Quando Coisas Ruins Acontecem a Pessoas Boas
Ravindra Svarupa Dasa
O livro best-seller de um rabino propõe uma solução radical para o problema do mal: “Deus é bom, mas não é todo-poderoso”. Essa solução funciona?
Aproximadamente cinco anos atrás, quando estávamos procedendo com a instalação de um altar em nosso novo templo, o supervisor da companhia de mármore regularmente trazia seu filho de sete anos junto consigo para ver o andamento. O garoto era muito bonito, com cabelo preto-azeviche, pele clara e cílios longos e negros. Ele era bem comportado e sempre parecia estar de bom humor, apesar de ser quase incapaz de andar. Nunca o vi dar mais do que alguns poucos passos, escorar-se na parede e tencionar seu tronco com um estranho movimento de torção e, então, projetando-se para frente de uma maneira gingada e desgraciosa.
O garoto nascera aleijado. Embora ele fosse alegre apesar disso, seu pai não era. Seu pai era um homem irritado. “Quando esse garoto nasceu, eu parei de ir à igreja”, ele me disse uma vez, enquanto ajoelhado em nosso altar colocando argamassa entre as placas de mármore. “Eu nunca fiz algo ruim o bastante para merecer isto. Certamente eu não sou um santo, mas não mereço isso. E mesmo se eu fiz, o que ele poderia ter feito?”.
O pai aflito, um simples marmorista, estava levantando um problema que há muito preocupa os pensadores religiosos ocidentais – tamanha a preocupação com o tópico que se criou uma disciplina especial chamada “teodiceia”, um ramo da teologia interessado em justificar os caminhos de Deus em relação ao homem. A teodiceia lida com o que é frequentemente chamado de “o problema do mal”. Santo Agostinho apresenta isso na forma de um dilema: “Ou Deus não pode eliminar o mal do mundo ou Deus não quer eliminar o mal do mundo. Se Ele não pode, Ele não é todo-poderoso. Se Ele não quer, Ele não é todo-bondoso”. Esta formulação deixa clara a lógica do problema: expor que a existência de um mundo com o mal é incompatível com a existência de um Deus que seja simultaneamente todo poderoso e todo-bondoso. Negar qualquer um dos dois atributos facilmente explicaria o mal, mas teólogos ortodoxos sempre consideraram isso inaceitável.
Aqueles que julgam insolúvel o problema do mal costumam negar de pronto a existência de Deus em vez de acreditar em um Deus ou limitado em poder ou limitado em bondade. Afinal, semelhante ser finito seria realmente qualificado a ser chamado de “Deus”? Ele seria digno de nossa adoração?
Embora filósofos e teólogos tenham nos deixado um grande corpo de literatura técnica sobre o problema do mal, é mais do que uma preocupação teórica. É um problema que afeta a todos, cedo ou tarde. O sofrimento é algo universal. Estranhamento, porém, é que praticamente tão universal quanto o sofrimento é o sentimento de quem sofre de que ele foi injustamente selecionado. De milhões de lábios vem o grito de indignação: “Por que eu!?Por que eu mereço isto?”.
Foi para tais pessoas que Harold S. Kushner, um rabino de Massachusetts, escreveu seu livro Quando Coisas Ruins Acontecem às Pessoas Boas. É uma afirmação dolorosamente honesta o autor dizer que se trata da questão teológica que atinge as massas “onde elas realmente se importam”.
O livro de Kushner nasceu de sua dor pessoal; seu testemunho merece respeito. Ele conta como seu filho sofria desde a infância de progeria, uma doença que causa rápido envelhecimento – tão rápido, com efeito, que Kushner o viu ficar calvo e de pele enrugada, arqueado e débil, até morrer de velhice aos quatorze anos de idade. Kushner apresenta o ponto de vista da vítima e nos permite ouvir as vozes reais de pessoas em aflição. Sob essa luz forte, as justificativas religiosas padrões para os nossos infortúnios, os quais Kushner expõe um a um, parecem, na verdade, meros malabarismos verbais que não levam a sério o sofrimento das pessoas, senão que apenas tentam, independente de quão imperfeitamente, tirar Deus da forca.
Kushner critica efetivamente as respostas padrões apresentadas por padres, pastores e rabinos e oferece sua própria solução radicalmente heterodoxa. Seu livro foi um best-seller por meses, e ele atraiu um considerável número de seguidores gratos à sua exposição entre judeus, católicos e protestantes. Com efeito, a popularidade de sua visão entre membros das principais igrejas e sinagogas americanas sugere uma espécie de revolta teológica de base.
O conselho mais censurável da teodiceia, na visão de Kushner, é tirar a culpa de Deus e colocá-la em quem sofre para explicar o sofrimento “presumindo que nós merecemos o que recebemos, que, de alguma forma, nossos infortúnios vêm como punição por nossos pecados”. Aceitar que coisas ruins acontecem conosco como punição de Deus, Kushner diz, pode nos ajudar a dar sentido ao mundo, confere-nos uma razão persuasiva para sermos bons, e sustenta nossa crença em uma deidade todo-poderosa e justa – contudo, não é “religiosamente adequado”.
Por “religiosamente adequado”, Kushner quer dizer “confortador”. Ver o sofrimento como uma punição para o pecado não é confortante porque isso ensina as pessoas a culparem-se por seus infortúnios, o que cria culpa, e isso também “faz as pessoas odiarem Deus, tanto quanto as faz odiarem a si mesmas”.
Kushner nos fala de um casal que associava a morte repentina de sua filha adolescente ao fato de não terem observado o jejum prescrito em um dia sagrado judeu: “Eles pensavam que a morte de sua filha havia sido culpa deles; se tivessem sido menos egoístas e menos preguiçosos em relação ao jejum Yom Kippur seis meses antes do sinistro, ela ainda estaria viva. Ficavam irados com Deus por ter cobrado o erro deles tão estritamente, mas temerosos de admitir sua ira receando que Ele os punisse novamente. A vida os havia machucado, e a religião não os podia confortar. A religião os fazia se sentirem péssimos”.
É um mérito da obra de Kushner trazer a ira contra Deus para o centro da discussão, permitindo se falar demoradamente sobre algo que poucos crentes alguma vez tiveram coragem de admitir, até mesmo para si. Muitas pessoas são devidamente gratas a que alguém tenha reconhecido seus verdadeiros sentimentos e lidado com eles abertamente.
Contudo, o pior ponto em relação à crença de que nossos erros causam nossos infortúnios, diz Kushner, é isso não condizer aos fatos. As pessoas, na verdade, sofrem de males que não merecem; coisas ruins acontecem a pessoas boas a todo momento. Kushner sustenta isso inflexivelmente. Aos milhares que ressentem o tratamento injusto da vida, que proclamam em raiva e indignação, “Eu não fiz nada para merecer isto!”, Kushner responde de modo confortante: “Você está certo. Você não merece”.
E Kushner não está falando de santos, de pessoas que nunca erram. Ele quer saber “porque pessoas comuns, vizinhos amigáveis, nem extraordinariamente bons nem extraordinariamente ruins, devem subitamente serem obrigados a experimentar a agonia da dor e da tragédia”. Eles não são nem muito melhores nem muito piores do que a maioria das pessoas que conhecemos; por que, então, suas vidas deveriam ser tão mais duras?
Neste ponto, extravasando um forte passado psíquico de ressentimento, Kushner ganhou seu séquito. Ele desejava reconhecer abertamente um vasto sentimento reprimido de traição, uma intensa acusação silenciosa que escoa a contragosto do coração dos crentes e sobe até o ouvido divino como a antioração universal não verbalizada: “Vós não mantivestes Vossa parte do acordo!”.
Kushner insiste que os inocentes sofrem e, como prova conclusiva, ele aborda o que ocasionou sua pessoal e cruciante abordagem do problema do mal e o banimento da teodiceia judaico-cristã: o sofrimento e a morte de crianças.
Foi isso que fez o marmorista aderir ao ateísmo, a resposta usual daqueles que sentem que Deus falhou com eles. O ateísmo, porém, é a resposta que Kushner quer impedir com seu livro. A fim de restaurar a fé daqueles que foram espiritualmente devastados pelo infortúnio, Kushner oferece sua história pessoal de como ele e sua esposa “conseguiram seguir acreditando em Deus e no mundo após a dor experimentada”.
Kushner está de fato convencido de que a existência de um Deus tanto todo-bondoso quanto todo-poderoso é incompatível com os males de nosso mundo, apesar do que quer que prossigamos acreditando em Deus. Sua conclusão, então, é simples: nós podemos seguir acreditando em Deus – mas não em um Deus que é todo-poderoso. Deus é bom, mas há limites para o que Ele pode fazer. Deus não quer que soframos; Ele está tão irritado e pesaroso com nossos infortúnios quanto nós mesmos o estamos. Contudo, Ele também é impotente.
Este é o credo de Kushner: “Eu acredito em Deus”, ele diz, mas “reconheço Suas limitações”. Como resultado, Kushner nos diz aliviado: “Eu não responsabilizo mais Deus pelas doenças, acidentes e desastres naturais, porque me dou conta de que ganho pouco e perco muito quando culpo Deus por essas coisas. Posso adorar mais facilmente um Deus que odeia o sofrimento porém não o pode eliminar do que um Deus que escolhe fazer crianças sofrerem e morrerem, independente de qualquer razão elevada”.
Não me é difícil me colocar no lugar de Kushner ou do marmorista: também tenho filhos. Jamais eu poderia entender por que, partindo dos pressupostos da religião em que eles acreditam, Kushner pode adorar uma deidade finita, e o marmorista não consegue entrar em uma igreja. Não obstante, não tenho com Deus o problema que eles têm. Quando coisas ruins acontecem, não dou comigo questionando Seu poder ou Sua bondade.
É claro, sou devoto de Krishna; minhas convicções religiosas se encontram no teísmo védico revelado no Bhagavad-gita e no Srimad-Bhagavatam. Aderir a tais convicções é visto pela maioria dos americanos normais como algo radical. Contudo, agora vemos que muitos americanos normais estão dispostos a fazer algo que, à sua própria maneira, é mais radical do que o que eu faço. Estão abandonando um dos princípios teístas mais básicos e universais: estão se tornando adoradores do Deus menos-do-que-todo-poderoso.
Gostaria de compartilhar como nós lidamos com o problema do mal. Se você, como muitíssimos outros, está insatisfeito com a teodiceia judaico-cristã padrão, talvez considere nossa visão consciente de Krishna antes de seguir o rabino Kushner.
No Bhagavad-gita, Krishna explica que você e eu, como seres vivos, somos todos entidades espirituais, almas. Nós, agora, animamos corpos feitos de matéria, mas nós não somos estes corpos. Nosso envolvimento com a matéria é um infortúnio, pois é a causa de nosso sofrimento. Nós pertencemos ao reino espiritual, onde a vida é eterna, plena de conhecimento e bem-aventurada. Lá, todos são jubilosamente alegremente rendidos ao controle de Deus enquanto O servem diretamente em amor. Todo ato é motivado exclusivamente pelo desejo de satisfazer Deus.
Alguns de nós, no entanto, desejamos perversamente a posição de Deus para nós. Quisemos independência a fim de que pudéssemos tentar desfrutar e controlar outros tal como Deus faz. Contudo, nós, é claro, não podemos tomar a posição de Deus; somente Ele não tem mestre algum. Todavia, de modo a atender os nossos desejos, Deus nos envia ao mundo material, onde Ele agora nos controla indiretamente, através de Sua natureza material e as leis da mesma. Aqui, podemos nos esquecer de Deus, podemos nos empenhar para realizar os nossos desejos e termos a ilusão da independência.
No entanto, somos controlados pelas leis da natureza, as quais nos forçam a habitar perpetuamente uma sucessão de corpos materiais temporários. Em ignorância, identificamo-nos com cada corpo em que entramos, e sofremos repetidamente as dores do nascimento, da velhice, da doença e da morte. Vida após vida, transmigramos por corpos vegetais, animais e humanos, ora neste planeta, ora em planetas muito melhores, ora em planetas muito piores.
Uma vez que tenhamos um nascimento humano, nosso destino é moldado pelo karma. No Bhagavad-gita (8.3), Krishna define sucintamente karma como “as ações atinentes ao desenvolvimento de corpos materiais”. Isto significa que há ações que fazemos agora que determinam nossos futuros nascimentos materiais. Quais tipos de ação? Aquelas motivadas pelo desejo material. Podemos fazê-las diretamente para nós ou indiretamente para nosso eu estendido – nossa família, nossos amigos, nossa comunidade, nossa nação etc. Tais atos sentenciam nossos nascimentos futuros no mundo material, para colhermos o que plantamos.
Dois Tipos de Karma: Bom e Ruim
Toda sociedade civilizada reconhece um conjunto de mandamentos que têm autoridade divina e que regulam o desfrute material. Tais comandos, por exemplo, restringem o desfrute de sexo às relações maritais e obrigam os ricos a serem filantrópicos. Também encorajam atos religiosos e de caridade, que conferem mérito ao praticante. E descrevem expiações para os transgressores. Assim, as pessoas recebem autorização para buscarem o desfrute material, mas têm que seguir códigos morais e religiosos. E quem segue esses códigos, quem vive uma vida piedosa de prazer sensual restrito, tem a promessa de que receberá desfrutes ainda maiores na vida por vir.
Se agirmos de acordo com as regulações escriturais, os Vedas nos dizem, produziremos bom karma e, nos nascimentos futuros, desfrutaremos os benefícios de nossa piedade. Por exemplo, se alguém nasce em uma família aristocrática, é belo, tem boa instrução ou é rico, está colhendo os benefícios do bom karma. Os Vedas também nos dizem que, se alguém é extraordinariamente piedoso, ele pode renascer em um dos planetas superiores deste universo, onde o padrão de prazer sensual é muito maior do que qualquer coisa que temos na Terra.
No sentido inverso, há o mau karma. Criamos mau karma quando negligenciamos as injunções e restrições escriturais em nossa busca pelo prazer sensual – isto é, quando agimos pecaminosamente. O mau karma nos traz sofrimento e infortúnio, como nascimento em uma família degradada, pobreza, doenças crônicas, problemas legais ou feiura física. O karma excepcionalmente ruim nos levará para corpos animais ou para planetas inferiores de tormento infernal.
A lei do karma é tão estrita, implacável e imparcial quanto as leis naturais mais grosseiras de movimento e gravidade. E, como elas, aplicam-se a nós quer a conheçamos, quer a ignoremos. Por exemplo, se como a carne de animais muito embora eu possa viver tão bem sem ela quanto com ela, meu mau karma me forçará a nascer como um animal a ser morto. Ou se faço o arranjo para que um feto seja morto no ventre, faço simultaneamente o arranjo para que eu mesmo seja morto da mesma maneira, vezes e mais vezes, sem nunca ver a luz do dia.
Assim, quando você e eu nascemos, nós herdamos, junto de nossos olhos azuis ou de nossos cabelos negros, as consequências de nossos atos bons e ruins. Temos uma longa história, e a felicidade e a aflição que nossa vida trará estão determinadas. Somos de fato filhos do destino, refém da sorte, mas é um destino, uma sorte, que nós criamos para nós, uma sorte autoestabelecida. E, nesta vida, continuamos criando nossa sorte.
Kushner, todavia, não está ciente de nada disso, em virtude do que não pode compreender seu sofrimento. Ele carrega consigo a inabalável convicção de que Deus lhe deve uma vida agradável e feliz, a convicção de que Deus é obrigado a arranjar tudo para a satisfação dele. Deus, porém, falha, acarretando uma crise de fé em Kushner. As únicas possibilidades são que Deus ou é ruim ou é fraco, Kushner conclui antes de optar pela fraqueza.
Não obstante, apesar de Kushner, Deus é tanto todo-bondoso quanto todo-poderoso. O ponto é que não é ele que projeta o nosso sofrimento – nós fazemos isso. Nós somos os autores de nosso karma. E é uma decisão nossa, não dEle, que nos traz para o mundo material, para o reino do sofrimento.
A resposta à pergunta de “por que coisas ruins acontecem às pessoas boas” é que isso não acontece. Todos nós aqui no mundo material – como posso dizer? – não somos da melhor índole. Perversos e trapaceiros – cada um de nós somos persona non grata no reino de Deus. Somos enviados para cá porque buscamos uma vida independente de Deus, e Ele realiza nosso desejo tanto quanto possível. Como a posição dEle é fixa, no entanto, tudo o que podemos fazer é brincarmos de Deus enquanto mentimos para nós considerando-nos independentes dEle.
Ao mesmo tempo, o mundo material reforma-nos, ensina-nos através de recompensa e punição a reconhecer a posição suprema de Deus, pois, através da lei natural, nossa cota do prazer que desejamos é distribuída de acordo com a obediência às regulações divinas, seguindo os caminhos do bom karma. A prática de bom karma, então, corresponde à religião materialmente motivada, um cumprimento das ordens de Deus pela instigação de uma recompensa material. Mediante essa prática, depois de muitas vidas, eu, espera-se, posso tornar-me habituado a seguir as ordens de Deus e, destarte, reconcilio-me com Sua supremacia. Eu, então, torno-me finalmente apto a adotar a religião pura e eterna, na qual, completamente livre de todos os desejos materiais, sirvo a Deus com devoção amorosa, sem pedir nada em troca. Semelhante religião, chamada de bhakti nos Vedas, causa meu retorno ao reino de Deus. As atividades de bhakti são livres de karma, isto é, não produzem nenhum nascimento material futuro, quer bom, quer ruim.
A partir dos Vedas, então, aprendemos sobre duas religiões claramente distintas: uma pura e outra impura. Praticar bom karma pode nos elevar no mundo material, garantir-nos uma longa duração de vida nos planetas celestiais e assim por diante. Em outras palavras, pode fazer de nós prisioneiros de primeira classe do mundo material. Bhakti, em contraste, pode nos libertar definitivamente da prisão. Mesmo o melhor karmanão nos libertará do sofrimento, como Krishna alerta no Bhagavad-gita (8.16): “Partindo do planeta mais elevado no mundo material e descendo até o mais baixo, todos são lugares de miséria, onde ocorrem repetidos nascimentos e mortes”. Bhakti, no entanto, destrói toda reação cármica, extirpa todos os desejos materiais, revive nosso amor puro por Deus e envia-nos para Sua morada, além do nascimento e da morte. Lá, jamais experienciamos prazer material temporário, senão que, ao invés disso, saboreamos a bem-aventurança espiritual eterna de servir Krishna, em consequência do que nos juntamos à Sua bem-aventurança.
É algo de destaque na tradição védica o fato de ela distinguir muito claramente entre a religião de bom karma e a religião de bhakti e oferecer bhakti puramente, sem transigência. A maioria de nós, quer católicos, quer protestantes, quer judeus, foi ensinada a pensar em um tipo de religião cármica: Deus nos colocou nesta Terra para nos divertirmos, e se procedermos dentro dos limites estabelecidos, não nos esquecendo de mostrar gratidão a Deus e o devido respeito, Ele providenciará o nosso sucesso. Devemos solicitar a Deus que atenda as nossas necessidades e realize os nossos desejos lícitos, pois Ele é o melhor fornecedor de pedidos. Se formos obedientes e bons, Ele nos recompensará bem nesta vida e ainda melhor na próxima.
Esta é a religião que Kushner professou: “Como a maioria das pessoas, eu e minha esposa crescemos com uma imagem de Deus como uma figura parental de completa sabedoria e todo-poderosa que nos trataria como nossos parentes terrestres tratam ou até mesmo melhor. Se fôssemos obedientes e merecedores, Ele nos recompensaria. Se saíssemos da linha, Ele nos disciplinaria, com relutância porém firmeza. Ele nos impediria de machucarmos a nós mesmos ou de sermos machucados por alguém, e providenciaria que obtivéssemos o que mereceríamos na vida”.
É claro que Kushner começa a reconsiderar sua religião quando descobre que isso não funciona. Neste ponto, a maioria das pessoas, como o marmorista, torna-se ateísta. A ideia de Deus como o fornecedor de pedidos é, portanto, responsável por uma grande quantidade de descrença. Kushner, no entanto, quer preservar sua fé em Deus, ou pelo menos na bondade de Deus, mediante a negação de Seu poder.
O principal argumento de que Kushner se vale para defender sua posição é que isso é “religiosamente adequado”, ou seja, confortante. Você deve se lembrar de que ele acusou a teodiceia convencional de fazer as pessoas se sentirem piores – fazendo-as se sentirem culpadas e odiarem Deus. A explicação de sofrimento que apresentei não deve fazer ninguém se sentir pior. É verdade que diz que nós causamos nosso próprio sofrimento, mas o ponto não é nos fazer nos sentirmos culpados. O ponto é tomarmos consciência de que cometemos erros e devemos corrigi-los. E por que deveríamos ter raiva de Deus por nosso sofrimento? O sofrimento vem pela lei do karma. O karma, no entanto, é a equação imparcial da lei causal. A hostilidade para com Deus foi o que nos colocou sob tal lei; isso certamente não nos ajudará a sair dela. No que diz respeito a Ele, Deus está fazendo todo esforço para nos libertar: Ele vem a este mundo de tempos em tempos para ensinar o caminho de bhakti, caminho este capaz de destruir todo o nosso karma. Ele envia Seus representantes ao longo do mundo na mesma missão, e Ele até mesmo reside em nosso íntimo como a Superalma durante nossa estadia no mundo material, pronto para nos dar a inteligência para nos aproximarmos dEle quando deixemos de lado nossa velha inimizade unilateral.
Kushner tem os instintos corretos: ele também gostaria que as pessoas cessassem sua inimizade para com Deus, e até mesmo reconhece a baixeza de adorá-lO sob a condição de que Ele satisfaça nossas demandas. Mas somente se reconhecermos as limitações de Deus, ele diz, não ficaremos com raiva dEle uma vez que revezes visitem nossa vida, tampouco O adoraremos para a satisfação de nossos desejos. Kushner, portanto, urge a adequação religiosa de sua teodiceia pessoal.
Contudo, está longe de ser adequada. O problema de Kushner é que não consegue superar o condicionamento da religião cármica. Ele precisa de algo mais poderoso espiritualmente do que bons instintos para livrá-lo da inerente hostilidade para com Deus, a inconsciente e profundamente assentada aversão a servi-lO incondicionalmente, o que atrela a alma condicionada ao karma.
Kushner continua hostil. Porque Deus não satisfez suas expectativas, Kushner tem que pensar nEle como ineficaz e fraco. Kushner certa vez pensou em Deus como um pai que sempre satisfaz os nossos sentidos. Agora, no entanto, Kushner O vê como alguém carente de nosso perdão por ter falhado como pai: “Você é capaz de perdoar e amar Deus mesmo depois de descobrir que Ele não é perfeito, mesmo depois de Ele ter deixado você abatido e desapontado por permitir má sorte e doença e crueldade em Seu mundo, e por permitir que tais coisas afetassem você? Você consegue aprender a amar e perdoá-lO apesar de Suas limitações [...] assim como você uma vez aprendeu a perdoar e amar seus pais muito embora eles não fossem tão sábios, tão fortes ou tão perfeitos quanto você precisaria que fossem?”.
Kushner declara que não sente mais qualquer hostilidade em relação a Deus, mas o que ele realmente fez foi simplesmente mudar a forma em que isso é expresso – de raiva a inferiorização. E tal ideia de Deus apenas dará suporte à nossa resistência a reconhecer Sua supremacia, o que, consequentemente, ajudará a nos manter no mundo material, onde continuaremos a sofrer. Assim, a teodiceia de Kushner não nos fará nos sentirmos melhores; fará apenas com que nos sintamos piores.
Ademais, se pensarmos em Deus como fraco e ineficaz, é certo que não seremos capazes de nos rendermos a Ele completamente e servi-lO sem qualquer consideração pessoal. A condição que torna semelhante serviço e semelhante rendição possíveis é Sua promessa de completa proteção. “Declara ousadamente”, Krishna diz a Seu discípulo Arjuna, “que Meu devoto jamais perece”. (Bhagavad-gita 9.31). Porque podemos depender inteiramente de Deus, podemos nos render inteiramente a Ele: “Abandona todas as variedades de religião e simplesmente rende-te a Mim. Libertar-te-ei de todas as reações pecaminosas. Por conseguinte, nada tens a temer”. (Bhagavad-gita 18.66)
Se aceitarmos Kushner, sempre teremos que cuidar de nós mesmos, teremos de agir pela nossa causa pessoal, em razão do que permaneceremos envolvidos com o karma. Nosso serviço a Deus jamais será total e incondicional. Com efeito, enquanto insistamos em cuidar de nós mesmos, Deus nos deixará entregues aos nossos projetos pessoais.
Contudo, se aceitamos Krishna, se abandonamos a ação independente e dependemos por completo de Deus, devotando todo o nosso serviço a Seu serviço, Ele Se encarregará de nós completamente. Não devemos esperar que Deus remova todas as inconveniências, mas, se a dificuldade vier, devemos simplesmente tolerá-la reconhecendo que resíduos de nosso mau karma estão atuando sobre nós, ao mesmo tempo em que continuamos com a expectativa de receber a graça de Deus.
Deus minimizará a reação cármica destinada a nós, mas a máxima proteção dEle é conferir-nos consciência espiritual e destruir a ignorância pela qual nos identificamos com a matéria. Krishna descreve essa consciência no Bhagavad-gita (6.22-23): “Nesse estado jubiloso, o indivíduo está situado em ilimitada felicidade transcendental e se apraz mediante sentidos transcendentais”. Situado em tal posição, ele jamais se abala, mesmo em meio às maiores dificuldades. Isso, com efeito, é verdadeira liberdade de todas as misérias que surgem do contato material. Deus nos liberta não a fim de que possamos passar nosso tempo à toa, não a fim de que possamos obter alguma “recompensa”, mas a fim de que possamos servi-lO de todo coração, sem qualquer outra preocupação.
Então, caso aceitemos Krishna, podemos solucionar o problema do mal. A solução não está em rejeitar nem a bondade nem o poder de Deus, mas em aproveitarmos essa bondade e esse poder para prestarmos serviço devocional puro – e, deste modo, findar todo o nosso sofrimento para sempre.
Fonte:http://voltaaosupremo.com/artigos/artigos/quando-coisas-ruins-acontecem-a-pessoas-boas/
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