. Tudo o que pode fazer é testemunhar. Está na miserável posição de uma criatura que não pode regressar ao ventre da mãe, mas tampouco pode sair e agir. Tudo o que uma criatura pode fazer é testemunhar e escutar os estupendos relatos de ação que lhe contam. Você está agora nesse ponto preciso. Não pode regressar ao ventre de seu velho mundo, mas tampouco pode agir com poder. Para você só há testemunhar atos de poder e escutar contos, contos de poder.
Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda
Texto de Arturo Gutiérrez
Um duplo é o próprio bruxo, desenvolvido através de seu sonhar. Um duplo é um ato de poder para um bruxo, mas somente um conto de poder para você.
Porta para o Infinito
O único que não tem remédio é a morte. Assim recordo as palavras de meu pai. Assim recordo minha vida antes que o Espírito batesse à minha porta. Eu não sabia que existia outra opção, não sabia que existia a liberdade, a viagem definitiva.
Em uma conferência da qual tive a oportunidade de participar, Carlos disse:
“Os bruxos não morrem, se vão em consciência, levam tudo o que são e não deixam nada. Façam como Dom Juan; ele se foi de sandália e tudo.”
Em algum momento de minha vida pensei em encontrar os mistérios da vida no longínquo Tibete; como estava equivocado! Esperava incentivo de Alberto, um velho conhecido que havia estado naquele inacessível lugar; uma vez mais, esse parecia não ser meu destino; em lugar disso, e por alguma estranha razão que escapou ao meu entendimento, Alberto chamou minha atenção para Carlos Castaneda e um grupo de pessoas que o haviam conhecido. Não pude evitar. Estava enganchado. Este grupo se reunia para executar uns poderosos movimentos outrora ensinados por ele.
Agora eu sei, o Espírito havia batido à minha porta.
***
O contato começou com Martha e sua filha Sandra; ela me confessaria ter conhecido Castaneda desde pequena, a quem ela se referia como o nagual, e como este havia expressado seu desejo de ser apresentado à sua filha; esta proposta Carlos lhe havia feito em diversas ocasiões; parece que o nagual havia visto algo nela.
Eu comecei a me interessar; comecei a ler os livros de Carlos Castaneda; Sandra me incentivava muito, tanto é assim que em uma ocasião me compartilhou o sentir do nagual com respeito ao compromisso do guerreiro:
“Trabalhem e me terão batendo às portas da sua casa.”
***
Meu corpo ainda se recorda dos passes mágicos; ainda recordo o intento do grupo; anos depois os movimentos sairiam de seu hermetismo e se tornariam acessíveis ao mundo. Por Martha e Sandra conheci o grupo e Mariví; era ela que marcava a pauta a seguir com os passes mágicos; ela os havia aprendido diretamente do nagual Carlos.
Mariví nos compartilhava a sabedoria do nagual, assim como também nos deixava tarefas a executar por semana; eu a essas alturas me encontrava lendo “O Fogo Interior”, até então o penúltimo livro do nagual, meu intento estava aí, assim como também, uma vez mais, as palavras do nagual:
“Trabalhem e me terão batendo às portas da sua casa.”
***
Minha atenção de ensonho estava no profundo laranja do crepúsculo; uma longa estrada se perdia no horizonte; meu tio ia dirigindo, e somente o insistente chamado do telefone, e a voz que escutei ao atender, romperia com a aparente hipnose do momento:
“Alô, aqui fala o nagual.”
Como esquecer essa voz? Havia começado a me dirigir ao meu tio, disse a ele que tinha que vê-lo. Foi então que minha atenção se desviou para encontrar a maneira de estar com meu tio quando viesse o nagual. As únicas palavras que meu último resquício de atenção resgatou foram “Castelo” e “5 horas da tarde”.
Acordei, sentia-me surpreendido; de alguma maneira tinha a certeza de que este não havia sido um sonho comum.
Não tinha conseguido despertar completamente quando nisso me assaltou a dúvida, raciocinei que não havia maneira de vê-lo nesse mesmo dia, os únicos castelos para mim nesse momento eram os da Europa, e eu vivia na Cidade do México. Era ilógico. Não tinha a mais mínima oportunidade; certamente só havia sido um sonho, de modo que voltei a dormir.
Passaria o resto do dia inquieto por causa do estranho sonho; entretanto, qual seria minha surpresa e profunda desilusão quando, já passado o dia, tive o que agora acredito ser um genuíno e fugaz momento de sensatez ao me dar conta de que sim, havia um castelo no qual eu poderia estar às 5 da tarde: o Castelo de Chapultepec da Cidade do México.
Assim que houve oportunidade comentei meu sonho com Martha e Sandra; finquei pé no detalhe que mais havia chamado minha atenção e havia ficado profundamente impregnado em minha memória: a voz.
Uma parte de mim queria considerar impossível a possibilidade do contato com o nagual; no entanto, o mais curioso foi que tanto Martha quanto Sandra me disseram que a descrição da voz que eu escutei coincidia com o timbre que caracterizava o nagual Carlos.
Por fim, quando conheci pessoalmente o nagual pude corroborar que ele era o mesmo que me visitou em inumeráveis ocasiões em meu sonho.
***
Se alguma vez a magia e o Espírito bateram à minha porta foi aquele dia. Entretanto, nessa ocasião, a razão impôs suas leis e ganhou a batalha. Hoje, mais de dez anos depois, sinto que de alguma maneira reuni o poder para conectar-me com o mundo do nagual, mas não o suficiente para resistir aos implacáveis embates da razão e atender ao que, agora creio, era um encontro de poder; um encontro com o Espírito.
Uma semana mais de intento, mais relatos e mais passes mágicos. Uma nova faceta do trabalho estava na alimentação; segui certos conselhos que Mariví havia recebido do nagual; finalmente havia um princípio a seguir para poder aspirar às verdadeiras possibilidades do caminho do guerreiro:
Limpa-se o corpo, limpa-se o vínculo com o intento.
***
Recordo que íamos caminhando com um pequeno grupo de pessoas; estávamos com o nagual e o seguíamos. Caminhávamos pelo bosque, até que chegamos à borda de um precipício.
Depois de um momento, chegou a ocasião de saltar; recebemos instruções do nagual com respeito a mover o ponto de encaixe (manipular a atenção e percepção) no sonho. Só lembro de me haver lançado ao abismo e sentir o vazio de ir caindo, toda a minha energia e atenção estavam em manipular minha percepção à vontade e evitar chegar ao fundo do abismo.
Finalmente só recordo obscuridade, após o que recordo haver perdido velocidade na queda até um ponto em que descia suave e estavelmente, cada vez mais devagar, até que finalmente toquei a terra; estava em um novo lugar, e não estava sozinho; parece que havíamos mudado de realidade, havíamos mudado de sonho dentro do sonho.
O último relato que Sandra me deixou foi talvez sem grande significado, mas que sem dúvida teve o suficiente poder para deixar uma profunda marca em minha memória: o penetrante olhar do nagual; o olhar de uns olhos que na verdade diziam ter testemunhado mundos impossíveis de nomear.
***
Estava no bosque, era de dia, e o nagual estava comigo; lembro das sombras das árvores, os troncos e sua folhagem projetados sobre o solo; o contraste entre a luz do sol e as sombras era muito marcante, algo que chamaria a atenção de qualquer um.
Nunca esquecerei essas sombras, assim como tampouco esquecerei como o nagual começou a dizer que fixasse minha atenção nelas; assim o fiz. Nisso aconteceu algo completamente inesperado, as sombras começaram a oscilar de um lado para outro!
“Não perca de vista as sombras”, exigiu, “não perca a atenção!”
Comecei a perder o controle.
“Fixe sua atenção!”, insistiu.
Eu as estava perdendo, havia um extremo sentido de urgência no nagual para que mantivesse essa percepção.
Eu não estava conseguindo executar a simples, mas aparentemente importante manobra perceptiva que o nagual me estava pedindo. Não tive a energia nem o poder suficiente; o nagual se impacientou, e já desesperado me disse que o esquecesse, que esquecesse tudo, que se não conseguia fixar minha atenção que o esquecesse.
Pedi-lhe paciência, disse-lhe que ele poderia entender, que Dom Juan devia ter tido paciência com ele no princípio também. Aparentemente, não foi suficiente meu questionamento.
Naquele momento já havia perdido a atenção. Havia perdido a batalha.
***
Continuei envolvido com a mesma intensidade no caminho do guerreiro, continuei trabalhando sem cessar, no entanto, não importa o que fizesse, o nagual Carlos nunca mais voltou a aparecer em meus sonhos.
O grupo estava por se dissolver. A partir desse momento, a luta seria solitária. Entretanto, houve um último relato que conseguiu sobreviver: a morte de “La Gorda”, guerreira impecável, aprendiz de Dom Juan. Havia decidido separar-se do grupo do nagual Carlos. Havia intentado levar todo o seu corpo para o outro mundo; sofreu uma embolia após o esforço. “La Gorda” havia tido um ataque de egomania antes do intento, diante do que Martha fez um sincero questionamento:
“Se ‘La Gorda’ sucumbiu à importância pessoal e morreu, o que pode nos esperar?”
***
Finalmente, um dia, anos depois, voltaria a saber do nagual Carlos. Fui convidado a uma conferência que daria em um teatro do centro da Cidade do México.
São muitas as coisas de que falou nessa ocasião, mas foram dois os aspectos que mais chamaram minha atenção:
1) a extraordinária vitalidade do nagual;
2) a ênfase que colocou em uma situação que nunca plasmaria em seus livros:
Dom Juan, ao partir com seu grupo, havia ficado preso na segunda atenção; a falta de abstração do grupo o havia puxado, e não lhes havia permitido consolidar a viagem definitiva.
Carlos expressou seu profundo desejo de ajudar Dom Juan quando fosse a sua vez de partir. Um dos presentes lhe perguntou se podíamos ajudar Dom Juan, ao que Carlos respondeu:
“Primeiro ajudem-se vocês, salvem-se vocês.”
Como esquecer esse dia? Um belo dia, soube por uma pessoa de uma notícia impossível de ignorar. Disseram-me que a haviam tirado das notícias e do jornal, busquei e só o que encontrei foi um inevitável sentimento de desconcerto:
O famoso e renomado escritor Carlos Castaneda morreu em 27 de abril de 1998 em estranhas circunstâncias.
Imediatamente, busquei refúgio em uma explicação com sentido; quis esclarecer se havia ido em consciência, se havia podido partir na viagem definitiva, ao que me disseram que não, que realmente havia morrido. A partir daqui não posso dizer mais; um profundo e arrasador sentimento inundou todo o meu ser.
Uma noite, tempos depois de meu último sonho com o nagual Carlos, decidi continuar com meu intento. Nessa noite, terminei de executar os passes mágicos, recapitulei e me dispus a dormir.
***
Estava no deserto, sozinho, era uma espécie de chaparral, parecia ser de noite; de repente percebi que em frente a mim se encontrava uma figura sentada com as pernas cruzadas, a uns cinco metros; por sua forma de vestir parecia um índio e usava um sombrero, não dava para ver seu rosto porque tinha a cabeça baixa, mas quando a levantou recebi um enorme impacto, não havia rosto algum!
Só a escuridão ocupava o espaço onde supostamente devia haver um rosto, enquanto todo o resto era visível de maneira normal; parecia que não queria ser reconhecido.
Tinha esta cena à minha frente quando nisso escutei como se dirigiu a mim:
“Eu sou o ser que o mundo conheceu como Dom Juan.”
Apenas me havia dado conta disso quando ele levantou seu braço direito e o estendeu até mim como se fosse elástico, aproximou-se tanto que sua mão ficou a cerca de um metro, mostrando-me o dorso desta com os dedos esticados; foi nesse instante que minha atenção se fixou em pequenas plantas e ervas que trazia em sua mão, como se as houvesse distribuído entre seus cinco dedos.
Em seguida começou a me dizer o seguinte:
“Esta planta serve para isso, esta para aquilo, esta para isso, esta para aquilo, e esta para isso.”
Havia me indicado e apontado com a outra mão as plantas e ervas conforme falava delas. Depois continuou dizendo:
“Tudo isso é o que no mundo ocidental equivale e se conhece como a estrela de cinco pontas.”
Isso foi tudo. A partir dessas enigmáticas palavras minha atenção começaria a minguar até perder-se completamente no reino da inconsciência.
Acordei completamente sobressaltado, sem dúvida podia ter sido outro produto de meu inconsciente; entretanto, havia um detalhe: a informação parecia ser muito específica, e eu até aquele momento de minha vida não tinha conhecimento algum do que era a estrela de cinco pontas. Nesse mesmo dia e o mais rápido que pude decidi averiguar o que pudesse acerca de, até aquele momento, tão misterioso símbolo.
Após a busca pude encontrar algo, um folheto explicativo do pentagrama, mas qual não seria minha surpresa quando li que o pentagrama é conhecido como a estrela de cinco pontas, e que seu significado é o homem auto-realizado, assim como o domínio do homem sobre as forças da natureza!
***
O segredo de um guerreiro é que ele crê sem crer. Mas obviamente um guerreiro não pode só dizer que crê e deixar assim. Isso seria muito fácil. Somente crer o exoneraria de examinar sua situação. Um guerreiro, quando tem que envolver-se com o crer, o faz como uma escolha, como uma expressão de sua mais íntima predileção. Um guerreiro não crê, um guerreiro tem que crer.
Porta para o Infinito
Hoje, mais de dez anos depois, tenho que crer que o nagual Carlos e Dom Juan mantiveram a consciência de si ao partir. Hoje, mais de dez anos depois, tenho que crer que algo extraordinário me sucedeu.
Se alguma vez minha vida se modificou, foi naquela época. Se alguma vez a magia e o Espírito bateram à minha porta, foi naqueles dias. Assim que hoje, anos depois, só posso intentar unir-me em Espírito à idéia e ao propósito que o nagual Carlos e seu grupo compartilhavam:
Explicar o mundo que Dom Juan nos fez herdar é nossa expressão final de gratidão para com ele, e de nosso propósito de continuar buscando o que ele buscava: a Liberdade.
***
Você está em um ponto terrível. É tarde demais para se retirar, mas cedo demais para agir. Tudo o que pode fazer é testemunhar. Está na miserável posição de uma criatura que não pode regressar ao ventre da mãe, mas tampouco pode sair e agir. Tudo o que uma criatura pode fazer é testemunhar e escutar os estupendos relatos de ação que lhe contam. Você está agora nesse ponto preciso. Não pode regressar ao ventre de seu velho mundo, mas tampouco pode agir com poder. Para você só há testemunhar atos de poder e escutar contos, contos de poder.
Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda: Carlos Hidalgo de Bacatetes
Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda
Entrevista com Carlos Hidalgo de Bacatetes
_ Quando você se encontrou pela primeira vez com Carlos Castaneda?
_ Bem, melhor dizendo, ele que me encontrou, sem que eu me inteirasse. Era a apresentação de seu novo livro “O Presente da Águia”, em 1982, no University Club de México, a cargo de um grupo de intelectuais. Como o que diziam me pareceu demasiado racional e superficial, me armei de coragem e pedi a palavra:
“Pessoalmente, penso que o principal valor dos livros de Castaneda é o fato de ser um autêntico sistema iniciático”, disse, quase gaguejando, “quer dizer, é uma verdadeira cosmogonia e contém uma série de técnicas, digamos que de caráter psicológico, cuja prática pode chegar a conduzir a um máximo de desenvolvimento e plenitude humana e espiritual... em termos modernos, podemos considerar os ensinamentos do xamã Dom Juan como toda uma ‘tecnologia’ destinada à evolução da consciência individual... além disso, deveríamos nos sentir orgulhosos porque neste campo talvez seja a mais valiosa contribuição do México ao mundo.” (Agora penso que esta cosmovisão é uma contribuição de todo o continente americano, ainda que se suponha que sua origem se remonta aos antigos toltecas, Dom Juan é um xamã de origem yaqui, tribo indígena situada na fronteira entre Estados Unidos e México, e Castaneda, o difusor do ensinamento, não se sabe se era um pocho gringo-mexicano ou um mestiço peruano ou talvez brasileiro, então pode-se falar de uma sabedoria “multicultural”.)
Pois bem, para minha grande sorte, depois me inteirei que o mesmíssimo Castaneda estava escondido em alguma parte do salão escutando o que disse. Seguramente, não lhe pareceu mal, pois seu “contato mexicano”, Fausto Rosales, me convidou depois a uma reunião com Castaneda nesse mesmo lugar e ainda me disse que convidara a outros supostos candidatos a guerreiros.
A primeira impressão que tive ao vê-lo foi: se parece com o Dom Juan que eu imaginava ao ler os livros! Ainda que não fosse indígena e sim mestiço, e não usasse guaraches (sandálias) e sim terno e gravata. Sua aparência simples e singela, sem poses, seu estilo brincalhão e simpático, até mal falado, me produziu uma magnífica impressão. Destroçou desde aquele dia o paradigma ou imagem que tínhamos do mestre ou guia espiritual. Não se levar a sério e zombar de si mesmo e de suas companheiras bruxas era algo que deixava a todos desconcertados e, por sua vez, rindo a gargalhadas.
Assim como fazia piadas com todos os gurus e mestres que havia conhecido (se aproveitava de sua fama para ter acesso a eles), também ele mesmo se ridicularizava dizendo-se e agindo como tarugo (idiota), baixinho e feio, e quase suplicava que não nos desiludíssemos com ele por causa de sua aparência, tal como lhe sucedia nos EUA, segundo nos contou:
“Esperam ver Carlos Castaneda como o flamejante, louro e alto mestre,” disse-nos, ao mesmo tempo que o imitava zombeteiramente, “que, com sua presença e olhar deixava impávidas as multidões, porém, que decepção têm ao me ver: pretinho e baixinho!”
Uma das melhores aprendizagens que nos deram Carlos e suas companheiras bruxas foi nos fazer ver qual era o segredo para alcançar a liberdade psicológica e espiritual, objetivo de seu sistema: aprender a não se levar a sério, rir-se de si mesmo e conseguir que a personalidade vá adquirindo cada vez maior sutileza e sobriedade, até que sua presença quase passe despercebida. Esse era o sentido metafórico da frase de Dom Juan: “O guerreiro deve se tornar invisível”. Mas que difícil é fazer da personalidade algo tênue como nos pedia Castaneda!
Com relação a isso, recordo-me de quando falava com Castaneda diante de um grupo sobre uma poderosa guerreira de Canárias, Espanha, e emocionado com meu descobrimento, lhe descrevia suas características de força, impressionante personalidade, arrojo, notória beleza e carisma etc. quando de repente o nagual me interrompeu: “Observem o Hidalgo fazendo uma típica descrição com base na ordem social”.
Senti-me mal, pois ele se valia desse termo para descrever a visão do mundo ordinário ou cotidiano baseada em convencionalismos e condicionamentos sociais.
Esta visão, em termos da Psicologia Transpessoal que eu estava estudando, é própria do nível de consciência egóico-racional.
Segundo esta ciência ou paraciência, os livros de Castaneda constituem todo um modelo de desenvolvimento da consciência, como são os modelos das tradições religiosas ou espirituais, nos quais se busca transcender o nível egóico-mental de consciência e alcançar o nível transpessoal ou transcendente de consciência, que segundo este modelo seria o dos bruxos. Com toda intenção usam esta palavra para não se levar a sério em lugar de denominar-se como em outros tempos: iniciados, eleitos, espirituais ou religiosos etc.
Em contraste com minhas apreciações sobre a “guerreira canária”, conto-lhe a cômica descrição que o nagual fazia de Nuri, a filha simbólica dele e da mulher nagual, Miuni ou Carol Tiggs, e digo simbólica porque supostamente eles não a conceberam, e sim veio do outro mundo, como explorador azul. Com muita graça a descrevia e imitava como se se tratasse de uma aranha patuda, idiota (taruga) e debilucha, um ser insignificante no qual ninguém prestava atenção e sem nenhuma graça. Entretanto, tinha tal poder pessoal que chegou a se colocar por cima de todos os bruxos, inclusive dele mesmo, pois quando tiveram que passar por provas difíceis como grupo, era ela que os empurrava adiante e estimulava em seu intento de bruxos.
Quando finalmente a conhecemos, pudemos apreciar que sua figura discreta e delgada, sempre cordial e sorridente, sua presença energética e seu olhar eram literalmente encantadores. Quando tive a sorte de conversar com ela, repentinamente se levantou e disse algo assim como: “me esqueci, tenho que afastar-me!”, e se foi sentar em um lugar distante. O impacto psicológico deste movimento me produziu uma profunda tristeza, ela de imediato o notou e com um simples olhar me tranqüilizou. Ou minha energia era muito densa para ela ou era minha incapacidade para suportar, digamos, sua voltagem energética por muito tempo, ou ambas as coisas, o que me impediu de conversar mais tempo com este ser sublime. Outra razão seria a facilidade com que eu teria me apaixonado perdidamente por ela, como poderia ocorrer com qualquer um.
Posso dizer que Castaneda me treinou para saber distinguir ou “ver” a diferença entre uma pessoa “pesada” (tanto no sentido físico-energético como psíquico), devido a sua “egomania” ou “megalomania” (termos que costumava “amavelmente” usar contra nós) e uma pessoa leve, ligeira, que perdeu sua “importância pessoal”. As pessoas pesadas são notórias e vistas como tendo excesso de energia. Por outro lado, ele e suas companheiras eram o protótipo da leveza e presença discreta que quase os faziam passar despercebidos.
Parecia incrível que, por trás dessa aparência discreta, de finos modos e amável gentileza das bruxas, se escondesse essa força energética e capacidade de percepção que só convivendo com elas se podia notar. A aura energética e o olhar penetrante as delatava, e tanto podiam causar-lhe prazer ou plenitude, quanto fazê-lo sentir uma estranha frieza ou vazio, sensações que supostamente denotam a proximidade com o desconhecido, com o infinito, conforme depois compreendemos.
_ Qual foi o maior ensinamento que lhe deixou Castaneda?
_ Ainda que escutar o conteúdo de suas palestras fosse fascinante, a princípio não é fácil perceber que o ensinamento de Carlos é em outro nível, o que dizia era só um meio de fixar a atenção. O mais importante era abrir-se à sua presença energética.
Dei-me conta disso de forma curiosa em uma reunião com ele na casa de Ariel Rosales: com grande expectativa esperávamos ouvir o grande ensinamento do nagual, que, no entanto, passou o tempo contando simpáticas anedotas engraçadas e mesmo grosseiras. Eu não concebia tal futilidade no meu “herói”, e triste decidi ir-me, mas ao me despedir ele ficou me olhando de maneira misteriosa e sorridente, como que me fazendo ver meu erro.
Esse estranho olhar me deu muito o que pensar, quando por fim “caiu a ficha” e compreendi como o maravilhoso efeito de sua presença, que mais tarde teria sobre nossas vidas, não era tanto por seus anelados ensinamentos intelectuais, quanto pela irradiação pessoal do que eles chamam energia chi (o equivalente à “graça” ou “shakti” dos místicos). Esta é a razão pela qual ao estar com eles se experimentava um estado de máxima plenitude, e como que tudo se tornava luminoso com sua presença. Com o tempo aprendi a abrir-me e tornar-me receptivo à sua irradiação energética e ele mesmo me fez percebê-la com intensidade através de seus misteriosos olhos. Cheguei a sentir suas irradiações até pelo telefone, quando me ligava de Los Angeles.
Considero que esta é a verdadeira validação de um nagual: conviver pessoalmente com ele. Ler não é a mesma coisa, o caso era caminhar, comer com ele, deixar-se arrastar por sua incrível vitalidade, isso por si só era uma prova magnífica e contundente de que existe um estado superior de consciência.
Ele buscava com suas brincadeiras e histórias de bruxaria, às vezes tenebrosas, fixar a atenção dos participantes.
Era muito divertido observar nossas caras impávidas e assustadas quando nos contava alguma fantástica história sobre o desafiante da morte ou os temíveis voadores. Como dizia que os mexicanos somos muito mórbidos, se valia desse tipo de história para nos oferecer indiretamente o melhor que podia nos dar: sua poderosa presença e energia, capaz de nos induzir a uma transformação interior que nos conduzisse a desenvolver nossos níveis de consciência.
_ Como era seu tratamento com vocês?
_ Era afetuoso e se aproximava de todos por igual, impossível saber quem era o “favorito” – algo que todos desejávamos e pelo qual inconscientemente lutávamos. Não obstante, os que tinham mais contato com ele se davam pior, porque não havia sessão pública na qual não escarnecesse de nós, pondo-nos sempre como exemplo do que não se deveria fazer. Mas o fazia com tanta graça e habilidade que ninguém se sentia ofendido. Isso sim, depois de fazer uma forte e irônica crítica a alguém que não estivera presente, ao encontrá-lo de novo o abraçava efusivamente e víamos que o fazia com sinceridade.
A interação com eles não era fácil de levar. Ele mesmo confessava como era angustiante lidar por muito tempo com um nagual ou as bruxas. Conviver com eles era entrar em um forte processo de depuração interna, daí que nos dessem contínuos descansos, às vezes de anos.
Costumava deixar-nos em estados de realização, plenitude e grande força que duravam meses; porém, em outras ocasiões, depois de haver convivido com eles, sentia que se acabava minha vida, não só porque vulneravam seriamente minhas estruturas mentais como também porque provocavam fortes processos de limpeza ou purificação ou “mortes simbólicas”, segundo seus termos.
Não obstante, sabíamos que, quaisquer que fossem as conseqüências, sempre seriam positivas. O importante era estar com eles o maior tempo possível e agüentar esse impacto energético e psicológico, ainda que sequer escutássemos ou entendêssemos o que explicavam.
AS “COMIDAS DE PODER”
A princípio acreditei que seus convites para comer em algum restaurante eram para nos relaxar conversando social e superficialmente com eles, mas nada disso, tratavam-se de “comidas de poder”, onde iam dizer ou ocorrer coisas que nem mesmo o nagual sabia de antemão. Podiam chegar a converter-se em momentos sublimes para quem estivesse atento e aberto à energia. Sob esse outro estado de consciência que era gerado com sua presença, em certos instantes tínhamos verdadeiros momentos de êxtase grupal. Numa ocasião, comendo deliciosos tamales no Café Tacuba, de repente se fez um estranho silêncio e senti que algo impressionante estava acontecendo, a ponto de estar seguro de ter visto lágrimas de gozo nos olhos das bruxas.
Curiosamente, uma simples toada popular que escutasse no restaurante durante essas refeições me chegava a provocar verdadeiras “viagens”. Carlos sabia bem o que se passava comigo e um dia comentou ironicamente: “O Hidalgo adora música!” – sendo que jamais escuto música popular.
Quando fomos à Espanha, adverti aos espanhóis sobre as “comidas de poder”, porém, ante a intensidade energética que aí se produzia, como bons espanhóis se soltavam eufóricos a falar todos ao mesmo tempo, quase não deixando o nagual dizer nada, mas este como que seguia o jogo social, e não havia forma de que se calassem. Esta experiência me serviu para entender como se desatam as defesas ou resguardos psicológicos ante o impacto dos bruxos, ainda que também provoquem estados de euforia.
NAS GRUTAS DE CACAHUAMILPA
Uma das mais poderosas experiências com eles foi nas grutas de Cacahuamilpa, no estado de Morelos. Nunca me esquecerei como, conforme íamos descendo por aquela escuridão, o efeito de consciência ao estar perto dos bruxos fazia com que as caprichosas formas das pedras se convertessem para mim em fascinantes paisagens com uma desconcertante semelhança às imagens de Doré na “Divina Comédia” de Dante. Ao contemplar essas formações, de repente me pareciam como visões do paraíso, ou do purgatório, ou mesmo do inferno, de uma beleza indescritível. Foi, sem dúvida, um dos eventos mais surpreendentes da minha vida.
Tivemos o privilégio de regressar às mesmas grutas, porém desta vez acompanhados de Miuni (Carol Tiggs), Florinda e Taisha. Nesse dia me foi revelado o caráter simbólico da descida, com a presença energética das bruxas e penetrando no ventre materno da Terra. É-me impossível recordar o que ali ocorreu, mas sei que se relacionava com os arquétipos da Grande Mãe e do feminino. Para mim, elas se haviam transformado em uma espécie de mães cósmicas, cuja proximidade e afeto jamais poderei esquecer.
_ Fale-nos mais sobre as companheiras de Castaneda.
_ Florinda eu descreveria como mais intensa; seu sangue venezuelano a fazia mais extrovertida e falante; não obstante manter-se sempre equânime, escondia tal força que às vezes parecia transbordar. Taisha dava a impressão de maior sutileza; parecia mais velha, talvez por sua magreza, mesmo que fosse difícil descobrir a idade de todas as bruxas; expressava-se de forma lúcida, muito amável e direta, movendo as mãos de maneira elegante, esbanjando sabedoria e profundo afeto. Miuni é mais difícil de descrever: era a encarnação mesma do mistério por sua aparência e despertava certa fascinação com seus estranhos olhos azuis e olhar astuto. Também muito magra, de movimentos tão ágeis que parecia flutuar quando caminhava.
Você não vai acreditar, mas quase não me lembro das palavras que escutei delas por causa dos estados alterados de consciência que me produziam. Porém, me vem à memória um momento de poder que se deu na Espanha quando estava em frente a Miuni, a mulher nagual, e me deleitava percebendo a sutil energia de sua presença, e ela sorrindo me disse: “Ai, Hidalgo, quando deixará de ser um místico?”
Sabiam que eu já não tinha remédio com minhas tendências místicas, Taisha até mesmo me comprou um livro sobre São João da Cruz em uma livraria de Los Angeles à qual nos levaram, pois ela era como que a encarregada de fazer a grande honra de me atender, por uma maior afinidade energética ou psicológica, segundo parece, e ficando ao meu lado me falou da importância fundamental do Espírito em suas vidas, de como todas as suas ações eram realizadas à luz dos sinais do Espírito: “Por exemplo, adoramos ir ao México, mas não depende unicamente de nós tomar essa decisão; um dia antes de viajar podemos receber um sinal do Espírito que nos impeça e para nós deve dar no mesmo, ir ou não ir ao México”.
Apesar de o nagual levar um pouco na brincadeira meu lado místico, costumava dar-me valiosas sugestões: “O melhor modo de chamar o Espírito e fazer-se notar por ele é oferecer-lhe um ‘gesto’”.
Perguntei-lhe se praticar um “não-fazer” era um “gesto” para o Espírito e assentiu com a cabeça, acrescentando o que ele sugeria como máximo “gesto” e que para mim coincidia com a contemplação mística:
“Ter sempre o Espírito em mente. É sua testemunha as 24 horas do dia. Dê-lhe o melhor de si mesmo. O Espírito é a testemunha do guerreiro, portanto têm que ser impecáveis em suas vidas.”
Insistia em tornar mais abstrata minha idéia de Deus, quer dizer, transcender a imagem cultural e psíquica que eu havia formado desse poder superior que segundo Dom Juan rege os destinos humanos:
“Chame o Espírito como algo abstrato... subtraia de todo o concreto... não tem forma, não é nada, e esse nada é tudo... quando estiver só, chame o Intento (outra denominação que dão ao Poder)... tem que restabelecer o vínculo (com o Espírito)... restabelecer uma relação que já existia.”
Precisamente para não se criar uma imagem concreta dessa realidade superior que de maneira pessoal ou impessoal se manifesta aos bruxos, dão-lhe diferentes nomes: o Nagual dos tempos, o Poder, a Águia, o Espírito, o Intento, o Abstrato, o Infinito, o Mar escuro da consciência, ou simplesmente Castaneda chamava Aquilo (“it” em inglês) a essa força perene de vida que nos sustenta, que abarca o Universo inteiro.
Fazendo crítica alusiva ao meu intelectualismo espiritual, acrescentou: “O Espírito recebe o que você lhe dá em ação, não o que explica.”
E comentou algo que também diria aos demais “intelectualistas” do grupo, que até hoje ainda me causa preocupação: quando conheceu um dos maiores escritores do espiritual, Alan Watts, o encontrou para sua grande surpresa em plena decadência humana. Este ídolo dos buscadores espirituais reconhecia que não havia podido alcançar a liberação, fazendo este comentário a Castaneda: “Entendo o conhecimento, porém não o posso alcançar: isso é beleza para mim.” Fiquei com um sentimento de profunda tristeza e o nagual concluiu: “Vocês não têm que se converter em heróis intelectuais!”
Voltando ao tema das bruxas, de Florinda tenho mais lembranças; como fala espanhol melhor que as demais e é mais sociável, tínhamos mais contato com ela. Porém é quase vergonhoso contar a razão da minha primeira conversa com ela. Ao fim do meu primeiro encontro formal com Castaneda, este me deu amavelmente seu telefone para quando necessitasse de sua ajuda. Pois bem, não havia se passado muito tempo quando comecei a sofrer de uma intensa diarréia que quase me impedia de sair de casa. Fiquei tão preocupado que decidi ligar para o nagual em Los Angeles. Quando, emocionado, escutei sua voz ao telefone e ia dizer-lhe o motivo da ligação, quase fiquei paralisado com semelhante pretexto para falar-lhe, mas o nagual, apesar de suas risadinhas, o viu como algo natural e brincou comigo: “Deixe de tomar tanto café, xará, e vou passar para Florinda para que lhe ajude.”
Sentia-me aflito e ela percebeu. Disse-me amável e diretamente que ainda que essa preocupação pela diarréia fosse devido à muita importância que dou à minha pessoa, também se devia a um tipo de limpeza emocional, e a algo mais sério: como eu começava a obter êxito em parar meu diálogo interno, me disse: “Você não percebe mas o corpo se afeta com isso, como você sempre está falando consigo mesmo devido a essa importância pessoal, quando deixa de fazê-lo o corpo luta. A diarréia significa que o corpo não vai deixar você ganhar, não quer ficar para trás.”
Suas palavras me sugeriam que o corpo se sentiu ameaçado de morte ante o vazio do silêncio interior e soou seus alarmes. Disse-me que o corpo reage através de minha parte mais débil, o intestino; o corpo tem duas ou três maneiras-chave de reagir e o faz sempre do mesmo jeito.
AS ‘TERAPIAS ENERGÉTICAS’
Com relação ao poder pessoal de Florinda, gostaria de contar algo muito curioso que ocorreu quando íamos rumo às grutas em uma Kombi. Pude observar como dava uma espécie de terapia impressionante no motorista, um renomado jovem professor, que sofria do hábito neurótico de ser fortemente crítico de tudo e de todos, o que obviamente havia sido percebido pelos bruxos.
Pois bem, de repente vi que Florinda se sentou junto a ele, quase o tocando como que para “injetar-lhe” energia, e começou a dizer-lhe coisas para dar corda, provocando-o para que intensificasse suas críticas. Chegou um momento em que realmente senti medo que fôssemos sair da estrada, o veículo oscilava todo com a intensidade do estado emocional do jovem, a ponto de Florinda ter que serená-lo, não ficando do seu lado e sim fazendo certos comentários em favor da pessoa ou situação.
Não havia percebido essa espécie de terapia até que um dia ingenuamente defendi o ilustre Octavio Paz das inclementes críticas deste brilhante jovem, mas ele arremeteu com maior intensidade; eu estava incomodado e surpreso ao ver que todos guardavam silêncio, sabendo que os bruxos apreciavam muito o poeta, como lhe chamavam, até que me dei conta que era mais uma de suas estranhas terapias de catarse.
Essa espécie de catarse psicológica que provocavam com sua presença chegou à apoteose na Espanha: a suas reuniões assistiu um dos mais conhecidos mestres espirituais desse país, fundador de toda uma comunidade de “iniciados”. Pois bem, surpreendeu-nos ao interromper Castaneda e iniciar um longo e veloz discurso, gabando-se de suas habilidades falantes, mas na verdade como um maluco que parecia que nunca ia acabar de falar. Nem percebia a simpática cara de perplexidade que fazia o nagual, como de zombeteira admiração; se não tivesse sido uma situação tão embaraçosa teríamos soltado gargalhadas.
Finalmente alguém o mandou parar, mas não tardou a voltar a falar e cada vez mais rápido, e, não vai acreditar, faziam-no calar-se e ele em um instante continuava com a chatice. Já em particular reconheceu humildemente que não sabia o que lhe havia acontecido, abrir a boca e falar era algo quase involuntário para ele e se sentia envergonhado. O nagual simplesmente nos comentou que esse homem sofria de “verborréia”, típica enfermidade dos mestres espirituais, mas já então conhecíamos o efeito catártico de sua energia e como amplificava de maneira tragicômica nossa egomania.
Isso me recorda quando Jacobo Grinberg contou a Castaneda de seu novo livro, um a mais na numerosa e brilhante série de livros que havia escrito. Porém, o nagual, com um sorriso malicioso, disse-lhe que padecia de verborréia literária. Jacobo reconheceu o dito pelo nagual e suspendeu a escritura de seus livros por um bom tempo.
Outro fato que lhe posso contar foi precisamente com Jacobo e também com o jovem hipercrítico de que falei antes, quando pude constatar que essa espécie de catarse também funcionava, digamos, em positivo.
Estávamos em Los Angeles, Califórnia, com os bruxos, quando Castaneda começou a lhes dar corda para que falassem de Dom Juan e sua obra, enquanto os observava fixamente. Aquilo foi algo surpreendente: ambos começaram a dar uma magistral exposição do conhecimento dos bruxos, e o nagual parecia feliz como uma criança ao escutá-los e os estimulava a seguir falando mais e mais; eles, assombrados de si mesmos, continuavam dizendo maravilhas.
Jamais escutei clareza tão grande e inteligente acerca deste conhecimento como aquele dia, foi uma espécie de catarse de inteligência destas duas mentes brilhantes que foram potencializadas ao máximo pela presença energética dos bruxos.
_ De que lhes falou inicialmente Castaneda?
_ Nas primeiras reuniões falava dos “índices”, referindo-se às tarefas ou técnicas que lhe havia ensinado seu mestre, tais como: suspender o diálogo interno, parar o mundo, ser inacessível, romper as rotinas, apagar a história pessoal etc. e que são aplicáveis por igual a todos os que estão interessados no conhecimento, enfatizando que o índice comum a todos é reduzir a importância pessoal, o ego pessoal.
Segundo nos explicou, os índices têm a missão de nos permitir economizar energia para canalizá-la e enfocá-la nessa monumental tarefa de transcender o ego pessoal e alcançar a liberdade. Insistia muito no aspecto pragmático do ensinamento de Dom Juan, interessava-o sobretudo buscar sua corroboração empírica, pois tentar entender unicamente com a mente as unidades conceituais dos bruxos (que estão elaboradas para nosso ser total) nos levava inevitavelmente a encontrar inconsistências lógicas no seu ensinamento ou mesmo contradições e absurdos.
Isso explica em parte a quantidade de detratores do seu conhecimento, que aumentaram depois de sua partida.
A incompreensão da estrutura simbólica e de caráter mítico tanto do conteúdo do ensinamento quanto da conduta dos bruxos, ou a excessiva intelectualização de muitos leitores, ou a falta de prática autêntica dos índices e o quão ameaçador se tornam para as estruturas egóicas, ocasionou uma debandada de guerreiros, e até produziu reações de ofensa e crítica.
A prática é a verdadeira ponte para os ensinamentos do nagual, é a maneira mais rápida de passar por cima das aparentes contradições e corroborar os postulados dos bruxos.
Os índices de que falava se apoiavam em algo imediato e manejável para nós: a força de vontade. Eram técnicas que deviam ser cultivadas com forte intenção ou intento inflexível para que produzissem frutos. “Trata-se de um ato de vontade sistemático, para isso é necessário ter um forte propósito”, disse-nos.
Isso é tão importante para eles que por isso o Espírito também se denominava Intento, pois um esforço permanente na prática dos índices poderia fazer com que nosso intento se convertesse no Intento da Águia.
Isso seria como fazer coincidir nosso livre arbítrio com nosso destino, ou, em simbologia cristã, significaria que, ao exercer nossas determinações com empenho inflexível estas chegam a coincidir, ou melhor dizendo, terminam por converter-se na vontade de Deus, ou, como afirma São João da Cruz: “quando o místico alcança a união do matrimônio espiritual entre a alma e Deus, é quando as duas vontades, da alma e de Deus, estão em conformidade... não restando na alma coisa que não seja vontade de Deus.”
O SER AMADO DO GUERREIRO
As técnicas mais importantes para mim têm sido: tornar-se inacessível e apagar a história pessoal, sobretudo para não me deixar arrastar pela cômoda situação burguesa na qual nasci. Nunca esquecerei suas tremendas palavras: “Temos que morrer para o mundo cotidiano!” Referia-se à necessidade de apagar a história pessoal, e nos afastarmos de amigos e familiares porque nos solidificam, nos fazem previsíveis. Se alguém quer ser realmente livre, tem que deixar a todos os que o conhecem bem, na personalidade atual.
Isso foi muito duro para mim, a princípio significou um autêntico morrer para o passado, para uma vida, para todo um mundo; não obstante, conforme avanço na prática, sinto como que renascendo em outro mundo, outra realidade muito mais vasta que o pequeno mundo de afetos e interesses ao qual me aferrava. Isso me levou a descobrir o grande segredo dos bruxos, o verdadeiro ser amado dos guerreiros: o Mundo.
Vou tentar explicar valendo-me dos termos de Dom Juan: todos vivemos como que encerrados em uma bolha energética, que no princípio de nossa vida estava aberta e em contato com o Mundo a que realmente amávamos. Logo, pouco a pouco começa a fechar-se até formar uma espécie de “casulo”. Aí dentro podemos passar o resto de nossa vida sem perceber, mais que levemente, os maravilhosos “mundos” que nos rodeiam. Utilizando os símbolos de Santa Teresa d’Ávila, vivemos como larvas encerradas dentro do casulo que fabricamos, falta-nos empreender o vôo como borboletas em plena liberdade.
“Nas paredes redondas do casulo”, assinalava Dom Juan, “só presenciamos nosso próprio reflexo... a coisa refletida é nossa descrição do mundo que logo se converte em nossa ‘visão do mundo’, na qual fica presa nossa atenção. É como se as paredes de nosso casulo fossem uma lente que filtra a realidade, a qual está estruturada com a descrição do mundo que nos deram desde a infância, ou seja, o condicionamento cultural ou social transformado em nosso próprio paradigma ou visão de mundo com a qual julgamos e manejamos a realidade. Por isso lhe chamam a bolha da percepção, porque percebemos estímulos do exterior filtrados através de suas paredes que formam nosso reduzido sistema de interpretação da realidade no qual está ‘presa’ nossa atenção, nossa consciência.”
Do ponto de vista da Psicologia Transpessoal, diz-se que nos primeiros meses de vida nossa consciência (ou percepção) está aberta e expandida em unidade e afinidade com tudo que nos rodeia (percebemos a energia dos estímulos diretamente). Ao passar à etapa egóico-mental de consciência, esta percepção como que “fecha” sua grande expansão, reduz-se a um casulo etérico que rodeia o corpo físico, e se inicia a formação de nossa própria individualidade e identidade.
Em termos dos bruxos, diríamos que é quando nossa atenção e energia se concentram exclusivamente, com base na visão do mundo que nos programou a ordem social, em trabalhar encerradas dentro de nossa “bolha”. Em toda esta etapa (que se considera de transição, ainda que nela possamos passar toda a vida) não existe uma verdadeira conexão com a Realidade plena do mundo exterior. Similar à larva dentro do seu casulo concentrando toda a sua energia na metamorfose que a transformará em radiante borboleta, assim também o indivíduo “ensimesmado” no intenso trabalho da etapa egóico-mental de consciência carece de suficiente energia para que sua percepção possa “voar” em liberdade e descobrir o mistério, a grandeza e a beleza do mundo que o rodeia. Isto só se pode conseguir a partir da etapa seguinte da consciência: o nível transpessoal, ou, o que é o mesmo, o nível dos bruxos.
Segundo lemos no livro de Castaneda “Porta para o Infinito”: o mestre bruxo Dom Juan trabalhou de dentro da bolha da percepção de Castaneda para reacomodar sua visão do mundo, e o benfeitor bruxo Dom Genaro abre a bolha por fora com a finalidade de permitir-lhe ter uma visão da totalidade de si mesmo e do mundo, até alcançar a consciência total e portanto a liberdade total.
É a Consciência da Unidade segundo a Psicologia Transpessoal, que implica a supressão de todas as fronteiras mentais que dividem a Realidade em dualidades; tal como assinalam os bruxos, nossa percepção cria barreiras que dividem o Mundo em pares de opostos: alma e corpo, mente e matéria, bem e mal, Deus e Satanás.
E a fronteira ou barreira mais importante que criou a Evolução durante a etapa egóico-racional é aquela que nos separa da Realidade, do Mundo (nosso “casulo” ou “bolha”).
Em meu caso, devo toda a minha gratidão à Castaneda e às bruxas por sua grande ajuda; quase sem me dar conta, me impulsionaram em ambos os trabalhos: na “metaformose” dentro do casulo de minha própria “larva” e na abertura do casulo da percepção ensinando a minha consciência a dar os primeiros passos para abrir as asas da percepção e aprender a “voar” através do Mundo.
Como resultado de minha interação com eles, lhe contarei algumas experiências que comecei a ter: certo dia em que praticava os primeiros passes mágicos publicados no livro de Taisha, como o intentar estender a chamada rede etérea de nosso corpo energético, de repente senti como se meu corpo se tornasse gigantesco e abarcasse, deitado, toda a Cidade do México.
Ao cabo de um tempo de praticar esta prazerosa técnica, começaram a me suceder coisas estranhas com relação ao meu automóvel: perdia a licença, a tarjeta de circulação, vivia enguiçando, o que culminou em um forte choque automobilístico, o primeiro de minha vida.
Como no dia seguinte ao choque tinha já programado um retiro de meditação Zen com uma monja e em um convento cristão, pude compreender não só o sentido dos insistentes sinais do Espírito, como também dos “truques” (segundo termos de Dom Juan) às vezes um tanto bruscos ou mesmo simpáticos, de que se vale o Espírito quando não fazemos caso de seus primeiros sinais.
Veio-me a clareza de que já era tempo de começar a sair da “clausura” em minha própria bolha de percepção, e para isso era necessário deixar meu carro, pois formava um autêntico prolongamento da minha bolha; compreendi que, assim como percorremos o mundo encerrados em nossas bolhas de percepção, também o fazemos em nossas bolhas automobilísticas como um prolongamento da nossa, sem estabelecer um verdadeiro contato com a Realidade.
O automóvel é como um autêntico resguardo protetor do “desconhecido”: o mistério do mundo que nos rodeia. Refugiamo-nos em nosso carro e em todo o “conhecido”: nossas casas, escritórios, lugares afins, amizades, familiares etc. Por que o fazemos? É como uma silenciosa fugida permanente do “desconhecido”, o grande mistério no qual vivemos imersos.
Para os autênticos bruxos da tradição cristã, a presença imanente de Deus no mundo é tão evidente, segundo constataram, que temos que alcançar a “purificação” necessária para suportá-la. Em nosso nível atual de consciência temos que nos proteger de ver diretamente a face de Deus, por isso só damos olhadelas de esguelha ao mundo que nos rodeia, mantendo-nos bem refugiados em nossa bolha mediante intermináveis diálogos internos e na tranqüilidade protetora do “conhecido”. Nos termos dos bruxos, carecemos da energia necessária para “ver” a essência do mistério que nos rodeia, e unicamente economizando suficiente energia poderemos contemplar como o transcendente está imerso no Mundo cotidiano.
Ao iniciar minha nova tarefa de caminhar pelas ruas da cidade, e transportar-me em mini-ônibus ou metrô, não podia acreditar na minha dificuldade de observar o que acontecia a meu redor. Os diálogos internos se intensificavam como uma forma de defesa, dizia a mim mesmo que o exterior carecia de interesse, pensava que era uma cidade feia e suja, igual aos seus cidadãos, e que era um perigo andar por estes lugares repletos de delinqüentes etc. etc.
Depois de um tempo, comecei a gostar desse não-fazer de andar pelas ruas e transportes públicos; comecei a me divertir na loucura controlada de disfarçar-me e agir como intelectual ou boêmio de cabelo comprido, para assim me proteger, mais do que dos delinqüentes, da autêntica paranóia que todo burguês tem com respeito ao mundo exterior. Porque, segundo me lembrei, Ken Wilber disse que toda barreira divisória criada por nossa mente dentro da Unidade de todo o existente faz com que o colocado do outro lado da barreira seja visto como distante e hostil.
Então me veio a imagem do mundo burguês como formando uma autêntica bolha que nos separa da “ameaçadora” Realidade. Com a moda de viajar, segundo manda o status, em grandes caminhonetes de vidros bem escuros, para não ver nem ser vistos do exterior, me apercebi de quão alienadas estão essas pessoas, metidas em suas bolhas automobilísticas, do mesmo modo que eu estava do mundo real formado pela imensa maioria da população que circula a pé ou em transportes públicos pelas ruas do México. Cheguei a sentir como estes últimos fossem os verdadeiros mexicanos, donos e senhores do nosso país, e os outros fossem estranhos ou estrangeiros, muito distantes da consciência coletiva do nosso povo.
Entusiasmado com minha nova prática de guerreiro e suas técnicas de espreita: estar atento e em observação alerta do mundo, depois de algum tempo ocorreu um fenômeno muito interessante: de repente experimentei, enquanto ia de metrô, como se me houvesse “colado” na consciência coletiva do verdadeiro México e que minha pessoa era recebida cordialmente por seus membros. Aqueles seres que me rodeavam, considerados por meu condicionamento burguês como “vulgares” ou “feios”, comecei a vê-los com uma estranha beleza que brotava para além de suas pessoas. Começava a sentir tal afeto por eles que um dia quase que me soltava, chorando diante de todos.
Experimentava belas sensações de minha infância durante a qual, segundo descobri, realmente me sentia pertencer ao povo mexicano, compartilhando com ele suas ruas, transportes, campos e povoados aonde me levavam meus pais nas férias. Suponho que esse amplo sentido de pertinência começou a diminuir desde a adolescência, justo quando, segundo Jung, se inicia o processo de “individuação”, e agora de novo se havia ampliado, desde meu mundinho burguês até a sensação de pertencer a todo um povo.
E, como um guerreiro seguindo sua estranha Viagem a Ixtlán até o “desconhecido”, ia me exilando dos mundos aos quais pertencia anteriormente, perdendo a identidade e afinidade com minha família, amigos, trabalhos e atividades do mundo burguês, porém ganhando em identidade com o mundo autenticamente Real que me rodeava.
Recordo como, nessa solidão pela qual há de passar o guerreiro, me sentia acolhido e como em família quando subia em um ônibus, às vezes apertado entre essa multidão de misteriosos porém belos rostos indígenas, que pareciam dar-me as boas-vindas ao seu mundo e consolar-me de meus “exílios”. De repente toda aquela suposta fealdade da cidade e sua gente havia recobrado grande beleza e significado que me fazia sentir feliz em meu novo lar e com minha nova família.
Agora vou lhe contar como foi que continuou se expandindo minha consciência (e portanto minha identidade): conforme ia me despojando dessa grande importância que dava à minha pessoa, ou seja, ao ir-me desidentificando de minha própria bolha, ao mesmo tempo minha consciência se identificava com a bolha de meu país; porém, segundo a Psicologia Transpessoal o processo não termina aí; é possível continuá-lo até a ambiciosa tarefa de intentar identificar-se com o planeta inteiro.
Como no início do caminho do guerreiro vivia em um estado de alienação, bem distanciado psicologicamente da realidade cotidiana e pouco me importando com o que ocorresse nesse “primitivo” planeta, achava estranho quando Carlos nos falava sobre a importância de nos perguntarmos: “Onde se encontra o homem em seu pensamento contemporâneo? Temos que saber onde estamos, temos que ter um romance com o conhecimento.”
Eu ficava intrigado sobre qual seria o significado de suas palavras, que dizia com tanta ênfase. Por fim o compreendi quando apareceu o livro de Florinda Donner, “Sonhos Lúcidos”, no qual li com grande interesse:
“Os feiticeiros devem encontrar qual o sentido não só do seu mundo mágico, como também do mundo cotidiano” – e acrescentava Florinda que eles procuram estar por dentro de tudo (em inglês “up to day”), e por esta razão Dom Juan e os outros xamãs se dedicavam a interpretar os aspectos sociais, históricos, psicológicos etc. de seu mundo.
Chamou-me muito a atenção que os bruxos se interessassem seriamente por este mundo que me parecia tão materialista e conflituoso, e de que estivessem tão atualizados sobre o que acontecia no mundo, pois segundo escreve Florinda, Silvio Manuel adorava ver TV e estava sempre em dia com as notícias do mundo, as mesmas que transmitia aos outros grosseiramente exageradas.
Outro bruxo, Emilito, deixava Florinda perplexa pelo fato de saber tanto sobre as tendências intelectuais do ocidente, e até chegou à incrível conclusão que, dado seu magnífico logro de poder integrar razão e intuição, os bruxos estão um passo adiante dos intelectuais do ocidente. Em seu romance com as idéias, cultivaram a razão até seus limites.
ABRIR AS ASAS DA PERCEPÇÃO
Estimulado pelas palavras do nagual e pelos textos de Florinda, empreendi minha nova tarefa. O objetivo era intentar “ver” o sentido dos acontecimentos mais que analisá-los de uma perspectiva puramente racional e, portanto, dualista (bons e maus, justos e injustos etc.). Sabia que o guerreiro tinha que se colocar em uma postura neutra, para ele não existem pontos de vista a defender, quer dizer, não toma partido de nada nem de ninguém, o que, até hoje, tem me custado enorme trabalho. Só à medida que se possa alcançar algo dessa imparcialidade contemplativa, nas palavras de Octavio Paz (do prólogo dos “Ensinamentos de Dom Juan”), é que então se pode chegar a ter revelações do sentido da história; poder chegar a “vê-la” em sua essência, ainda que seja por momentos, torna-a apaixonante apesar de seus conflitos e miséria.
Tive a sorte de ter iniciado esta “prática” de guerreiro de abrir as asas da percepção assim que caiu o Muro de Berlim, em um momento crucial da história segundo me foi revelado por um magnífico sinal: a Revolução Francesa, que é considerada o início da Era Moderna, teve lugar em 1789 e, justo 200 anos depois, em 1989, cai a Cortina de Ferro e o Muro de Berlim, e começa uma nova Era para a humanidade! Na realidade, compreendi que a obviedade deste sinal do Espírito é para nos conscientizar a todos de que existe um poder que rege os destinos humanos, tal como o afirmam os bruxos.
Desde o princípio comecei a ter um estranho interesse pelos acontecimentos mundiais e seus principais protagonistas. Via as notícias internacionais na Eco – uma rede de TV que logo desapareceu, como também aconteceu com o jornal que lia diariamente. Ao pôr minha atenção no que ocorria no mundo, fui percebendo como crescia meu interesse pelos acontecimentos mundiais.
Ao cabo de um tempo quase me apavorei quando descobri quão identificado estava com os eventos internacionais, já eram como parte da minha vida. Experimentava curiosas emoções e já não podia deixar de inteirar-me, dia após dia, do que ocorria no mundo. Minha mente quase alucinava: já percebia os líderes políticos como meus “heróis” ou “vilões” mitológicos, e me preocupava muito por eles, pelo que iam dizer ou fazer. Todo esse mundo que me era tão alheio deixou de ser o “desconhecido” e se transformou em algo tão familiar e conhecido; confesso que às vezes duvidava de minha sanidade mental.
Tranqüilizou-me e confirmou minhas afinidades recém-adquiridas com o mundo o fato de ler a volumosa obra de um dos maiores bruxos videntes de nosso tempo: o jesuíta Teilhard de Chardin, que além disso foi um renomado cientista no seu tempo. Ele “via” e expressava com satisfação como nosso planeta se vai transformando em um verdadeiro organismo vivo, processo que se intensifica nesses momentos de globalização mundial, fenômeno que nos vai unificando tanto humana e psiquicamente (formando o cérebro desse organismo), como também pelo comércio e pelas finanças (que constituem seu sistema nutricional, sangüíneo e linfático) e pelas telecomunicações (seu sistema nervoso).
Da mesma maneira como se forma a unidade do átomo a partir da integração de partículas subatômicas e os átomos, por sua vez, formam unidades maiores de moléculas e da aglutinação destas surgem as células até chegar a organismos mais complexos que culminarão no homem, assim Teilhard “viu” como agora os humanos estamos formando, à maneira de átomos ou células conscientes, uma nova unidade: um super-organismo planetário. Seguindo esta linha evolutiva de caráter biológico, o próximo passo que insinua Teilhard para nosso planeta será nos transformarmos, já plenamente unificados, em uma nova “célula” que por sua vez formará, com todos os planetas viventes, outro organismo cósmico.
Deu-me gosto encontrar uma corroboração disso no texto que aparecia no terceiro vídeo de Tensegridade gravado pelos bruxos: os xamãs asseguram que a consciência do homem pode chegar a dar um salto gigantesco com relação à sua percepção e realmente chegar a perceber o mundo sob condições que desafiam a imaginação. Eles acreditam, por exemplo, que é possível perceber e interpretar o mundo em termos de outros organismos que pertencem a diferentes tipos filogenéticos.
Quer dizer, ainda que o planeta não pertença ao mesmo “filos” ou tronco dentro da árvore genealógica da evolução dos organismos vivos que culminaram no ser humano, não obstante pode-se chegar a percebê-lo e interpretá-lo tal como um autêntico organismo ou sistema vivente com seu próprio processo de evolução.
É evidente que este nível de percepção ou de consciência total havia sido alcançado por Dom Juan e Dom Genaro no momento de sua suposta “partida” deste mundo, conforme revelaram na comovente despedida final ante seus aprendizes Pablito e Carlos Castaneda.
_ Pode nos falar de outro índice do qual lhes tenha falado Carlos Castaneda?
_ Outro índice que lhe permite entrar nas proposições práticas dos bruxos é romper as rotinas da vida, porém em especial as rotinas mentais. Uma das formas mais efetivas de se romper nossas rotinas mentais é espreitando suas repetições como se fôssemos um caçador.
Carlos dizia que nós não usamos todos os nossos recursos, somente os do mundo cotidiano: o mundo da previsibilidade, do eu: “Vivemos em um mundo onde tudo é previsível, sempre estamos defendendo algo e sempre usamos as mesmas maneiras de sair das situações, que tédio! O modo de ir contra isso é tornar patentes nossos hábitos, observar ou “espreitar” nossas ações e pensamentos repetitivos. Quando nos damos conta disso, saímos da situação: isso é a liberdade.”
Para os bruxos o caminho da evolução sempre vai do “conhecido” ao “desconhecido”. Detecta-se quando enfrentamos o desconhecido pelos efeitos emocionais que nos cria: nos enchemos de emoção, nos exaltamos e até sentimos medo. Por outro lado, a familiaridade do conhecido engendra tédio e complacência. Definiu:
“A rotina é um estupefaciente que nega o vôo da imaginação e estanca a capacidade de mudança. As rotinas mentais são um grande obstáculo para superar as contradições e incongruências que acreditamos encontrar no caminho do conhecimento. Quando modificamos os parâmetros de pensamento, elas desaparecem. A existência verdadeira não está ao alcance de nossa mente. A realidade do bruxo é experimental.”
_ Como definir em poucas palavras o Caminho do Guerreiro?
_ O sistema de ensinamentos de Carlos Castaneda pode ser sintetizado como um não-fazer, o qual pode ser explicado como a prática contínua de uma série de ações contrárias ao que costumamos fazer no mundo. O não-fazer está dirigido, entre outras coisas, a romper nossas próprias rotinas, e sobretudo a alcançar a autêntica liberdade psicológica e espiritual. Por exemplo, todo mundo busca ser alguém, sobressair, ser importante, reconhecido, o qual, obviamente, é uma escravidão. Pois bem, um guerreiro sai desse estereótipo, em lugar de pretender ser alguém se aceita tal como já é, com a máxima humildade, ou seja, o contrário do que costumamos fazer, e busca entre seus recursos internos a forma de ser impecável.
Tentando praticar o não-fazer de suspender o diálogo interno, um dia tive a estranha experiência de sentir que o mundo girava na minha cabeça e de repente se detinha, produzindo-se um grande silêncio em minha mente; quanta paz e liberdade senti! Nesse momento compreendi a essência do caminho do guerreiro: parar o mundo ou, o que dá no mesmo, alcançar o silêncio interior. É como se conseguíssemos escapar do mundo, porém não do verdadeiro, e sim do mundo que trazemos em nossa mente: da rotina, da dor, da preocupação, da obsessão, do temor, da insegurança, da importância pessoal etc. etc.
_ Como você compreendeu o conceito da morte como companheira do guerreiro?
_ O que dá ao guerreiro sua força de decisão é enfrentar a morte. A Morte é talvez o mais importante conceito simbólico dos livros de Castaneda, que abarca vários significados. Naquela visita que fiz com o nagual a Cacahuamilpa, pude constatar um deles. Carlos provocou em Jacobo Grinberg o que mais tarde haveria de ocorrer comigo, e em forma permanente: o toque da morte ou da “tumbadora”, como também é chamada por seus contínuos embates. Somente umas palavras do nagual bastaram para que Jacobo entrasse em um processo de morte simbólica; sendo um grande investigador ele ia nos descrevendo com detalhes suas vivências durante a descida às grutas, todas as suas sensações emocionais e corporais, que comumente costumamos interpretar como depressão.
O que sofreu o pobre Jacobo foi uma boa lição para nos irmos familiarizando com esses toques da morte, indispensáveis para nossa evolução pessoal. Ao compreender seu significado, deixei de lutar contra a depressão e esta foi diminuindo em duração e intensidade; agora procuro, cada vez que tenho uma aflição ou dor, reconhecer nelas o golpe da “tumbadora”, e me consola repetir aquela frase de Hermann Hesse: algo está morrendo em mim.
O guerreiro faz amizade com a morte, familiarizando-se pouco a pouco com seus “toques”: essas mortes parciais (segundo termo de Teilhard de Chardin) que se acentuam neste caminho em conseqüência da perda paulatina do que Dom Juan chamava “resguardos”: apegos, dependências, identidades, ideologias, rotinas etc.
Ainda que todos estejam expostos aos contínuos embates da “morte”, ao entrar na senda do bruxo seu trabalho se intensifica pois “ela” é a encarregada de nos empurrar sem misericórdia para a evolução, despojando-nos pouco a pouco dos “resguardos” do mundo cotidiano, até que não nos resta outra possibilidade senão nos comprometermos com os baluartes do caminho do conhecimento do guerreiro.
E, transcorridas todas as mortes parciais de nossos resguardos, apegos e dependências, o guerreiro experimenta (literal e figuradamente) a morte total, condição necessária para alcançar a consciência total, ou seja, a consciência da unidade do homem com tudo o que o rodeia.
“Só quando se encara a morte total, se alcança a liberdade total”, nos dizia Castaneda.
É a percepção sem “barreiras” nem “fronteiras” que nos dará a liberdade total, a qual diz Dom Juan que só chega aos guerreiros quando já não lhes resta nada de importância pessoal: só quando são nada se transformam em tudo.
Quando li isso no livro de Castaneda, quase não podia acreditar como se parecia com o dito por São João da Cruz: para chegar a ser tudo, não queira ser algo em nada, e, para cúmulo de sua semelhança com seu xará Dom Juan, em outra parte escreve São João: ...e quando vier a se tornar em nada, que será a suprema humildade (quer dizer, a morte total da importância pessoal) estará feita a união do matrimônio espiritual entre a alma (humana) e Deus. Como o místico percebe Deus já não apenas como algo transcendente, senão também como algo imanente ou integrado plenamente ao mundo. Daí que o santo acabe se referindo a Deus como o Todo: quando alguém repara (ou se resguarda) em algo, deixa de lançar-se ao todo; para alcançar de todo ao todo, tem que deixar tudo de tudo. Ou seja, tem que deixar todos os resguardos e sobretudo o da importância pessoal.
_ E qual a razão de que a morte seja a única companheira sábia que temos?
_ A Morte se torna a eterna companheira do guerreiro e por isso diz Dom Juan que é a única companheira sábia que temos. Uma de suas magistrais maneiras de nos ensinar experimentei durante uma viagem de avião à Espanha que tive o privilégio de fazer com o nagual.
Castaneda era um grande vidente, sabia da vida e milagres de cada um de nós; bastou um comentário, durante o vôo, sobre um aspecto “desconhecido” de minha vida para que o impacto de suas palavras me pusesse ante a presença da Morte. A lição também era ver como eu manejaria o encontro com a “tumbadora”, sem me justificar nem me defender. A princípio fui bem, e pude observar sua expressão de satisfação; mas, em poucos minutos caí no de sempre: a negação de uma realidade pessoal que não me agradava em nada.
Com o tempo compreendi que um dos mais sábios ensinamentos da “morte” com seu devastador toque é mostrar-nos essas realidades traumáticas que os bruxos denominam “o desconhecido que ninguém quer conhecer”; se as rechaçamos, perdemos a grande oportunidade de recapitulá-las e assim transmutar e transcender nossos problemas.
_ Por que você fez uma viagem com o Nagual para a Espanha?
_ Antes dessa viagem já havia ido à Espanha para dar uma conferência em um congresso internacional de questões espirituais; o culpado dessa louca aventura foi Jacobo, que havia contado aos organizadores acerca de minha análise comparada entre os que eram para mim o máximo santo espanhol e o máximo xamã mexicano: San Juan (de la Cruz) e Dom Juan (Matus).
Gostaram tanto de minha conferência que, ao sair do teatro, encontrei um bom número de fãs que me bombardearam com perguntas. Daí surgiram alguns apaixonados pelo caminho do guerreiro que mais adiante eu presumiria como meus discípulos. Ainda que me parecessem gente valiosa, pus isso em dúvida quando falei com o nagual sobre eles e se interessou em contactá-los pessoalmente: “Bem, nagual, não creio que valham tanto a pena para que você vá até a Espanha conhecê-los”, disse, preocupado de que minha boa apreciação sobre eles tivesse mais a ver com minha vaidade de sentir-me seu mestre. Entretanto, o nagual insistiu e muito susto levaram quando lhes informei por telefone que tinha havido uma “pequena” mudança de planos para nossa reunião, pois estaria nada mais nada menos que Carlos Castaneda em pessoa, e depois chegariam as poderosas bruxas Miuni, a mulher nagual, e Nuri, a filha simbólica de ambos.
Eu estava tão feliz com tão maravilhosa companhia de viagem, que não me importou nada que, durante suas palestras em Madri, dissesse “pestes” de mim, desprestigiando-me diante dos que eu considerava meus admiradores. Além disso, no fundo havia uma autêntica satisfação quando o nagual falava de alguém, ainda que mal. E sobre meus temores de que meus discípulos espanhóis o decepcionassem, fiquei de boca aberta quando me disse:
“Ao apresentar-me a estes espanhóis e a Carlos de León (no México), você se redimiu do mal que tinha ficado comigo com o bando de gurus que convidou para minhas palestras no México.”
Ante essas inesperadas palavras de Castaneda, ditas como sempre com bom humor, tentei me explicar, mas comecei a gaguejar, o que costumava acontecer quando estava com ele e ato contínuo o nagual imitava com simpáticos gestos meus gaguejos. Com resignação aceitei o que me insinuava: em geral, os líderes ou mestres dos mundos esotéricos, espirituais ou religiosos, como muitos dos que havia convidado, estavam cheios de importância pessoal e, como lhes era tão gratificante sua posição social, não alcançavam a liberdade.
Eu também havia caído em um dos maiores perigos do caminho de evolução individual: converter-me em guru e, entre outras gratificações, podia relacionar-me com as pessoas com facilidade, pois, de uma posição de superioridade, quem ia me tratar mal!
Essa era precisamente uma das funções mais importantes do caminho do guerreiro: à diferença dos bruxos do passado (entendendo por bruxo a pessoa que transcendeu o nível egóico-racional de consciência), os quais ocupavam posições sociais reconhecidas e respeitadas como profetas, sacerdotes, xamãs, monges, saniasin, curandeiros, adivinhos, alquimistas, ascetas etc.; na atualidade, é o contrário: um verdadeiro bruxo causa temor e desconfiança a uma sociedade que vive fortemente apegada a suas estruturas egóicas e se sente ameaçada com qualquer um que as transcenda.
Para evitar isso, o caminho do guerreiro, mediante as técnicas de espreita e loucura controlada, permite ao bruxo esconder sua verdadeira natureza no mundo cotidiano e assim evitar tornar-se um presumido dos mundos esotéricos.
_ Como se pratica a técnica da loucura controlada?
_ Dom Juan dizia que todo mundo vive em uma loucura sem fim e que o que o guerreiro tem que fazer é viver essa mesma loucura, porém conscientemente controlada.
A pessoa quase que tem que se tornar um ator, mas, na realidade, não é algo falso, e sim, que utilizamos nossas próprias “subpersonalidades” ou modos de ser que mais nos convenham para ocultar nossa realidade “bruxeril”. Por exemplo, apesar de minhas inseguranças, comecei a aplicar a técnica de espreita para tentar ser simpático e encantador com as pessoas, e não obstante meu medo do ridículo, chegava às reuniões saudando e abraçando todo mundo com euforia e simpatia. Surpreendi-me ao ver que é possível desenvolver esta técnica de espreita sem deixar de ser autêntico, pois na realidade todos temos essa outra personalidade encantadora; ainda que às vezes esteja muito escondida, como no meu caso, só temos que pô-la para funcionar e notar como as pessoas ficam literalmente encantadas. Ficava cheio de energia quando podia me manter na loucura controlada consciente; em compensação, podia comprovar como se perde energia quando se usa de maneira inconsciente as “máscaras” da importância pessoal no trato com os outros.
Carlos definiu a espreita como a arte de comportar-se na vida cotidiana, uma forma de conduta não usual que lhe permite viver coisas insólitas. É a capacidade de estar aí, onde antes não podia, de permanecer em situações que afetam sua importância pessoal, sem delatar-se.
Esclareceu que a loucura não é um artifício de ator, e sim seguir as regras do jogo. Implica suspender os juízos, deixar de julgar moralmente, nos relacionarmos com nossos semelhantes de maneira total, sem esperar recompensa de nenhum tipo. Se não há expectativas, o ato em si é total e completo, e digno de um guerreiro.
Contudo, a espreita não se limita a como nos comportar diante de nossos semelhantes. Vai muito além. É a capacidade de compreender com a totalidade do nosso ser que o aqui e agora é tudo que existe.
Um espreitador se entrega à situação como se fosse final, se entrega a sua relação com toda sua alma. Não espera nada mais além do momento, porque, na realidade, não há nada além.
Para o guerreiro, o ponto mais importante no jogo que tem com o mundo cotidiano é a capacidade de entregar-se por inteiro e logo retirar-se. Isso é espreita. O grande descobrimento dos antigos foi a espreita.
Em um mundo que é produto de uma interpretação não há realidades absolutas. A única coisa que nos cabe é nos dar conta disso e controlar nossa loucura. Espreitar é usar todos os nossos recursos, sacar, por exemplo, o eu simpático e encantador que está aí, debaixo da nossa pele, e pô-lo a trabalhar. É nos conhecermos, ativarmos nossos “eus”. É muito fácil sacar o eu resmungão quando nos sentimos tentados à ira! O difícil é ser encantador e cultivar as condições do guerreiro espreitador.
A espreita é a ferramenta principal do bruxo no trato cotidiano, porque é a única que lhe permite dissimular o fato real de que ele não participa das crenças do mundo. Tem outra sintaxe e, do ponto de vista das pessoas comuns, essa outra sintaxe é loucura.
AS PURIFICAÇÕES ENERGÉTICAS DO NAGUAL
A espreita e a loucura controlada – como todos os conceitos dos bruxos – costumam ter vários significados e às vezes se tornam difíceis de explicar de maneira teórica. Porém, o nagual podia fazê-lo demonstrando-o mediante seus atos.
A prática da espreita é algo assim como agir ou dizer algo de tal maneira que o verdadeiro sentido ou objetivo essencial desses atos ou palavras permanece oculto. Uma forma de espreita que o nagual praticou conosco, e que até hoje tem efeitos sobre mim e sobre outras pessoas, porque afetou de maneira profunda nossa importância pessoal, deu-se durante o processo de fundar a Casa Amatlán.
_ O que é a Casa Amatlán?
_ Foi um centro que havia planejado com Mariví para dedicar ao Estudo e Desenvolvimento da Consciência, mas que acabou sendo um experimento que supostamente o Espírito realizou com um grupo de aspirantes a guerreiros. Quando o nagual se inteirou desse projeto, me causou estranheza seu grande interesse, a ponto de nos oferecer dar ali suas palestras e a prática de exercícios que a princípio chamou de passes mágicos e depois de Tensegridade; de fato, foi um dos primeiros foros públicos em que foi praticado. Chegamos a nos iludir tanto que pensamos que teria lá sua base de operações; algo que não seria possível, pois nos esquecemos de que os bruxos não se põem ao alcance do mundo.
Para concluir a remodelação da casa sugeriu que participassem os supostos aspirantes a guerreiros: Mariví, Perla, Heiko, Matias, Georgina, e Hidalgo, e também colaboraram Eddy e Alejandro. O que então ocorreu foi para mim o melhor exemplo deste tipo de espreita do nagual: fundar o centro nunca foi o importante, o essencial seria o terrível e poderoso processo de purificação energética que se daria durante a convivência entre esse grupo devido a termos ficado expostos durante bom tempo às irradiações energéticas do nagual.
A princípio não conseguimos compreender o seguinte lema que Carlos sugeria:
“O lema do centro será: ‘Ou caguem, ou se caguem!’ E devem colocá-lo no ângulo superior esquerdo do papel timbrado”, disse com grande solenidade.
Deixou-nos em um estado de inquietude e riso nervoso, mas não tardamos muito a perceber o sentido da frase: ou praticávamos a “recapitulação” de nossas vidas, técnica mediante a qual descobríamos, entre outras coisas, nossos eventos traumáticos para descarregá-los de sua energia destrutiva, ou, por não o fazer, acabaríamos por lançar esta energia sobre os outros, nos “cagaríamos” sobre os outros durante nossa contínua convivência.
Foi assim que logo começamos a manifestar nossa “caca” pessoal e, não só isso, nós a atiramos uns nos outros, enredados em tremendas discussões! Todos ficamos surpreendidos com o irracional de nossas condutas. Já não havia dúvidas sobre o poderoso efeito purificante da energia do nagual.
Como o nagual sabia perfeitamente que isso ocorreria, nos encarregou de uma estranha tarefa que consistia em nos reunirmos a cada semana durante meia hora “e não mais”, para nos dizer as coisas “até o fim”, ou seja, dizer tudo que estávamos pensando ou sentindo pelos demais. Era uma forma de desafogo de todas estas transferências psicológicas e energéticas que seriam geradas, mas não devia se prolongar muito para não acabar em discussões intermináveis. Por desgraça, não cumprimos esta tarefa que teria podido amenizar os efeitos das irradiações nagualescas.
A RECAPITULAÇÃO
O que nos ia magistralmente demonstrar era a quantidade de “porcaria” que nos contaminava por dentro, a qual se faria evidente ao aumentar nosso nível de energia graças aos empréstimos energéticos dos bruxos. Com esta lição e só assim sentiríamos a urgência de diluí-la em particular mediante a prática de uma das mais importantes técnicas do guerreiro: a “recapitulação”. Não se trata de psicanálise, ainda que também funcione como tal, e sim uma espécie de transmutação ou transformação em nível energético das sensações, emoções ou sentimentos, sejam prazerosos ou dolorosos; quer dizer, de todas essas cargas energéticas geradoras de nossos apegos, temores, arrogâncias, debilidades, sofrimentos, impulsos destrutivos, etc., o que para Jung forma o conteúdo da nossa “sombra”.
Advertiu-nos que, enquanto estivéssemos envolvidos em tais atividades, não racapitulássemos uns aos outros nem tampouco a ele, porque se tratava de mesclar “ex professo” nossas energias e assim nos manter unidos por meio de laços energéticos. Esta é precisamente uma outra função desta técnica: romper os vínculos energéticos que nos prendem às pessoas, instituições, ideologias, identidades etc.; ou seja, o que chamamos apegos e dependências operam em nível de energia.
PERDER A IMPORTÂNCIA PESSOAL
O objetivo desta espreita do nagual era confrontar nossa importância pessoal e, por conseqüência, nossos traumas, condicionamentos, auto-compaixão, etc., que fazem com que nos sintamos a melhor coisa do mundo. Dizia-nos coisas impressionantes a esse respeito:
“O sentir-se importante faz com que a pessoa gaste noventa por cento de sua energia em defender-se. Se não se levam a sério, se não se sentem divinos, não há insulto moral e, em conseqüência, ninguém pode afetá-los. Já não me levo a sério para nada, no entanto meu trabalho é seriíssimo! Quando sabemos que valemos um pepino, somos capazes de enfrentar tudo. Aprendam a cair no chão, a deixar de sentir-se como príncipes, a redimir-se das sugestões de sua própria mente. Se não me considero um ser extraordinário, estou salvo!”
_ Como Carlos levou os conflitos que surgiram entre vocês?
_ Ainda que pareça incrível, com muito humor! Ele havia calculado exatamente nossas reações e me inteirei de que os bruxos se riam às gargalhadas quando conversavam entre si sobre nossas brigas.
Eu havia sido o pior de todos os que nos reunimos ali, sempre queria impor meu ponto de vista aos outros, mas foi a melhor oportunidade que tive em minha vida para descobrir minha enorme importância pessoal.
Ele aproveitou nossas características pessoais que conhecia bem através de sua vidência para nos dar boas lições. Ele sabia que eu entrava em conflito com as mulheres com as quais me relacionava intimamente. Para estimular minha neurose, Carlos começou a ter deferências para com Mariví, as mesmas que geraram uma rivalidade com ela:
“Encarregue-se você de inaugurar a Casa Amatlán, porque este ‘bundão’ do Hidalgo não vai fazer nada”, disse a ela um dia.
Esse foi o primeiro encontrão. Logo estávamos os dois dando ordens e tentando tomar o lugar um do outro, apoiados na autoridade do nagual.
Supõe-se que as circunstâncias que ocorreram na Casa Amatlán eram “truques” do Espírito para nos dar uma série de magistrais lições sobre nossa realidade psicológica e energética. Como era tão angustiante para mim, já estava por abandonar o projeto do Centro de Estudos e assim teria feito se não fosse pelas palavras de Castaneda:
“Hidalgo, esta casa lhe foi enviada pelo Espírito”, estimulando-me a não deixar passar esta grande oportunidade de crescimento pessoal, como depois compreendi.
Em uma ocasião, Jacobo Grinberg me elogiava por telefone ao nagual, por lhes haver feito ver a maneira magistral com que nos envolvia nos estratagemas de espreita. De repente ele ficou calado e sério quando escutou do nagual: “Diga ao Hidalgo que não seja idiota, quando aprenderá que tudo isso é realizado pelo Espírito!”
Deixou-nos intrigados o fato de que situações tão tremendas, absurdas e mesmo agradáveis fossem planejadas por esse Poder superior do qual temos uma imagem tão diferente e seguramente tão limitada.
Seria errôneo julgar tais manobras ou estratagemas com um critério comum e corrente.
Ele dizia que não tinha a capacidade de criar estas situações; que suas brincadeiras com a atenção nos eram postas pelo Espírito, e ele mesmo desfrutava e aprendia com tudo isso como se fosse mais um espectador. E aqui novamente rompia com outro de nossos paradigmas: que o Espírito se manifestasse fazendo semelhantes brincadeiras e até “truques”, como lemos em seus livros.
Apesar de nossa ineficácia por causa de nossos contínuos conflitos, por fim a casa se transformou em um centro de estudos (ainda que não o de Castaneda, conforme ingenuamente acreditáramos). Depois soube que Carlos me havia posto o apelido de “guano” (fertilizante feito de excremento animal); a princípio o senti quase como uma ofensa, porém logo entendi que era um autêntico elogio, pois com toda minha “caca” neurótica que havia lançado durante a reforma da casa, a havia fertilizado para que nascesse um centro de estudos.
_ Explica-nos o que é o pequeno tirano.
_ Neste caminho a pessoa tem que explorar-se e afinar-se com verdadeira paixão para ter sequer uma oportunidade de chegar ao estado de impecabilidade. A fim de conseguir isto, os naguais têm muitos métodos, e a interação com um pequeno tirano é provavelmente o mais eficaz.
Respondendo a uma pergunta que lhe fiz, Carlos me explicou que a maioria de nós somos tiranos para os outros; de alguma maneira, sempre estamos afetando alguém com nossa importância pessoal e quanto mais a temos, mais pequenos tiranos somos dos outros, queiramos ou não.
Por outro lado, nos dava a entender que encontrarmos um bom tirano era um privilégio e quase nos sugeria buscar inimigos tenebrosos, adversários de valor cheios de importância pessoal.
Esse tipo de encontro, segundo ele, é o que verdadeiramente pode nos dar a força e a sensatez necessárias para resistirmos ali onde não há nada familiar ao qual nos aferrar, para enfrentarmos o “desconhecido”. Nunca se pode menosprezar um pequeno tirano como recurso para nosso desenvolvimento.
“Se não somos capazes de enfrentar o pequeno tirano, dificilmente poderemos enfrentar algo tão grande como o desconhecido.”
É algo muito difícil de descobrir, mas na realidade lutar contra o pequeno tirano é lutar contra nossa própria importância. Se podemos enfrentar a nós mesmos com estratégia de guerreiros, então descobriremos o desconhecido que ninguém quer conhecer, ou seja, tudo o que é desagradável em nós e não queremos reconhecer; porém, se aprendemos a lidar com isso, nos proporciona uma valiosa energia e com o tempo a liberdade.
Levei muito tempo para compreender que o verdadeiro tirano de nossa vida é o ego, e este sempre temos à mão. O adversário de valor de que falava Dom Juan é uma metáfora do ego, porque projetamos tudo fora de nós e é mais fácil ver nossos problemas refletidos nos outros.
Assim como idealizamos as pessoas, exagerando suas boas qualidades, também ofuscamos os que nos atacam, vendo caricaturas que, em realidade, são apenas reflexos de nossos traumas.
Enfrentar o pequeno tirano é um não-fazer enorme, posto que o fazer natural na etapa egóica de consciência é fugir e nos defender de tudo e de todos. Por outro lado, dar boas-vindas a alguém ou algo que nos faça a vida impossível comove seriamente os parâmetros da percepção, de modo que a pessoa entra no “desconhecido”.
“Temos que usar o pequeno tirano como uma oportunidade de mover o ponto de encaixe a uma nova posição”, dizia-nos Castaneda, referindo-se à passagem para um nível de consciência superior.
Para o guerreiro não há nada bom ou mau na vida, tudo na realidade é um desafio, e enfrenta o que quer que seja com uma estratégia consciente. Todo pequeno tirano nos faz evoluir, e, como esse é o sentido da existência, Dom Juan alegava de maneira bem-humorada que o verdadeiro e máximo tirano é o Criador da existência, os demais são “pinches ou repinches tiranitos”. Ou seja, vendo a vida somente de uma perspectiva racional é fácil considerá-la uma tirania: nesse nível de consciência dualista percebemos tudo como pares de opostos: alegria e tristeza, bem e mal, etc.
Carlos procurava se comportar como um pequeno tirano com todos nós, mas, ao mesmo tempo, era de uma maravilhosa gentileza e estimulava nossos autênticos feitos de consciência.
Com os mais chegados, sua conduta chegava a ser exasperante em algumas ocasiões, porém também produzia resultados únicos no nível da consciência. Nunca perdia a oportunidade de fazer críticas irônicas aos nossos atos e vidas. Recordo que, em certa ocasião, um psicólogo espanhol que se reunia com a gente disse em tom de espanto: “E pensar que quando eu for da confiança do nagual ele vai me tratar assim!”
_ Fala-nos sobre sua experiência com as práticas de Tensegridade.
_ Foi na Casa Amatlán que pela primeira vez Castaneda nos deu os passes mágicos que mais tarde denominou Tensegridade. Na realidade, a princípio não me interessou muito a prática desses exercícios, que posso descrever como uma combinação de artes marciais orientais, ainda que tenham suas próprias características originais. Sempre buscar o intelectual fazia com que o corporal me fosse desdenhável.
Mas, ao ver o interesse do nagual em nos ensiná-los, não me restou outra alternativa senão colocar todo o meu empenho em praticar esses movimentos tal qual nos ensinava, mas, com minha incompetência para o corporal, nem assim os aprendia. Entretanto, tranqüilizou-me descobrir que cada um os fazia à sua maneira e não seguiam com exatidão os movimentos tal como agilmente nos mostrava Castaneda, mas ele não se importava e quase não fazia nada para nos corrigir.
Quando estávamos em Los Angeles nos mostrou novos exercícios junto com uma dúzia de “gringos”, que ao que parece eram como um grupo piloto de experimentação dos passes mágicos e aí também notei certa liberdade que lhes dava para fazer os movimentos. Estranhei que cada vez nos dava novos exercícios e, em lugar de repassar os anteriores para ver se os havíamos aprendido, ao contrário, nos dava mais e mais. Depois nos informou que havia centenas desses passes e nos ia dar todos; que enorme tarefa me esperava! Se apenas podia aprender alguns. Digo-lhe isso porque foi a chave para entender o sentido desses exercícios.
Era tal a importância que dava o nagual tanto à recapitulação quanto à Tensegridade que isso exercia grande pressão sobre mim e me obrigava a praticá-los diariamente apesar de minhas resistências. Contudo, pouco a pouco fui sentindo um certo bem-estar físico, e uma maior força e energia ao praticá-los, o que depois de um tempo se transformou em um prazer e mais adiante quase em uma necessidade.
Porém, quando já se praticava a Tensegridade em eventos em massa, meu problema de aprender tal quantidade de novos passes me levou a uma crise, a ponto de deixar de assistir a esses eventos e até suspender por um tempo sua prática.
Não me lembro exatamente como ocorreu: de repente um dia decidi reiniciar minhas práticas e, ainda que pareça incrível, como que meu corpo começou a mover-se por si só e efetuar imitações desses exercícios que me havia esforçado em aprender. Deixei-me levar por esse impulso corporal e aquilo se converteu em um tipo de dança, a qual, para minha grande surpresa, fazia quase involuntariamente.
A experiência me colocou em um profundo silêncio interior e se mostrou muito prazerosa, era como um toque do Espírito, segundo confirmei em um texto de Castaneda. Comecei a repetir a experiência até que um dia “soube”, não sei como, que se tratava de minha própria dança de guerreiro e de certa maneira era executada por meu “duplo” ou corpo energético juntamente com meu corpo físico, valendo-se das memórias do que foi aprendido inconscientemente por toda essa quantidade de passes mágicos.
Então compreendi porque nos saturavam com tantos e tantos exercícios: a memória corporal mais que a intelectual os ia gravando até que algum dia surgisse a própria expressão individual da Tensegridade, que, embora tendo semelhança com os demais exercícios, chegaria a ter nosso selo particular.
Com a prática de Tensegridade, cheguei a me admirar da pouca importância que dava ao corpo. Agora já posso entender porque Dom Juan disse que o corpo é a arma mais poderosa do guerreiro, e porque para nossa evolução pessoal é indispensável integrá-lo à nossa mente, segundo afirma a Psicologia Transpessoal.
Creio que minha dança de Tensegridade foi fundamental em meu trabalho de desenvolvimento da consciência, a riqueza e a expressão de certos movimentos que se dão graças a ela têm-me permitido cultivar o bem-estar e o poder energético de meu corpo, o que implica o desenvolvimento do duplo energético, o despertar do Fogo Interior (a Kundalini) e algo muito necessário para mim: descer da cabeça à Terra através do corpo, para assim poder fazer contato com o mundo real.
_ Quando você começou a receber ensinamento mais direto de Castaneda?
_ Foi na época em que me dedicava a tomar quantos sesshin (retiros intensivos de meditação Zen) houvessem no México, de todas as linhas e mestres. Era fanático pela Meditação. Assim, fazia tempo que havia começado a me aprofundar no Cristianismo Místico – em especial o de São João da Cruz – e costumava retirar-me com freqüência em monastérios cristãos para praticar a meditação ou oração profunda; inclusive cheguei a ter boas experiências místicas.
Havia abandonado a leitura dos livros de Castaneda que tanto me fascinavam, até que um dia me procurou aquele que foi seu contato e editor no México, Fausto Rosales, pedindo-me que conseguisse um bom lugar onde o nagual pudesse dar uma palestra e que convidasse gente interessante. Pois bem, como tudo o que acontecia com relação aos bruxos, tive a grande sorte de que nos emprestassem um belo salão colonial recém-restaurado, o qual nem sequer havia sido inaugurado e estava localizado nada mais nada menos que atrás da Catedral Metropolitana, justo onde antigamente se localizava o Templo Maior da Grande Tenochtitlan, que lugar para escutar a sabedoria herdada dos antigos mexicanos!
De acordo com minha importância pessoal, coloquei-me na primeira fila, bem em frente ao nagual, inclusive sentado adiante de Florinda. Mas graças a essa colocação, a vidência de Florinda pôde detectar o que depois me explicaram.
No dia seguinte, ligou-me o mesmo Carlos Castaneda pela primeira vez, e um tanto jocosamente, mas de maneira afetuosa, me disse:
“Olhe, xará, que loucuras tem estado fazendo, mas com suas meditações ou seja lá o que for você economizou muita energia, venha me ver no Hotel Caminho Real para conversarmos...”
Tive a sorte de chegar tão rápido que pude encontrá-lo no momento de fechar a conta na recepção do hotel bem na hora de partir. Disse-me que se havia apresentado uma urgência e tinha que adiantar sua partida. Como não esperava ver-me, nosso encontro ali foi considerado por ele como um bom augúrio.
A partir desse momento começaram as maravilhosas conversas telefônicas de Los Angeles.
“A meditação o engasta em você mesmo”, disse-me em uma delas.
Não obstante os benefícios que me havia trazido ao nível de energia, fez-me ver como o tipo de meditação ao qual eu me dedicava naquela época era um resguardo para mim, algo assim como pegar uma pedra preciosa e engastá-la em uma bela moldura de metal: a pessoa fica enganchada na própria imagem. Por isso que eu continuava sendo um “egomaníaco”.
Com o tempo compreendi que mover o ponto de encaixe (ou o ponto luminoso onde se encaixa a percepção), como denominam a passagem a outro estado superior de consciência, tal como ocorre na meditação, pode ser realizado de maneira contínua com a prática dos índices ou técnicas dos bruxos, e com menor perigo de cair na importância pessoal. Além do mais, ainda que na meditação se alcancem níveis elevados de consciência, ao terminar de meditar se volta ao estado normal de consciência, que em sua linguagem é voltar à posição fixa do ponto de encaixe no lugar da razão.
Eu havia estudado na Psicologia Transpessoal que o sentido da evolução individual consiste em transcender o nível de consciência egóico-mental para alcançar outros níveis superiores de consciência. Com os não-fazeres dos bruxos este objetivo vai sendo alcançado de maneira tênue, porém contínua, até que chegue o momento em que o ponto de encaixe se fixe em uma nova posição, ou seja, em outro nível de consciência.
Como em todas as tradições, no Cristianismo ou no Zen existem técnicas para se tentar manter continuamente em outros estados de consciência, até que esse “estado” se transforme em nível de consciência e se mantenha de maneira permanente, mas já na vida cotidiana a prática das técnicas de mantra ou koan ou oração contínua e outras, eu me esquecia constantemente ou não me entretinham tanto quanto as técnicas de Dom Juan.
O que me pareceu tão interessante no sistema de Dom Juan é o seu pragmatismo: nos dá oportunidade a todo momento, já que para o guerreiro qualquer circunstância da vida significa uma batalha de vida ou morte, o que nos obriga a estar em contínua prática, em estado de alerta ou “espreita”. Se estamos em plena batalha não podemos andar distraídos com nossas preocupações e diálogos internos, podem nos matar. Agir como um guerreiro era suspender minha maneira habitual de conduta, a qual operava quase automática e semiconscientemente. Alguém me deu esse exemplo: assim como os pilotos de avião quando já se sentem seguros ligam o automático e já não têm que estar muito conscientes de como voa o avião, assim nós o fazemos com nossa vida: botamos no automático e deixamos de estar e agir plenamente conscientes.
_ Poderia falar algo sobre suas experiências místicas?
_ Tal como lhe contei, havia me esquecido quase por completo de Dom Juan ao entrar de cabeça no Zen e no Misticismo cristão. Pois bem, um dia comecei a experimentar o que se denomina uma presença mística, uma vivência muito bela de alguém ou algo do “além” que o acompanha, guia e transmite seu pensamento através de idéias que chegam à sua mente.
Pensei que era Cristo ou mesmo Deus Pai que me falava e assim passei muitos meses em estado de bem-aventurança, esquecendo-me de todos os problemas do mundo e já estava decidido a tornar-me monge contemplativo quando aconteceu algo surpreendente. Naqueles dias de alienação mística, justo quando para mim era quase um sacrilégio relembrar meus bons tempos de iniciação e bruxaria, essa espécie de “voz” que supunha ser da divindade, disse-me algo assim como:
“Isto que você escuta é ‘a voz do Espírito’”.
Fiquei verdadeiramente chocado, acaso não era o mesmo termo que utilizava Dom Juan?, perguntei a mim mesmo. Pois bem, quase tenho um desmaio quando dias depois experimentava uma espécie de contemplação mística e essa mesma voz me disse: “Isso é o equivalente ao ‘ver’ de Dom Juan”.
Continuou fazendo comparações com o conhecimento dos bruxos até que um dia me revelou o inesperado: “Sou seu aliado”.
Ao escutar isso senti um misto de conflito, assombro e logo satisfação: compreendi então o que significava ter um “aliado” como “protetor” ou “guia”, segundo Dom Juan: uma entidade do “outro mundo” que vai acompanhá-lo no difícil momento do caminho quando vão se perdendo os resguardos do mundo cotidiano. De imediato busquei o livro “Viagem a Ixtlán” e em seu último capítulo li: tudo quando amamos, odiamos ou desejamos vai ficando para trás... seu aliado o levará a mundos desconhecidos... modificará sua idéia do mundo... e quando muda, o mundo mesmo muda.
Já tinha o privilégio de contar com um “aliado” e fosse Deus Pai ou um espírito qualquer, eu sentia o profundo amor de sua companhia que me fez passar talvez os meses mais felizes de minha vida.
_ Como se apresentou o “aliado” do “outro mundo”?
_ Havia terminado fazia tempo com minha namorada, uma poderosa bruxa que me tinha tão enfeitiçado que estive a ponto de ir viver com ela em Tepoztlan, ter muitos filhinhos e nos tornarmos famosos líderes espirituais nesse lugar mágico, recebendo numerosos fãs no nosso centro de estudos esotéricos. Além de importância pessoal, eu estava cheio de força e energia, pois, graças à leitura dos livros de Castaneda e à prática do guerreiro, havia conseguido o que se chama um verdadeiro despertar de consciência. Mas com essa formosa bruxa não consegui passar por uma das grandes provas do guerreiro: enfrentar o adversário de valor (tal como ocorreu a Castaneda com outras bruxas), pois a convivência com ela quase me mata, literalmente.
Foi assim que um dia, estendido numa poltrona, sentindo-me tão mal física e psiquicamente, não me restou outra coisa, diante do que eu sentia como meu fracasso como guerreiro, senão voltar à minha religião e rezar a Deus para pedir urgentemente sua ajuda. Então, por incrível que pareça, de repente tive essa grande experiência de sentir-me em frente a uma presença mística.
Decidi ir passar longa temporada em um monastério beneditino na cidade de Cuervanaca, acompanhado somente de meu “aliado”, vivendo em estado de deleite, a ponto de não me importar em nada quando ligaram para o monastério, com urgência, para informar-me que eu tinha perdido quase todo o meu dinheiro com a quebra da Bolsa de Valores do México. Tampouco me importei de deixar a confortável casa de meus pais, onde vivia como príncipe, para encerrar-me no pequeno quartinho de um monastério, não voltar a ver meus amigos para intermináveis conversas sobre assuntos espirituais tomando um saboroso cafezinho, esquecer-me de todos os meus projetos para salvar o mundo etc.
Estava tão feliz, que decidi entrar como aspirante a monge. Porém, um dia, quando praticava minhas contemplações em companhia de meu “aliado”, de repente senti que este se transformava em uma pequena nuvem e em um instante penetrava em meu corpo pelo cocuruto da cabeça. Experimentei todo tipo de sensações: grande tristeza, porque “soube”, não sei como, que já não voltaria a “ver” meu amado “aliado”, mas também profunda satisfação ao compreender que meu “aliado” habita dentro de mim ou acaso sou eu mesmo em um nível mais profundo; o mais estranho foi chegar a sentir grande responsabilidade pelo que significava e implicava em minha vida o haver experimentado tudo isso.
_ Como o nagual considerou suas experiências místicas?
_ Aprendi com o nagual que nossa propensão a nos escudar do desconhecido através do conhecido também o fazemos com a religião, para assim colocarmos um cerco no desconhecido transcendente e impedir que sua profundidade nos oprima.
Isso não significa que Carlos negasse a veracidade das experiências dos místicos cristãos, os quais considerava bruxos portentosos. Ele apenas observava até que ponto essas experiências estão misturadas com a história pessoal e influência cultural de quem as tem.
Segundo as visões dos bruxos, as experiências dos místicos se devem a que alguns deles conseguem ver o molde humano, um feixe de energia que pertence exclusivamente ao homem. Ele o definiu como uma força que constrange a biologia e da qual sai o homem, algo maravilhoso de se ver. E quando um místico tem essa visão, quando se põe em consenso com o molde, alinhando o que eles chamam as emanações da Águia, as mesmas que nos fazem ser homens, então acredita ver a Deus.
“O molde do homem é tudo o que somos... porém há infinitamente mais...”, e um dia me confessou por telefone de Los Angeles como havia tido essa visão: “Vi o manejo de energias que fazem o homem... vi o homem em toda a sua plenitude, o Deus-Homem... sentia uma compaixão e piedade infinitas.”
Penso que o molde do homem é como uma espécie de DNA cósmico, mas em nível energético; é o arquétipo que dá origem e modela nossa existência. Todos podemos vê-lo, mas nos é impossível vê-lo com inteira objetividade. Para um cristão, o molde do homem é Deus Pai. Cada um de nós o verá segundo sua religião, sexo e história pessoal. Assim, não podemos tomar nossas visões particulares do molde como algo absoluto, segundo me dizia o nagual: “O homem pode chegar a perceber coisas inconcebíveis... tem que chegar ao fim do caminho, ao inaudito... e não se entreter em visões da percepção histórica.”
Os bruxos propõem ir além da experiência mística individual, além dos condicionamentos que temos recebido desde a infância. Propõem-nos ver diretamente o “Intento”, o “Espírito”, o “Infinito”: algo que soa incrível mas não obstante está ao alcance de um guerreiro impecável.
Insistia na necessidade de ser sóbrio, aceitar tudo o que vem com desapego, não se deixar obcecar por nada. A partir desse princípio, pode-se aventurar a testemunhar os mundos mais extraordinários da atenção, mantendo, porém, suas reações sob controle.
_ Fale-nos mais sobre a técnica da “espreita”.
_ É chegar a viver plenamente conscientes de tudo o que nos sucede e do que ocorre ao nosso redor. Eu, como bom neurótico, descobri que o grande impedimento para estarmos conscientes da realidade são nossas neuroses e conseqüentes importâncias pessoais. Isso me fez ver claramente o nagual ao zombar de algo que para mim era motivo de grande orgulho; com suas divertidas dramatizações me dizia: “Eis aqui Carlos (mencionando pomposamente meus sobrenomes), o grande catedrático da honorável Universidade Iberoamericana etc. etc.”
Referia-se às minhas aulas de Desenvolvimento Transpessoal que dava nessa universidade e sua sátira realmente começou a preocupar-me. Eu sentia que estava fazendo um trabalho meritório, já que contribuía para a difusão do conhecimento espiritual e me pus a explicar-lhe sobre a responsabilidade do pedagogo nessas áreas.
Ele não ria mais, porém, ao ver minha insistência em convencê-lo, me disse: “Está bem, mas dê suas aulas com plena consciência de tudo o que diz, então pode dizer o que quiser, inclusive barbaridades.”
A princípio não entendi essa afirmação, para mim era óbvio que dava minhas lições conscientemente! Mas na primeira oportunidade em que tentei fazer-me consciente de mim mesmo e de meus alunos, em lugar de conseguir, enrolei-me mais e mais com o que dizia, até o ponto em que meus alunos já não entendiam nada, nem eu mesmo. Graças aos empréstimos energéticos do nagual fui descobrindo que minhas necessidades neuróticas de reconhecimento, aceitação, de demonstrar à “mamãe” como sou brilhante e competir com meus irmãos pela paparicação de “papai e mamãe” etc. eram os mais importantes motivadores para converter-me em “catedrático”. Tudo isso gerava uma insegurança e conflito interno que me impediam de dar minhas aulas conscientemente, e me provocavam perdas consideráveis de energia.
Isso eu acabei de entender quando em certa ocasião dava uma conferência na Casa Tibet: de repente me apercebi, oh surpresa!, que o estava fazendo de maneira consciente. Como acabava de regressar de uma semana de estadia com os bruxos em Los Angeles, vinha carregado com sua energia e graças a ela pude saltar, por assim dizer, o nível do ego neurótico e dar quase toda a conferência consciente de mim mesmo. Saí-me tão bem que estava até simpático, algo quase impossível para alguém como eu que se levava tão a sério.
_ Poderia dar uma definição xamânica da energia?
_ Carlos nos dava a entender que a percepção ou a consciência aumenta na medida em que economizamos e redistribuímos nossa energia, coisa que podemos aprender através dos recursos da bruxaria. Tendo em conta o nexo que existe entre consciência e energia, nossa tarefa era descobrir as situações em que perdemos ou inutilizamos nossa energia. Ainda mais sabendo que, segundo ele, não podemos aumentar o caudal de energia que já trazemos de nascimento, a única coisa que podemos fazer com ela é redistribuí-la.
Com relação à perda de energia, o tema que mais causava rebuliço em suas reuniões era a importância dada pelo nagual ao celibato. Todos protestavam e alguns alegavam a seu favor as milenares técnicas orientais para fazer amor como um caminho de desenvolvimento. Porém, ele nos fazia ver o difícil que era não perder energia com a sexualidade, pois, mesmo nesses casos de sexo sagrado, sempre acabavam se envolvendo o ego e a importância pessoal.
Desde como se apresenta a personalidade para realizar a conquista amorosa, os diálogos internos de enamoramento, os conflitos passionais, tudo isso era motivo de perda de energia, mas sobretudo enfatizava que no ato sexual se desperdiçava a mais poderosa energia que existe:
“Por que não aproveitar essa energia para evoluir?”, e àqueles que discutiam que o sexo não os impedia, ele desafiava: “Vamos ver, pelo menos tentem suspender o diálogo interno” – algo que todos sabiam que era o requisito necessário para dar um passo evolutivo.
E o pior era quando nos fazia ver que procriar filhos deixava os pais extenuados e diante dos protestos se evadia dizendo: “Só nos falaram sobre a opção da ‘reprodução’, mas existe também outra opção de vida: a evolução.”
A esse respeito, muito me impressionou um dia em que chegávamos no meu carro a uma de suas palestras; de repente me disse “pare” e me fez fixar a atenção em uma das guerreiras estrangeiras que estava chegando e à qual ele havia mostrado interesse em ajudar no passado:
“Observe-a bem, lembra-se como ela era antes (de casar e ter um filho)? Olhe-a agora: não lhe parece já uma matrona e sem energia?”
Não pude negar que estava certo, via como essa grande força de guerreira que eu admirava se havia desvanecido. Aquilo foi uma constatação direta de suas teorias, uma boa ajuda a convencer-me do valor do celibato, que segundo ele era para mim indispensável:
“Você tem que ser muito avaro com a sua energia, pois é produto de uma cogida aburrida”.
Algo que não me era tão ofensivo, pois o entendia como uma expressão metafórica do mundo burguês no qual nasci, onde se vive tão bem “resguardado” da morte, da mudança, do infinito, do “desconhecido” etc., que o grande preço a pagar é o tédio.
Compreendi que o caminho do bruxo não consiste em tentar manipular a energia por meios mágicos, ou iogas sexuais, e sim em estar atentos, alertas, em espreita constante. Essa é a senda do abstrato, dos videntes de agora. Não temos que fazer coisas fantásticas para conseguir resultados milagrosos: é questão de atenção e de ser impecável.
“A conduta impecável é o que economiza energia”, insistia muito o nagual – e seu conceito de impecabilidade está intimamente relacionado com a importância pessoal: percebi que ao manipular a vida em função de meu ego pessoal, buscando meu próprio benefício, deixava de ser impecável e notava perdas de energia.
_ Que relação existe entre a Águia e a “recapitulação”?
_ Seu conceito de Águia eu entendi como a “alma” ou consciência coletiva do planeta – o que Grinberg chamava o Hipercampo e Teilhard de Chardin a Noosfera –, a consciência cósmica dentro da qual existimos como bolhas individuais de atenção. Portanto, nossas experiências, em última instância, pertencem à Águia, e não temos como reter a individualidade além da morte, exceto tendo em conta essa relação de dependência.
Afirmou que a Águia se nutre de vivências e experiências, e nossa disjuntiva, como seres conscientes, é morrer para devolver-lhe tudo o que fomos. Mas existe a opção de recapitular nossas vidas e oferecer-lhe uma espécie de cópia fotostática energética de nossas experiências vitais, com a qual se conforma o Poder que rege nossos destinos. Como passamos nossa vida quase inconsciente ou semiconscientemente, ao tornar conscientes nossas experiências através da recapitulação, criamos essa cópia energética que entregamos à Águia e por nossa vez recuperamos a energia que havíamos deixado nessas experiências.
“Dêem à Águia o que ela quer, mediante a prática da recapitulação. Assim ela os deixará livres”, nos dizia Castaneda.
Quando perguntei ao nagual se caso alguém estivesse consciente do que faz não precisaria recapitular, ele concordou. A recapitulação funciona para os atos da vida que não foram feitos plenamente conscientes. Se a energia não é convocada de volta, então fica ali, nos eventos. Segundo entendi, quando observamos as situações da vida em cem por cento as transmutamos, falando de filosofia tântrica. Além do mais, nós não vemos as coisas plenamente como são, porque só usamos uma pequena parcela da atenção.
Carlos nos dizia que, se não recapitularmos bem uma pessoa, ela voltará a aparecer em nossa vida. Isso é assim porque, segundo parece, as fibras de consciência que esparramamos em nosso trato com os outros continuarão atraindo a energia perdida para tapar o buraco. Também dizia que, se queremos nos desprender de uma pessoa e não conseguimos, é porque não a recapitulamos.
A técnica em si é muito simples. Primeiro você tem que armar a memória. Deve realizar inventários de sua própria vida, os sentimentos despendidos, as frustrações, os momentos de ira, os amores, tudo isso. Recapitular é pôr as memórias sobre a mesa e vê-las de forma desapegada. Uma vez que expõe sua coleção particular de incidentes, você se vai reconhecendo, sabe que “esse sou eu”. Aí está minha necessidade de reconhecimento, na frente de tudo. Agora, seguindo a técnica de mudar as fachadas do Tonal, vou pôr essa necessidade atrás, em segundo plano.
Recapitular é aplicar consciência sobre as recordações para redistribuir sua energia e assim modificar a importância relativa que damos a nossas características pessoais. É também para encerrar ciclos.
Um aspecto em que ele insistia era que a recapitulação deve vir acompanhada de uma respiração particular. Afirmava que respirar é um ato mágico, porque limpa, e que, na realidade, armar as recordações consiste em inalar os filamentos perdidos e exalar os que não nos pertencem.
A respiração especializada consiste em uns movimentos da cabeça para ambos os lados. Explicou-nos que esse movimento massageia o hipotálamo. O hipotálamo é um grande centro transformador da energia que ajuda a separar o cérebro direito do esquerdo. Quando estamos tensos fica obstruído e contrai toda a região.
O que a Águia consome ao final de nossa vida é a primeira atenção, enriquecida pelas experiências da história pessoal. Entretanto, o bruxo faz uma espécie de contrato com nosso Fazedor que pressupõe devolver a experiência, não a consciência. E este pagamento podemos fazer através da recapitulação.
A recapitulação é uma das mais valiosas ferramentas para desobstruir o caminho em direção ao mais importante para um bruxo: passar para outro nível de consciência, porque isso significa a passagem para “outro mundo”. Em termos concretos, trata-se de redirecionar e redistribuir a energia. Ao trazer de volta nossos filamentos, completa-se o círculo da energia.
_ Poderia explicar o conceito de segunda atenção?
O ideal de um guerreiro impecável é chegar a estar plenamente consciente do aqui e agora, o qual lhe permitirá “ver”. “Ver” é perceber o mundo em termos de segunda atenção.
Toda forma de atenção tem a mesma base: dar-se conta do que acontece. Mas podemos prestar atenção de maneiras muito diferentes. Carlos definiu que a segunda atenção é observar o que ocorre debaixo da mesa (a mesa somos nós e nosso mundo; o Nagual dos tempos é essa parte desconhecida que está embaixo).
Ele afirmava que quando nascemos nos dão a consciência, mas sem cultivar; apenas observamos o que acontece fora. À medida que vivemos, convertemos essa consciência bruta em atenção. Todos nascemos como bruxos, mas logo nos centramos no sentimento de ser um “eu” e começamos a ver tudo através desse filtro. Ao reforçar com o tempo esse modo de perceber, nos transformamos em seres cotidianos e ficamos fixos no que os bruxos chamam a primeira atenção.
Por outro lado, o cultivo da atenção com técnicas de bruxaria nos leva de volta ao que éramos, a transforma em segunda atenção, um sentimento de que já não se é uno, e sim uma expansão, algo muito mais amplo e menos dependente do corpo físico.
_ O que é o ponto de encaixe?
_ É o lugar onde a consciência em abstrato se transforma em um ato concreto de percepção. Percebemos uma realidade ou um “mundo”, conforme fixemos nossa atenção em determinada posição.
O ponto de encaixe é uma luminosidade mais intensa que o resto do nosso casulo luminoso, e ao mover-se modifica por completo os parâmetros de nossa percepção. Um bruxo move seu ponto de encaixe consideravelmente depois de economizar suficiente energia. A característica desse movimento é que nos proporciona uma vivência imediata do desconhecido e temos que agüentar o embate da “morte” até que esse campo enorme se faça conhecido. Carlos o experimentava como uma sensação de vazio. Disse: “Ao mover o ponto de encaixe vem o medo da solidão. Estamos sozinhos frente à eternidade.”
Respondendo a uma pergunta, assegurou que o que acontece no “além” não tem o menor interesse. Disse-nos que não temos que nos preocupar com trato com aliados e essas coisas dos outros mundos, porque o verdadeiramente importante de mover o ponto de encaixe é o próprio movimento, é tirá-lo de sua posição fixa no limitado nível de consciência mental-racional. Independentemente do excitante que possa ser explorar os milhões de mundos acessíveis à nossa atenção, o que fascina os bruxos é o ato de fluir, a mudança entre as diversas camadas da realidade.
Na realidade, todas as técnicas de bruxaria são modos de mover o ponto de encaixe. Em suas apresentações, Carlos nos ensinou vários exercícios que estão ao alcance da maioria de nós. Um deles é usar um pequeno tirano, enfrentando-o impecavelmente. Outra forma muito empregada pelos bruxos são os alucinógenos; mas enfatiza que, para proceder como guerreiros, temos que aprender a deslocar o ponto de encaixe por nós mesmos.
O ponto de encaixe deve mover-se de sua fixação, isso é o importante; então podemos fazer réplicas voluntárias desse movimento.
Uma réplica que está ao alcance dos bruxos desde as primeiras etapas do caminho é o que chamam estado de consciência intensificada. Este é um tipo de deslocamento que acende emanações próximas ao cotidiano. O guerreiro tem que aprender a não se assustar e usar as visões ou alucinações como uma porta para o poder.
Carlos distinguia entre esse deslocamento moderado e os movimentos fortes. Tudo depende da distância a que se move o ponto de encaixe em comparação com sua posição habitual. Afirmava que o modo mais seguro de induzir movimentos pronunciados é a arte de “ensonhar”, ou seja, desenvolver a atenção necessária para mover-se entre os sonhos e a vida cotidiana. Definiu:
“O ‘ensonho’ é uma forma de meditação [como a oriental], porém em um estado profundo. É controlar a atenção que se fixa nos elementos de qualquer sonho, redistribuindo dessa maneira a energia economizada.”
_ Como você interpreta a mensagem de Castaneda?
_ Nisso estou de acordo com Carlos Ortiz em que tanto os escritos como a linguagem de Carlos pertencem ao gênero mitológico. O nagual nos dizia: os bruxos somos protagonistas de um mito vivente. Suas vidas são histórias de poder, em cujas metáforas ou símbolos descobrimos profundos ensinamentos. Com respeito às narrações de seus livros, Dom Juan dizia: “Não são histórias que possam ser lidas como se fossem contos; você tem que repassá-las, pensá-las e tornar a pensar. As mitologias são revelações provenientes de um nível superior de consciência. Desse modo, não têm que ser tomadas literalmente nem analisadas com uma lógica racional”.
Em seu livro “O Poder do Silêncio”, Carlos declara que essas histórias são manifestações do Espírito, e que as escreveu como um trabalho de bruxaria. O único modo com que podemos decifrar seu sentido é através do conhecimento silencioso. Em uma de suas conversas na Casa Amatlán, nos disse:
“Dom Juan queria que eu escrevesse esses livros, mas não como um ato de escritor, e sim como um ato de bruxaria através do ‘ensonho’. Ordenou-me: essa é a sua tarefa. Então, eu não escrevo; ‘ensonho’ o texto e devo fazer uma réplica exata do que ‘ensonhei’. Não posso corrigir nem fazer uma revisão. É um processo feiticeiro, não uma ação cotidiana. Não sou escritor, não sou ninguém!”
As histórias de seus livros, assim como suas palestras públicas e particulares, têm uma dupla leitura. Até para professores tão brilhantes quanto Jacobo Grinberg e Carlos de León era difícil compreender como funciona algo tão estranho quanto a mitologia vivente que os bruxos personificam. Tanto Grinberg como de León caíram na armadilha de dizer que o nagual era um mentiroso!
Quando comuniquei isso ao nagual, ele replicou: “Vamos ver, diga ao Jacobo que demonstre quais são minhas mentiras”.
Porém, ele não se atreveu a fazê-lo; de fato, acabou reconhecendo que havia um modo superior de interpretar o nagualismo.
Em outra ocasião, Carlos me assegurou: “Já não tenho capacidade nem tempo para inventar o que sucede. Minha autoridade real é a Águia, e meu destino, ser testemunha impecável dos desígnios da Águia”.
Afirmou que os guerreiros não mentem, porque perdem sua energia se o fazem. As coisas que um guerreiro testemunha em suas viagens pelo infinito não são falsidades nem alucinações. São indescritíveis, isso sim, coisas que não têm precedentes no mundo cotidiano.
Temos que ser humildes e aprender a controlar as reações da mente para continuar testemunhando.
O problema é que essas histórias não são verdades nem mentiras, no sentido habitual da linguagem. Como todas as mitologias, nos confrontam com o mais difícil para a razão dualista: o paradoxo. Em certo sentido, descrevem fatos reais, mas também fictícios. São símbolos e como tais têm vários significados. O importante para um estudante é o conteúdo profundo, ater-se ao espírito e não à letra.
Precisamente, para que não nos apegássemos à letra, ou seja, aos conceitos, Carlos os modificava continuamente, impedindo que estabelecêssemos classificações.
Isso podíamos apreciar em cada livro novo que saía depois de “Porta para o Infinito”.
Para mim o melhor exemplo eram as diversas palavras que utilizava para referir-se ao transcendente: o poder que rege os destinos humanos, o Nagual dos tempos, o Espírito, o Abstrato, o Intento, o Infinito, o mar escuro da consciência etc. É a experiência e o conhecimento silencioso o que nos revela o verdadeiro significado daquilo (it em inglês, como também o denominava).
A FILHA DO NAGUAL, SEQÜESTRADA
O melhor exemplo de que não podemos tomar literalmente tudo o que dizem esses protagonistas do mito vivente ocorreu quando estávamos com eles em Los Angeles. De repente, um dia nos telefonam preocupados porque Nuri, a filha simbólica de Carlos e Carol Tiggs, havia sido seqüestrada por uns bruxos temíveis. A ansiedade e a angústia que essa notícia gerou terminaram em drama e, quando nos inteiramos de que esses bruxos temíveis haviam cortado sua cabeleira, algumas das companheiras choraram inconsolavelmente. No entanto, à noite, nos convidaram para jantar na casa de Margarita Nieto como se nada houvesse ocorrido, e então, que grande surpresa tivemos! A própria Nuri nos abre a porta e nos recebe muito radiante e cordial, mostrando-nos seu novo e moderno corte de cabelo.
Já dentro de casa, ninguém disse uma palavra, a lição foi compreendida: no mundo dos bruxos não devemos tomar nada ao pé da letra. Foi tal o impacto que tivemos ao ver Nuri como se nada houvesse e tão encantadora como sempre, que ninguém se esqueceria do que é um mito vivente.
Essa era a lição de uma típica história de bruxaria. E, claro, não foi mentira: é provável que suas colegas de bruxaria – que em seus afetuosos exageros Carlos apresentava como seres temíveis – tenham obrigado a jovem a ir ao salão de beleza, porque já precisava de um bom corte.
Com tudo isso não quero dizer que Dom Juan tenha sido uma invenção de Castaneda; existiu sim e era um grande mestre, segundo soube por pessoas que também o conheceram. Era de origem indígena, mas, como se pode constatar em seus livros, chegou a ser uma pessoa culta. Sua origem é parte do mito: Dom Juan, o índio yaqui, era dos Estados Unidos ou México? O mesmo acontece com respeito a Castaneda: era gringo-mexicano, peruano ou brasileiro? Na verdade não tem importância. A mensagem talvez seja que todos juntos formamos uma unidade continental, um bloco que transcende os nacionalismos.
_ Por que Carlos mudava continuamente os termos que usava?
_ Era parte de seu método de ensino. O que o nagual nos contava era reflexo do mundo real, dos vaivéns que têm lugar no reino da energia, para além da mente racional, onde não há nada definitivo. Modificava os termos para referir-se às idéias, e modificava até mesmo as idéias, simplificando, sintetizando, descobrindo novas arestas. Fazia isso para não nos apegarmos a conceitos ou sistemas de pensamento.
Uma característica de nossos encontros é que sempre nos perguntávamos: e o que aconteceu com o anterior, como ficou? Esperávamos conclusões, mas Carlos mudava a história.
Em algumas ocasiões, seu método provocava reações contraditórias, como quando convidei conservadores mestres e pesquisadores da Universidade Iberoamericana para uma reunião com ele. Depois do encontro comentaram suas impressões. Ainda que não faltassem dúvidas e desconcerto diante das revolucionárias idéias e atitudes brincalhonas do nagual, todos ficaram maravilhados; um dos mais brilhantes pesquisadores levantou-se e disse que tinha sido o dia mais feliz de sua vida, e ninguém achou exagerado seu comentário. No entanto, uma ou duas semanas depois, ocorreu algo incrível para mim: notei que todos fugiam ao me encontrar. Já ninguém queria voltar a falar de Castaneda.
É importante ter em conta as reações tão opostas que o nagual produzia; sua presença energética e suas palavras causavam grande entusiasmo e anseios de liberdade, mas também medo, pois rompem com o establishment, com o mundo de apegos que usamos como resguardos. Depois dessa experiência, compreendi o que os bruxos diziam: que ninguém quer ser livre; o ser humano prefere a comodidade escravizante do conhecido a enfrentar a ameaçadora liberdade do desconhecido.
_ Por que Carlos evitava a comparação com outras realidades culturais?
_ O problema está em que esse escrutínio só pode ser empreendido através da mente, e, como ele dizia, a mente é o voador, é uma instalação estrangeira, alienígena. Os xamãs desenvolveram seu conhecimento através de uma ferramenta muito mais poderosa que o intelecto: o conhecimento silencioso. Portanto, para entendê-los, temos que suspender o diálogo interno, parar a mente, o que, em seus termos, implica parar o mundo, ou melhor, o mundo que criamos em nossa cabeça.
No princípio de nossa aprendizagem, todos nós queríamos contrastar o que ele nos dizia com a yoga, o budismo, o cristianismo, com o que fosse! Ele se esquivava de entrar nesse tema. Em certa ocasião, cedeu à nossa insistência.
Era o dia de meu aniversário e eu havia reunido em minha casa Jacobo Grinberg, Carlos de León e Ramón Tomassinni para que conhecessem outros gênios como eles do conhecimento espiritual: os irmãos Ariel e Fausto Rosales. Qual não foi minha surpresa quando olhei pela janela para ver quem estava tocando a campainha, e consegui distinguir em meio à obscuridade o rosto sorridente de Carlos Castaneda, que se havia juntado aos Rosales para conhecer esse bando de loucos reunidos em minha casa. Foi inesquecível essa reunião. Como todos quiseram fazer análises comparadas com o escrito em seus livros, o nagual comentou: “Está bem, vou dar-lhes esse gosto! Preparem todas as suas perguntas para a próxima reunião, que vou entrar em todo tipo de comparações.”
Eu me emocionei muito, pois queria sinceramente encontrar os pontos de semelhança entre os ensinamentos de Dom Juan e o que havia lido nos textos de misticismo cristão. Mas, quando voltamos a vê-lo, não quis falar nesse assunto. Ele queria que nos concentrássemos com total integridade no seu sistema de conhecimento, de ações práticas, no qual as comparações ficam sobrando.
Uma característica dos bruxos é que tomam o ensinamento tal como lhes chega através de seu “ver”, e não andam buscando permissão para corroborá-lo; que tomássemos suas palavras como um bloco, sem tentar estabelecer semelhanças com nada do que havíamos lido por aí. Além disso, Carlos nos dizia que: “O mundo de Dom Juan está cheio de contradições. A bruxaria é um sistema feito de paradoxos. A tarefa dos bruxos consiste em fazer uma ponte artística entre as contradições.”
Isso significa que deixamos de interpretar o mundo unicamente com a razão e começamos a vê-lo também através do conhecimento silencioso. Somente a arte pode fazer a ponte entre dois blocos que não se juntarão jamais, porque pertencem a mundos diferentes.
O ensinamento de Carlos é a arte de criar síntese entre os opostos. Ele dizia que a bruxaria é uma abstração, porque não se apóia na razão nem em nenhuma outra forma limitada de ver o mundo. O artista pode unir em seu espírito coisas que ao cientista parecem contraditórias, e por isso cria, modifica o mundo. O mesmo faz um bruxo.
A verdadeira solução para as contradições do caminho do bruxo é a prática. Entre minhas notas, tenho uma na qual Carlos afirmou: “A bruxaria é um sistema de ações práticas corroborado empiricamente. Um nagual é alguém que pôde constatar empiricamente o conhecimento.”
Insistia em que colocássemos em prática o que aprendemos, porque de outro modo o caminho dos bruxos não vale a pena.
Primeiro, um praticante tem que aprender a crer sem crer, gerar um ato de fé inicial, um ter que crer nos bruxos e seu conhecimento, sabendo que crer é um ato deliberado e que não poderá ser demonstrado através da mente. Logo vem a constatação.
Carlos insistia em que somos algo mais que intelecto: o corpo.
“O homem”, dizia, “se relaciona com o mundo através do intelecto, mas não presta atenção ao corpo. Passamos por alto uma enormidade de estímulos que são parte de nossa experiência atual. Um guerreiro tem que saber exatamente o que está acontecendo a cada momento e não pode passar por alto nenhum estímulo. O real é o que está acontecendo agora.”
Os que o conhecemos sabemos que ele vivia seu momento integralmente, e isso se notava em cada gesto de seu corpo, na expressão de seu rosto, na intensidade de seu olhar. Estava completamente a par de tudo o que o rodeava.
Segundo ele, qualquer acontecimento pode ser um sinal do Espírito.
E nenhuma coisa é mais importante que outra; a importância é a que a própria pessoa lhe dá; ela é que dá valor às coisas.
_ Fale-nos do conceito de impecabilidade dos bruxos.
_ Os bruxos substituíram o conceito de ser bons pela busca da impecabilidade. Ser impecáveis implica montar guarda contra nossas debilidades as 24 horas do dia. Este conceito não deriva de uma consideração moral, e sim energética. Portanto, não é cultivado através dos sentimentos cotidianos, e sim mediante o intento. A decisão que conta para ser um guerreiro é ser impecável.
_ Como se pode ser impecável?
_ Nas palavras de Carlos, desfazendo-se da importância pessoal, a mesma que nos obriga a consumir quase toda a nossa energia na defesa do ego, em lugar de nos dedicarmos ao abstrato. Se só falamos de nós mesmos, não podemos nos transformar. Em compensação, se deixamos de lado a importância pessoal economizamos noventa por cento da nossa energia.
“O que me afina”, nos dizia, “é ser impecável com vocês. Ser um guerreiro impecável implica que a pessoa aceita seu destino e se comporta da melhor maneira que esteja ao alcance de suas possibilidades.”
Um guerreiro impecável não tem importância pessoal e por isso economiza energia e utiliza o excedente para perceber pragmaticamente outras formas de realidade. Isso é uma operação muito delicada, porque o guerreiro está obrigado a romper com as unidades perceptivas da maneira mais imaginativa possível. Então vem o segundo princípio de sua conduta social: a espreita. No caminho do guerreiro impecável nada é bom ou mau: para ele, tudo o que existe são desafios.
_ O que é a liberdade?
_ Segundo Carlos, a liberdade final é sair do mundo com consciência total. Dom Juan lhe dizia que somos aventureiros por natureza, e que, se abre-se a porta da liberdade, temos uma nova opção. Em uma ocasião, contou-lhe que os maias abriram uma porta dimensional na energia e se auto-consumiram, quer dizer, passaram ao outro mundo. Afirmou: “Em Yucatán chegaram coletivamente à terceira atenção.”
O importante dessas histórias não é sua historicidade, e sim a revelação, o impulso que pode nos dar o saber que outras pessoas, em outras épocas, se propuseram desafios quase impossíveis, e triunfaram! O que ele queria era que nos atrevêssemos a sonhar, a nos propor coisas que estão além de nossa cognição. Afirmava que podemos usar a atenção como combustível e arder desde dentro, para assim não termos que passar pela extinção da individualidade. Explicou:
“Somos vítimas de um determinismo espantoso, mas, em meio a essa prisão, a Águia determinou que se abra uma porta para nós. É algo muito belo, um paradoxo: tudo está aparentemente condicionado, e, no entanto, podemos viver um milagre: a liberdade.
“A liberdade é transformar tudo o que somos em consciência de ser, integrar nosso corpo e nossa mente em um resultado energético incomensurável, recolhido em um enorme ponto de encaixe. Para sermos livres temos que renunciar aos troféus do mundo, morrer para o que somos agora e renascer em tudo o que podemos ser. Só quando se encara a morte total, se alcança a liberdade total.”
_ Quando foi a última vez que você se encontrou com Castaneda?
_ Estou convencido que Carlos ia “cortando” seus seguidores, no momento preciso em que estivéssemos suficientemente fortes para romper com a dependência natural que se produzia com ele. Para efeitos psicológicos se valia de pretextos, em geral bastante simples, que nos dizia através de terceiros, e de repente, sem aviso prévio, deixava de nos procurar. Em meu caso, contarei qual foi esse pretexto.
Umas semanas antes de que ele viesse ao México e já não me convidasse para suas reuniões, eu havia iniciado um curso sobre seus livros. Por circunstâncias alheias à minha vontade, vi-me obrigado a aceitar pagamento pelas aulas, algo de que eu não gostava e que fazia pela primeira vez. Carlos tomou essa cobrança como desculpa de espreita para exilar-me. Afirmou que eu estava lucrando com o conhecimento e a experiência que os bruxos estavam me oferecendo.
Inteirei-me de sua “acusação” por outros do grupo e de imediato a tomei como uma injustiça, mas depois compreendi sua espreita simbólica: eu realmente estava tendo lucro, não em dinheiro, e sim em importância pessoal. Em todos esses anos, desde que conheci o nagual, havia dado diversos cursos sobre seus ensinamentos, e já me sentia um mestre consumado!
Assim fez com quase todos os que o seguíamos. Em determinado momento, quando ele (ou o Espírito?) achava conveniente, nos suspendia de seu contato pessoal e esgrimia contra nós algum argumento que, como uma “fofoquinha infantil”, dizia aos outros do grupo. Os pretextos que usou para algo tão impactante para nós quanto foi a separação dos seres mais sublimes que havíamos conhecido eram quase sempre fúteis, e às vezes, ridículos: acusava a pessoa de estar fazendo intrigas contra eles, ou alguma “transação” com dinheiro, etc. Por trás disso, havia uma manobra de bruxaria, uma espreita; é outro exemplo de sua linguagem simbólica, de dupla leitura. Foi uma manobra que teve um custo emocional tão alto que alguns ainda não superaram o impacto do rompimento, mas que nos permitiu descobrir algo que, de outro modo, teria sido muito difícil notar: a impressionante dependência gerada por ele e suas bruxas. Esta dependência era algo positivo nas primeiras etapas do caminho, mas logo se tornava um impedimento.
O nagual sabia que, cedo ou tarde, teríamos que nos separar de sua opressiva influência. A menos que nosso intento (ou seja, nosso caminho de desenvolvimento) coincidisse plenamente com o dele e seu grupo. Obviamente, esse não era o meu caso nem o dos demais rechaçados. O único de nosso grupo que foi convidado para o “Olimpo” nagualesco foi um alemão chamado Heiko, cujo intento inflexível o trouxe ao México em busca do nagual e para isso esperou anos antes de conhecê-lo.
Não estou certo se, com essa separação, Carlos me deu baixa, ou se, pelo contrário, me deu alta, induzindo-me a avançar a uma etapa mais elevada do caminho do conhecimento. Creio que foi este último e graças a isso obtive algo de máxima importância para mim: aprendi a “voar” por mim mesmo
Fonte:http://pistasdocaminho.blogspot.com.br/2014/08/entrevistas-com-parceiros-de-carlos.html
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