Como estudar o budismo
Ensinando o Darma, o Buda deu ao mundo um presente de inestimável valor, que ensina como encontrar a liberdade. O Darma é um espelho que reflete nossas mais profundas verdades interiores. Mostra-nos como podemos nos libertar de nossas próprias ilusões ao revelar profundas camadas de verdade que já existem dentro de nós. Essas são as mesmas verdades que governam o universo. Examinando nossa mente no espelho dos ensinamentos do Buda, descobriremos que a sabedoria que nela desperta é algo que já conhecíamos. A verdade não é algo alheio a nós e, de fato, quando a aprendemos, vemos que é muito menos desconhecida do que as ilusões nas quais acreditávamos antes.
O preço de aprender o Darma não é fácil de avaliar ou descrever, pois esse aprendizado requer que despertemos para nós mesmos. Exige também que tomemos muitas pequenas e silenciosas decisões no âmago de nosso ser. Devemos decidir que queremos mudar, aprender e realmente tentar aplicar os ensinamentos do Buda ao mundo em que vivemos. O budismo não é uma ciência árida que possa ser vista como separada das pessoas que nos rodeiam, assim como não é apenas mais um papel que possamos adotar com relação a elas.
O Darma é a verdade. Por ser verdadeiro, o Darma não pode estar contido em uma única súmula. Tampouco pode ser capturado em alguma fórmula abstrata da linguagem filosófica. Basta chegarmos à certeza de tê-lo compreendido para que o Darma uma vez mais nos escape. Isso acontece porque, no momento em que tocamos uma de suas verdades, nós próprios começamos a mudar. No momento em que uma luz se acende na escuridão, a escuridão desaparece – desaparece a sombria mão que escondia a luz.
O aprendizado do Darma é o processo mais empolgante e maravilhoso do mundo. A seguir, tentarei explicar como abordar o Darma de forma a tirar dele o maior proveito. Os conselhos que apresentarei foram testados e aprovados por praticantes budistas ao longo de mais de dois mil anos. Lembre-se sempre: no processo de aprendizado das verdades que o Buda ensinou, um elemento muito importante é aprender como aprendê-las.
Verdades para vida
Tenho sobre o Darma uma certeza absoluta: ele é para as pessoas. Os ensinamentos do Buda não são um mero sistema filosófico para recolocar em ordem os conceitos que estão em nossa cabeça, mas um ato vivo de compaixão para nos mostrar como abrir o coração ao milagre da consciência – a nossa consciência em meio à consciência dos demais.
Aprendi essa verdade da forma como todos devem aprendê-la: vivendo a vida e aplicando os ensinamentos do Buda àquilo que eu experienciava. Espero que, ao descrever algumas dessas minhas experiências, consiga auxiliar os leitores a compreender minha abordagem do Darma e minha profunda certeza de que ele deve ser praticado com as pessoas, em meio a elas e para elas.
Aprendi essa verdade da forma como todos devem aprendê-la: vivendo a vida e aplicando os ensinamentos do Buda àquilo que eu experienciava. Espero que, ao descrever algumas dessas minhas experiências, consiga auxiliar os leitores a compreender minha abordagem do Darma e minha profunda certeza de que ele deve ser praticado com as pessoas, em meio a elas e para elas.
Nasci na China, num vilarejo da província de Jiangsu, em 1927. Como a maioria das pessoas da época e do lugar, minha família professava uma mistura de crenças religiosas, acreditando tanto em deuses e espíritos como nos ensinamentos do Buda. Não havia separação clara entre as diferentes crenças, mas uma coisa era certa: a religião era uma parte muito importante da vida de todos. Assim, aos três ou quatro anos, eu já havia absorvido a profunda convicção religiosa da classe camponesa da China.
Minha infância foi passada, em grande parte, na casa da minha avó materna. Por motivos religiosos, ela era vegetariana desde os 18 anos. Casou-se com meu avô e manteve essa prática, além de adotar outras. Despertava muito cedo todas as manhãs para recitar um sutra budista. Embora ela não fosse capaz de ler uma única palavra, ela conhecia de cor o Sutra Amitabha e o Sutra Vajracchedika-prajñaparamita (Sutra Diamante), entre outros.
A recitação dos sutras proporcionou-lhe poderosas experiências religiosas, interpretadas por ela como o desenvolvimento de superpoderes, o que a levou a redobrar seu empenho: passou a levantar-se ainda mais cedo e a meditar por mais tempo. Ainda me lembro dela, saindo da cama antes do raiar do Sol para meditar. Não sei onde ela havia aprendido um exercício de ioga que fazia seu estômago roncar. O barulho era tão alto que chegava a me acordar, arrancando-me dos sonhos.
Uma vez perguntei: “Vovó, por que sua barriga faz tanto barulho?”.
E ela respondeu: “É o meu kung-fu, resultado de anos de prática”.
À medida que fui crescendo, tive contato com muitas outras formas de religiosidade popular, incluindo reuniões mediúnicas, transes, “viagens espirituais”, fenômenos de clarividência etc.
Fui para o monastério com 12 anos. Naquele momento, meu mundo mudou. Deixei de ser uma criança despreocupada e tornei-me um disciplinado estudante do Darma. Sete ou oito anos de estudos se passaram antes que eu pudesse voltar à minha vila para visitar a família. A guerra com o Japão (1937-1945) já havia ter minado. Encontrei minha avó sentada embaixo de uma árvore, costurando. Ajoelhei-me a seu lado e, de repente, pensei: durante todo aquele tempo no monastério, eu nunca tinha ouvido falar de uma técnica de meditação que fizesse o estômago roncar. Julguei a oportunidade excelente para ensinar-lhe algo mais a respeito do Darma.
Vovó, sua barriga ainda faz aquele barulho quando a senhora medita?”, perguntei.
Com a pura sinceridade das velhas senhoras, ela me respondeu: “É claro que sim. Como poderia viver sem aquele kung-fu?”.
Repliquei então: “Mas qual a utilidade disso? Carros e aviões também fazem barulho. Uma máquina pode fazer mais barulho que o seu estômago. Provocar o estômago para fazer ruídos não ajuda na elevação moral da raça humana e nem ajuda os seres sencientes a se libertarem do ciclo de nascimento e morte. Conheci muitos grandes mestres nos últimos anos, e nenhum deles faz o estômago roncar durante a meditação”.
Minha avó ficou perplexa. Depois de um longo silêncio, indagou:
“Então, qual é a forma correta de me aperfeiçoar?”.
Respondi: “O cultivo adequado exige que desenvolvamos todo o potencial de nosso caráter através da elevação da natureza moral, em cada oportunidade que se nos apresente. A verdadeira prática espiritual requer que nos observemos de perto para perceber a verdadeira natureza da mente. Nada disso tem a ver com fazer o estômago roncar!”.
Minha avó ficou me olhando por um longo tempo. Sob seus olhos maduros e gentis, minha certeza se desvaneceu. E o pior é que ela havia acredita do em mim! Suas décadas de prática solitária eram o alicerce de sua fé. Talvez fosse mesmo verdade que os roncos de seu estômago não tinham ajudado muito na elevação moral da raça humana, mas também era verdade – e esta era uma verdade muito mais profunda – que seu kung-fu era tudo o que ela tinha. Era tudo para ela.
Em um único instante impensado e com pouquíssimas palavras, levei-a a questionar o alicerce de sua fé. Mal consegui enfrentar a decepção que vi em seus olhos. Eu era jovem e tinha ultrapassado os limites do nosso vilarejo. Portanto, ela acreditou em mim. Continuamos a conversar, mas percebi que eu nada poderia fazer ou dizer para sanar a dor que havia provocado. Até hoje essa lembrança me incomoda.
Pouco tempo depois, a China continental entrou no turbilhão da revolução comunista. Acompanhei uma unidade militar que foi enviada para Taiwan (Ilha de Formosa), pensando logo retornar ao continente, mas, à medida que a revolução avançava e mais soldados nacionalistas batiam em retirada, percebemos que o mais provável era ficarmos em Taiwan por muito tempo. Foi o que aconteceu.
Quando comecei a pregar o Darma em Taiwan, lembrei-me de minha experiência com minha avó. Nunca mais tentei destruir as complexas crenças populares de quem viesse me ouvir. Percebi que esse tipo de convicção religiosa pode servir de introdução às profundas verdades ensinadas pelo Buda. Ninguém consegue compreender o Darma em uma única palestra; portanto, devemos respeitar as crenças dos outros.
Em 1953, mudei-me para Yilan, na costa leste de Taiwan. Logo percebi que, muito provavelmente, eu era o primeiro monge budista a pôr os pés ali para pregar o Darma. Havia na região um templo sempre cheio de fumaça de incenso, que era dedicado à deusa Mazu, protetora dos navegantes. Toda a população da localidade ia lá para reverenciar e adorar. Ninguém tinha a compreensão do budismo, mas todos os fiéis acreditavam que aquela era uma forma de prática budista. E, estando satisfeitos com elas, jamais aceitariam que alguém de fora da comunidade pudesse convencê-los a tentar outra coisa. Muitos missionários cristãos passaram pela região sem conseguir uma conversão sequer.
Com a lembrança da decepção de minha avó ainda fresca na memória, empreendi a tarefa de apresentar os ensinamentos do Buda com muito mais reserva do que teria tido anteriormente. Decidi adotar uma abordagem gradual, considerando cuidadosamente aquilo em que as pessoas já acreditavam. Sabia muito bem que tentar demolir suas crenças de nada adiantaria: esse caminho apenas as levaria a decepcionar-se consigo mesmas ou a rejeitar o Darma e a mim.
Concepções errôneas não são tão boas como concepções corretas, mas, pelo menos por algum tempo, servem para abrandar a impressão de solidão e isolamento dos que são desprovidos de convicções religiosas. Por ter vivido minha juventude no interior da China, aprendi que a religião é importante para o bem-estar da sociedade como um todo. Um olhar nos olhos de minha avó ensinou-me a ver que a religião é essencial a todo e qualquer coração humano.
Todo monge budista estuda o Darma e aprende com tantos professores quanto possível. Eu não fui exceção à regra. Um monge budista geralmente estuda com um mestre principal. Meu orientador foi mestre Zhikai (1911-1981), abade do Monastério Qi Xia Shan, um dos maiores e mais antigos da China. Apesar de ser o abade desse monastério tão importante e famoso em toda a China, ele nunca fez nada para me ajudar: apenas me enviava a outros monastérios para estudar, e, às vezes, anos se passavam sem que eu o visse.
Nas raras ocasiões em que o encontrei, ele nunca me ofereceu a oportunidade de sentar com ele, conversar e fazer perguntas. Ele era como a maioria dos monges de sua geração: tratava os monges mais novos com extrema frieza. Quando não estava aborrecido com algo que eu tivesse feito, mestre Zhikai estava me dando ordens. Jamais me perguntou se eu precisava de alguma coisa ou se havia algo que pudesse fazer para me ajudar. Em dez anos, tudo que ganhei dele foram duas mudas de roupa. E é claro que eu não ousava pedir-lhe dinheiro para comprar roupas. Entretanto, sempre que escrevia para casa, dizia algo como: “O mestre é muito bom para mim. Estou muito feliz aqui. Vocês não precisam se preocupar comigo”.
Nas décadas de 1930 e 1940, a China era um país muito pobre. No monastério onde eu morava, havia mais de quatrocentas pessoas. Nossa comunidade era tão carente que só comíamos arroz integral duas vezes por mês. Em geral, as refeições limitavam-se a um ralo mingau de arroz. O caldo servido no desjejum, de tão ralo, era quase transparente. O pouco de comida servido com o mingau não passava de bagaço de queijo de soja ou tiras de nabo seco. O queijo de soja de verdade era reservado para os visitantes. Das tiras de nabo, frequentemente saíam larvas que rastejavam pela mesa. Visto que nunca tínhamos óleo comestível, o resíduo de queijo de soja que comíamos não era cozido. Havia poucos nutrientes em nossa alimentação; mas, pelo que me lembro, não ficávamos doentes com frequência. A maioria era bem saudável.
A vida monástica nos ensinou a sermos estoicos. Esperavam de nós que fôssemos firmes e capazes de suportar privações. Estoicismo não é a única virtude no mundo, mas acho que é uma das mais úteis no ensino e no aprendizado do Darma. Como poderia conquistar a própria mente alguém que não consegue aguentar as provações do corpo?
Não existe melhor professor do que a vida. Não adoto o método antigo com meus discípulos, mas não me ressinto de ter passado por ele. Depois de alguns anos vivendo daquela maneira, dificilmente alguma coisa consegue nos perturbar.
Aos 15 anos, fui ordenado monge. A cerimônia de ordenação estendeu-se por 53 dias, período que deixou marca indelével em minha mente e foi a fonte de muitos hábitos que até hoje mantenho.
Durante os 53 dias da cerimônia, tínhamos de prestar total atenção àquilo que estávamos fazendo. Nesse período, mal abri os olhos e nem uma vez ousei virar a cabeça para ver o que acontecia ao meu redor. Aos 15 anos, os jovens são curiosos, querem saber de tudo e ver quem está fazendo o quê. Ouvem o som do vento nos campos e querem ir até a janela para ver o que está acontecendo. É a curiosidade natural da juventude. Durante a cerimônia de ordenação, tal comportamento era inadmissível. Se fizéssemos algum movimento, um dos monges coordenadores vinha e nos batia com uma vara, dizendo: ”Garoto, o que você pensa que está fazendo? Feche os ouvidos e deixe de prestar tanta atenção ao que ocorre fora de você!” ou: “Rapaz, não deixe seus olhos serem levados por tudo o que veem! De tudo isso, o que realmente lhe pertence?”.
Lembro-me bem do golpe de vara que me levou a pensar na verdade contida naquelas palavras. De fato, em todo o monastério Qi Xia Shan, não havia um tijolo, uma telha, uma folha sequer que me pertencesse. Aquela lição me tocou profundamente, e até hoje ainda tenho por hábito fechar os olhos e me abstrair do mundo ao meu redor. Nesses momentos, descortinam-se as tranquilas paisagens do mundo interior, e meus olhos e ouvidos preenchem-se com os sons da solidão interna, em vez de com os ruídos da mudança dos fenômenos.
Quando a cerimônia de ordenação estava para ser concluída, pude lançar novamente o olhar ao mundo. Ainda me lembro de que tudo me pareceu vívido e fresco. Montanhas, árvores e flores saltaram à minha mente com uma intensidade nunca antes experimentada.
Existe um ditado que afirma: “Praticar o Darma por um minuto vale mais do que falar dez minutos sobre o Darma”. O texto deste livro destina-se a auxiliar o leitor a penetrar nos significados profundos do ensinamento do Buda Shakyamuni. Não é aqui apresentado como ideias desvinculadas da vida. Aprender o Darma sem praticá-lo seria trágico! Minha esperança é de que todos os que lerem este livro venham a também praticar os ensinamentos nele contidos.
Recitar o nome do Buda ou meditar regularmente assemelha-se a cozinhar. O esforço constante é como a chama sob uma panela de arroz. Se acendermos o fogo e o apagarmos em seguida, não conseguiremos preparar a refeição. Contudo, aplicando a quantidade certa de calor durante o tempo correto, iremos usufruir plenamente dos frutos de nossos esforços. Essa é a sabedoria de milênios de prática budista. Ao concentrar a mente nesses grandiosos ensinamentos, sendo receptivos a eles, as maravilhosas e compassivas energias de planos mais elevados começarão a preencher nossa vida. E com elas aprenderemos o caminho para encontrar a verdade.
A prática budista deve começar por nós mesmos: quem somos, o que somos, o que fazemos. Primeiro, aprendemos a controlar os impulsos negativos do corpo. Isso é moralidade. Em seguida, aprendemos a controlar a mente. Isso é meditação. Enfim, aprendemos a compreender as verdades profundas da vida. Isso é sabedoria. Cada estágio depende do anterior.
Quando eu era jovem, passávamos muitas horas em meditação. Assim como em muitos monastérios chineses, os ensinamentos do Qi Xia Shan eram uma combinação das escolas Terra Pura e Chan. Às vezes, recitávamos o nome do Buda Amitabha; outras, simplesmente meditávamos sobre nossa natureza búdica. Essas duas práticas complementam-se muito bem, uma vez que a primeira ensina a humildade de depender do Buda e a segunda ensina a sabedoria de depender de si próprio.
No monastério, costumávamos meditar à noite. Suponho que isso acontecia em parte porque nada mais tínhamos a fazer. Nosso templo localizava-se nas montanhas e dispúnhamos de pouquíssimos recursos. Não podíamos desperdiçar óleo com lamparinas para ler à noite, pois nosso óleo mal dava para as necessidades da cozinha. Ensinaram-nos a sentar na posição de lótus. A finalidade da meditação é acalmar a mente, assentando assim as distrações do pensamento iludido. À medida que isso acontece, uma consciência mais elevada começa a se manifestar.
Nos escritos budistas, a mente é por vezes comparada a um espelho-d’água, cuja natureza original é límpida e pura e só se turva quando o sedimento da ilusão é remexido em seu fundo. A meditação é vista como uma forma de deixar o sedimento assentar e, quando isso ocorre, tudo se torna claro. Provavelmente, a maior lição que podemos aprender sentados em meditação é que a clareza mental também pode ser alcançada em qualquer situação. Ao dominar a técnica da meditação na posição sentada, começamos a ver que também é possível vivenciar profundos estados meditativos em pé, andando ou fazendo praticamente qualquer coisa.
A meditação é um elemento essencial da prática budista, mas não pensem que seja tudo no budismo. A verdade mais profunda que aprendi no templo chan do monastério Qi Xia Shan foi que a mente em meditação é a mente de todos os seres sencientes – e essa é a mente de todos os Budas. A meditação é uma porta; o que passa por essa porta é nossa compaixão pelos outros.
A principal razão que leva as pessoas a abandonar o budismo ou a não obter grande benefício com sua prática é não terem aprendido como adotar para si mesmos o equilíbrio adequado entre a experiência e a compreensão dos ensinamentos do Buda. Como consequência desse desequilíbrio, perdem o entusiasmo e concluem que o Darma não leva a nada. Ora, não é pleno o entendimento do Darma que se baseie só nas palavras ou apenas no funcionamento da mente. A finalidade da recitação e da meditação é mostrar que a percepção do Buda Shakyamuni é real. Quando temos essa experiência em meditação, ou quando isso nos inspira na recitação, nós nos renovamos e nos capacitamos a prosseguir no longo processo de introspecção e crescimento moral que é o caminho para a iluminação.
Se sentirem preguiça em seus estudos ou tédio com o Darma, encontrem um lugar adequado para meditar ou procurem uma oportunidade de fazer um retiro. A experiência será transformadora. Com a prática, os benefícios da meditação são rapidamente trazidos à mente. Com a prática, aprendemos a sentir o Buda interior quase sem precisar procurar.
Minha maior ambição sempre foi disseminar o Darma por meio de textos: apenas a palavra escrita sobre vive ao tempo. Aprendi o Darma principalmente em escritos de outros e sinto que meu dever é tentar transmiti-lo de forma adequada. As verdades contidas no Darma transcendem as palavras; apesar disso, a linguagem é o meio utilizado para se transmitirem essas verdades. Espero que os leitores deste pequeno livro apreciem as palavras nele contidas, beneficiando-se da profunda sabedoria do Buda que originalmente as pronunciou.
Hsing Yün
Minha infância foi passada, em grande parte, na casa da minha avó materna. Por motivos religiosos, ela era vegetariana desde os 18 anos. Casou-se com meu avô e manteve essa prática, além de adotar outras. Despertava muito cedo todas as manhãs para recitar um sutra budista. Embora ela não fosse capaz de ler uma única palavra, ela conhecia de cor o Sutra Amitabha e o Sutra Vajracchedika-prajñaparamita (Sutra Diamante), entre outros.
A recitação dos sutras proporcionou-lhe poderosas experiências religiosas, interpretadas por ela como o desenvolvimento de superpoderes, o que a levou a redobrar seu empenho: passou a levantar-se ainda mais cedo e a meditar por mais tempo. Ainda me lembro dela, saindo da cama antes do raiar do Sol para meditar. Não sei onde ela havia aprendido um exercício de ioga que fazia seu estômago roncar. O barulho era tão alto que chegava a me acordar, arrancando-me dos sonhos.
Uma vez perguntei: “Vovó, por que sua barriga faz tanto barulho?”.
E ela respondeu: “É o meu kung-fu, resultado de anos de prática”.
À medida que fui crescendo, tive contato com muitas outras formas de religiosidade popular, incluindo reuniões mediúnicas, transes, “viagens espirituais”, fenômenos de clarividência etc.
Fui para o monastério com 12 anos. Naquele momento, meu mundo mudou. Deixei de ser uma criança despreocupada e tornei-me um disciplinado estudante do Darma. Sete ou oito anos de estudos se passaram antes que eu pudesse voltar à minha vila para visitar a família. A guerra com o Japão (1937-1945) já havia ter minado. Encontrei minha avó sentada embaixo de uma árvore, costurando. Ajoelhei-me a seu lado e, de repente, pensei: durante todo aquele tempo no monastério, eu nunca tinha ouvido falar de uma técnica de meditação que fizesse o estômago roncar. Julguei a oportunidade excelente para ensinar-lhe algo mais a respeito do Darma.
Vovó, sua barriga ainda faz aquele barulho quando a senhora medita?”, perguntei.
Com a pura sinceridade das velhas senhoras, ela me respondeu: “É claro que sim. Como poderia viver sem aquele kung-fu?”.
Repliquei então: “Mas qual a utilidade disso? Carros e aviões também fazem barulho. Uma máquina pode fazer mais barulho que o seu estômago. Provocar o estômago para fazer ruídos não ajuda na elevação moral da raça humana e nem ajuda os seres sencientes a se libertarem do ciclo de nascimento e morte. Conheci muitos grandes mestres nos últimos anos, e nenhum deles faz o estômago roncar durante a meditação”.
Minha avó ficou perplexa. Depois de um longo silêncio, indagou:
“Então, qual é a forma correta de me aperfeiçoar?”.
Respondi: “O cultivo adequado exige que desenvolvamos todo o potencial de nosso caráter através da elevação da natureza moral, em cada oportunidade que se nos apresente. A verdadeira prática espiritual requer que nos observemos de perto para perceber a verdadeira natureza da mente. Nada disso tem a ver com fazer o estômago roncar!”.
Minha avó ficou me olhando por um longo tempo. Sob seus olhos maduros e gentis, minha certeza se desvaneceu. E o pior é que ela havia acredita do em mim! Suas décadas de prática solitária eram o alicerce de sua fé. Talvez fosse mesmo verdade que os roncos de seu estômago não tinham ajudado muito na elevação moral da raça humana, mas também era verdade – e esta era uma verdade muito mais profunda – que seu kung-fu era tudo o que ela tinha. Era tudo para ela.
Em um único instante impensado e com pouquíssimas palavras, levei-a a questionar o alicerce de sua fé. Mal consegui enfrentar a decepção que vi em seus olhos. Eu era jovem e tinha ultrapassado os limites do nosso vilarejo. Portanto, ela acreditou em mim. Continuamos a conversar, mas percebi que eu nada poderia fazer ou dizer para sanar a dor que havia provocado. Até hoje essa lembrança me incomoda.
Pouco tempo depois, a China continental entrou no turbilhão da revolução comunista. Acompanhei uma unidade militar que foi enviada para Taiwan (Ilha de Formosa), pensando logo retornar ao continente, mas, à medida que a revolução avançava e mais soldados nacionalistas batiam em retirada, percebemos que o mais provável era ficarmos em Taiwan por muito tempo. Foi o que aconteceu.
Quando comecei a pregar o Darma em Taiwan, lembrei-me de minha experiência com minha avó. Nunca mais tentei destruir as complexas crenças populares de quem viesse me ouvir. Percebi que esse tipo de convicção religiosa pode servir de introdução às profundas verdades ensinadas pelo Buda. Ninguém consegue compreender o Darma em uma única palestra; portanto, devemos respeitar as crenças dos outros.
Em 1953, mudei-me para Yilan, na costa leste de Taiwan. Logo percebi que, muito provavelmente, eu era o primeiro monge budista a pôr os pés ali para pregar o Darma. Havia na região um templo sempre cheio de fumaça de incenso, que era dedicado à deusa Mazu, protetora dos navegantes. Toda a população da localidade ia lá para reverenciar e adorar. Ninguém tinha a compreensão do budismo, mas todos os fiéis acreditavam que aquela era uma forma de prática budista. E, estando satisfeitos com elas, jamais aceitariam que alguém de fora da comunidade pudesse convencê-los a tentar outra coisa. Muitos missionários cristãos passaram pela região sem conseguir uma conversão sequer.
Com a lembrança da decepção de minha avó ainda fresca na memória, empreendi a tarefa de apresentar os ensinamentos do Buda com muito mais reserva do que teria tido anteriormente. Decidi adotar uma abordagem gradual, considerando cuidadosamente aquilo em que as pessoas já acreditavam. Sabia muito bem que tentar demolir suas crenças de nada adiantaria: esse caminho apenas as levaria a decepcionar-se consigo mesmas ou a rejeitar o Darma e a mim.
Concepções errôneas não são tão boas como concepções corretas, mas, pelo menos por algum tempo, servem para abrandar a impressão de solidão e isolamento dos que são desprovidos de convicções religiosas. Por ter vivido minha juventude no interior da China, aprendi que a religião é importante para o bem-estar da sociedade como um todo. Um olhar nos olhos de minha avó ensinou-me a ver que a religião é essencial a todo e qualquer coração humano.
Todo monge budista estuda o Darma e aprende com tantos professores quanto possível. Eu não fui exceção à regra. Um monge budista geralmente estuda com um mestre principal. Meu orientador foi mestre Zhikai (1911-1981), abade do Monastério Qi Xia Shan, um dos maiores e mais antigos da China. Apesar de ser o abade desse monastério tão importante e famoso em toda a China, ele nunca fez nada para me ajudar: apenas me enviava a outros monastérios para estudar, e, às vezes, anos se passavam sem que eu o visse.
Nas raras ocasiões em que o encontrei, ele nunca me ofereceu a oportunidade de sentar com ele, conversar e fazer perguntas. Ele era como a maioria dos monges de sua geração: tratava os monges mais novos com extrema frieza. Quando não estava aborrecido com algo que eu tivesse feito, mestre Zhikai estava me dando ordens. Jamais me perguntou se eu precisava de alguma coisa ou se havia algo que pudesse fazer para me ajudar. Em dez anos, tudo que ganhei dele foram duas mudas de roupa. E é claro que eu não ousava pedir-lhe dinheiro para comprar roupas. Entretanto, sempre que escrevia para casa, dizia algo como: “O mestre é muito bom para mim. Estou muito feliz aqui. Vocês não precisam se preocupar comigo”.
Nas décadas de 1930 e 1940, a China era um país muito pobre. No monastério onde eu morava, havia mais de quatrocentas pessoas. Nossa comunidade era tão carente que só comíamos arroz integral duas vezes por mês. Em geral, as refeições limitavam-se a um ralo mingau de arroz. O caldo servido no desjejum, de tão ralo, era quase transparente. O pouco de comida servido com o mingau não passava de bagaço de queijo de soja ou tiras de nabo seco. O queijo de soja de verdade era reservado para os visitantes. Das tiras de nabo, frequentemente saíam larvas que rastejavam pela mesa. Visto que nunca tínhamos óleo comestível, o resíduo de queijo de soja que comíamos não era cozido. Havia poucos nutrientes em nossa alimentação; mas, pelo que me lembro, não ficávamos doentes com frequência. A maioria era bem saudável.
A vida monástica nos ensinou a sermos estoicos. Esperavam de nós que fôssemos firmes e capazes de suportar privações. Estoicismo não é a única virtude no mundo, mas acho que é uma das mais úteis no ensino e no aprendizado do Darma. Como poderia conquistar a própria mente alguém que não consegue aguentar as provações do corpo?
Não existe melhor professor do que a vida. Não adoto o método antigo com meus discípulos, mas não me ressinto de ter passado por ele. Depois de alguns anos vivendo daquela maneira, dificilmente alguma coisa consegue nos perturbar.
Aos 15 anos, fui ordenado monge. A cerimônia de ordenação estendeu-se por 53 dias, período que deixou marca indelével em minha mente e foi a fonte de muitos hábitos que até hoje mantenho.
Durante os 53 dias da cerimônia, tínhamos de prestar total atenção àquilo que estávamos fazendo. Nesse período, mal abri os olhos e nem uma vez ousei virar a cabeça para ver o que acontecia ao meu redor. Aos 15 anos, os jovens são curiosos, querem saber de tudo e ver quem está fazendo o quê. Ouvem o som do vento nos campos e querem ir até a janela para ver o que está acontecendo. É a curiosidade natural da juventude. Durante a cerimônia de ordenação, tal comportamento era inadmissível. Se fizéssemos algum movimento, um dos monges coordenadores vinha e nos batia com uma vara, dizendo: ”Garoto, o que você pensa que está fazendo? Feche os ouvidos e deixe de prestar tanta atenção ao que ocorre fora de você!” ou: “Rapaz, não deixe seus olhos serem levados por tudo o que veem! De tudo isso, o que realmente lhe pertence?”.
Lembro-me bem do golpe de vara que me levou a pensar na verdade contida naquelas palavras. De fato, em todo o monastério Qi Xia Shan, não havia um tijolo, uma telha, uma folha sequer que me pertencesse. Aquela lição me tocou profundamente, e até hoje ainda tenho por hábito fechar os olhos e me abstrair do mundo ao meu redor. Nesses momentos, descortinam-se as tranquilas paisagens do mundo interior, e meus olhos e ouvidos preenchem-se com os sons da solidão interna, em vez de com os ruídos da mudança dos fenômenos.
Quando a cerimônia de ordenação estava para ser concluída, pude lançar novamente o olhar ao mundo. Ainda me lembro de que tudo me pareceu vívido e fresco. Montanhas, árvores e flores saltaram à minha mente com uma intensidade nunca antes experimentada.
Existe um ditado que afirma: “Praticar o Darma por um minuto vale mais do que falar dez minutos sobre o Darma”. O texto deste livro destina-se a auxiliar o leitor a penetrar nos significados profundos do ensinamento do Buda Shakyamuni. Não é aqui apresentado como ideias desvinculadas da vida. Aprender o Darma sem praticá-lo seria trágico! Minha esperança é de que todos os que lerem este livro venham a também praticar os ensinamentos nele contidos.
Recitar o nome do Buda ou meditar regularmente assemelha-se a cozinhar. O esforço constante é como a chama sob uma panela de arroz. Se acendermos o fogo e o apagarmos em seguida, não conseguiremos preparar a refeição. Contudo, aplicando a quantidade certa de calor durante o tempo correto, iremos usufruir plenamente dos frutos de nossos esforços. Essa é a sabedoria de milênios de prática budista. Ao concentrar a mente nesses grandiosos ensinamentos, sendo receptivos a eles, as maravilhosas e compassivas energias de planos mais elevados começarão a preencher nossa vida. E com elas aprenderemos o caminho para encontrar a verdade.
A prática budista deve começar por nós mesmos: quem somos, o que somos, o que fazemos. Primeiro, aprendemos a controlar os impulsos negativos do corpo. Isso é moralidade. Em seguida, aprendemos a controlar a mente. Isso é meditação. Enfim, aprendemos a compreender as verdades profundas da vida. Isso é sabedoria. Cada estágio depende do anterior.
Quando eu era jovem, passávamos muitas horas em meditação. Assim como em muitos monastérios chineses, os ensinamentos do Qi Xia Shan eram uma combinação das escolas Terra Pura e Chan. Às vezes, recitávamos o nome do Buda Amitabha; outras, simplesmente meditávamos sobre nossa natureza búdica. Essas duas práticas complementam-se muito bem, uma vez que a primeira ensina a humildade de depender do Buda e a segunda ensina a sabedoria de depender de si próprio.
No monastério, costumávamos meditar à noite. Suponho que isso acontecia em parte porque nada mais tínhamos a fazer. Nosso templo localizava-se nas montanhas e dispúnhamos de pouquíssimos recursos. Não podíamos desperdiçar óleo com lamparinas para ler à noite, pois nosso óleo mal dava para as necessidades da cozinha. Ensinaram-nos a sentar na posição de lótus. A finalidade da meditação é acalmar a mente, assentando assim as distrações do pensamento iludido. À medida que isso acontece, uma consciência mais elevada começa a se manifestar.
Nos escritos budistas, a mente é por vezes comparada a um espelho-d’água, cuja natureza original é límpida e pura e só se turva quando o sedimento da ilusão é remexido em seu fundo. A meditação é vista como uma forma de deixar o sedimento assentar e, quando isso ocorre, tudo se torna claro. Provavelmente, a maior lição que podemos aprender sentados em meditação é que a clareza mental também pode ser alcançada em qualquer situação. Ao dominar a técnica da meditação na posição sentada, começamos a ver que também é possível vivenciar profundos estados meditativos em pé, andando ou fazendo praticamente qualquer coisa.
A meditação é um elemento essencial da prática budista, mas não pensem que seja tudo no budismo. A verdade mais profunda que aprendi no templo chan do monastério Qi Xia Shan foi que a mente em meditação é a mente de todos os seres sencientes – e essa é a mente de todos os Budas. A meditação é uma porta; o que passa por essa porta é nossa compaixão pelos outros.
A principal razão que leva as pessoas a abandonar o budismo ou a não obter grande benefício com sua prática é não terem aprendido como adotar para si mesmos o equilíbrio adequado entre a experiência e a compreensão dos ensinamentos do Buda. Como consequência desse desequilíbrio, perdem o entusiasmo e concluem que o Darma não leva a nada. Ora, não é pleno o entendimento do Darma que se baseie só nas palavras ou apenas no funcionamento da mente. A finalidade da recitação e da meditação é mostrar que a percepção do Buda Shakyamuni é real. Quando temos essa experiência em meditação, ou quando isso nos inspira na recitação, nós nos renovamos e nos capacitamos a prosseguir no longo processo de introspecção e crescimento moral que é o caminho para a iluminação.
Se sentirem preguiça em seus estudos ou tédio com o Darma, encontrem um lugar adequado para meditar ou procurem uma oportunidade de fazer um retiro. A experiência será transformadora. Com a prática, os benefícios da meditação são rapidamente trazidos à mente. Com a prática, aprendemos a sentir o Buda interior quase sem precisar procurar.
Minha maior ambição sempre foi disseminar o Darma por meio de textos: apenas a palavra escrita sobre vive ao tempo. Aprendi o Darma principalmente em escritos de outros e sinto que meu dever é tentar transmiti-lo de forma adequada. As verdades contidas no Darma transcendem as palavras; apesar disso, a linguagem é o meio utilizado para se transmitirem essas verdades. Espero que os leitores deste pequeno livro apreciem as palavras nele contidas, beneficiando-se da profunda sabedoria do Buda que originalmente as pronunciou.
Hsing Yün
Prefácio do livro Budismo Significados Profundos, Escrituras Editora, São Paulo, dezembro de 2011.
Quatro estamos mentais para o estudo do Darma
Utilize a fé para estudar o Darma
A fé cega é inútil. O Buda nunca pediu que acreditassem nele cegamente; sempre conclamou as pessoas a testar seus ensinamentos e comprová-los por si próprias. Na verdade, não há outra forma de estudar o Darma a não ser testando-o e voltando a testá-lo todos os dias. O processo de crescimento e aprendizado que se inicia quando entramos em contato com o Darma pela primeira vez só termina com a iluminação. E poderia ser diferente? Como alguém poderia esperar se iluminar sem se esforçar rumo a essa meta todos os dias, sem exceção?
Sendo assim, de que serve a fé? Já que é necessário testar o Darma, por que precisamos de fé para aprendê-lo? A resposta a essa pergunta está no que entendemos por “fé”. Em seu nível mais básico, a fé também poderia ser chamada de “confiança” ou “expectativa razoável”. Um estudante universitário de matemática precisa confiar no professor e ter uma expectativa razoável de que o curso que ele está fazendo o levará a compreender melhor a matéria. Do mesmo modo, um estudante do Darma precisa ter confiança no Buda e ter uma expectativa razoável de que seus ensinamentos o levarão à iluminação.
O Buda ensinou como nos tornamos sábios. A fé que se insinua e se move em nós quando ouvimos sua mensagem é um chamado da sabedoria mais elevada sobre a qual ele falava. Depois de conviver algum tempo com o Darma, passaremos naturalmente a confiar nele cada vez mais. Nossa fé crescerá, porque nossa experiência dos ensinamentos do Buda nos mostrou que eles são verdadeiros. A fé, assim como a sabedoria, cresce quando exposta ao Darma.
Fé, crença, confiança: sem elas, é impossível fazer qualquer coisa. A própria vida baseia-se na fé e na esperança. Sun Yat-sen (1866-1925), considerado o pai da China moderna, criou o slogan “Fé é força”. O Tratado sobre a Perfeição da Grande Sabedoria diz: “O Budadharma (budismo) é um vasto oceano; entramos nele pela fé e o atravessamos pela sabedoria”. Segundo o Sutra Avatamsaka (Sutra da Guirlanda de Flores): “A fé é a mãe de todas as virtudes. Ela nutre todas as boas raízes”.
A fé é como a raiz de uma planta. Nada cresce ou floresce se as raízes não forem fortes. Quando se perde a fé, vai-se também a esperança; a vida torna-se sombria. Quando a fé é adquirida, ganha-se a esperança, e a vida volta a ser maravilhosa. No estudo do Darma, é necessário alcançar o equilíbrio correto entre a necessidade de crer no Darma e a de testá-lo. Se nele acreditarmos com fé demasiada, talvez nunca venhamos a fazer as perguntas mais penetrantes, que levam aos níveis mais profundos de compreensão. Por outro lado, se gastarmos tempo excessivo questionando toda e qualquer palavra, estaremos nos privando da oportunidade de aprender o que quer que seja.
Há pessoas que contestam tudo o que ouvem e argumentam contra todo e qualquer aspecto do ensinamento do Buda. Essa atitude impossibilita o aprendizado, e não era a isso que o Buda se referia ao dizer que sua mensagem deve ser testada. Dizia, isso sim, que devemos primeiro aprender a mensagem e – depois aplicá-la em nossa vida. Aquele que aprende o Darma corretamente e o aplica corretamente em sua vida se convence de que ele é verdadeiro.
Utilize a dúvida para estudar o Darma
Vindo depois do que foi dito, essa sugestão pode parecer estranha. No entanto, já faz milênios que a dúvida constitui um importante método de estudo do Darma. O Darma é como um grande sino: mal se ouve quando tocado de leve; porém, quando tocado com força, repercute tanto que seu som alcança o mundo todo.
O Darma pode ser testado e comprovado. Enfocando todos os vagos –anseios de nossas dúvidas diretamente no Darma, teremos como resposta um sonoro “sim”. Há um ditado chan que se aplica aqui: “Pequenas dúvidas levam a pequenos despertares. Grandes dúvidas levama grandes despertares”. Sem perguntas, não obtemos respostas. Sem dúvidas, não temos pontos de acesso a novas informações. Quem tem certeza de tudo não aprende nada. Nunca tenha medo de fazer nenhuma pergunta, já que, definitivamente, o Darma pode responder a todas as questões.
No Budismo Chan, as dúvidas são utilizadas como técnica de meditação. Os mestres chan nos aconselham a sondar e explorar nossas sensações de dúvida. Por centenas de anos, eles têm dito que as áreas mais obscuras do nosso ser são fontes incríveis de energia que não aproveitamos.
Vastos estados de samádi (concentração) podem se descortinar se ultrapassarmos as palavras e mergulharmos fundo nas reservas primordiais de maravilhamento e dúvida que jazem no fundo do nosso ser. As perguntas, na meditação chan, são elaboradas para que nos aprofundemos nessas jazidas de prodígio e sabedoria. Os mestres chan nos aconselham a fazer amizade com as dúvidas. Sugerem também que nos perguntemos: “Como era meu rosto antes de eu nascer?”, “Quem está recitando o nome do Buda?”
Utilize a mente desperta para estudar o Darma
As pessoas vão à escola para adquirir conhecimento. Estudam o Darma para se iluminar. O processo de iluminação é uma combinação do [despertar] ‘gradual’ e do [despertar] ‘súbito’
Vagarosamente, lemos e estudamos os ensinamentos do Buda até que um dia, de repente, dizemos: “Ah! Entendi”. Então, damos o passo seguinte, recomeçando o mesmo processo: gradual acumulação de informações, seguida de súbita compreensão de como elas devem ser utilizadas.
Se entendermos esse processo, poderemos melhor apreciar os dois aspectos do caminho da iluminação. Um deles baseia-se em um lento processo de aprendizagem, ao passo que o outro é algo que se agita em nós, repentinamente, quando o que foi aprendido penetra as camadas mais profundas do nosso ser. Quando nos aplicamos aos estudos, é necessário atentar para ambos os aspectos.
Certa vez, um jovem estudante perguntou a um mestre chan por onde deveria começar a estudar o Darma. O mestre disse: “Você ouve os pássaros cantando nas árvores e os grilos cricrilando na grama? Pode ver a água fluindo no riacho e as flores despontando nos campos?” O jovem respondeu que sim. O mestre concluiu então: “É por aí que você deve começar a estudar o Darma”. Com essa resposta, o mestre mostrou ao estudante duas coisas importantes: que é preciso utilizar a mente desperta para começar seus estudos e que os estudos devem se fundamentar no mundo real que existe à nossa volta. Se ouvirmos o mundo de forma receptiva, a mente desperta ouvirá a voz do Buda no murmúrio de um regato, e os olhos verão o mundo do Darma em tudo o que contemplarem.
Todos devemos aprender a encontrar a mente desperta em nós. Depois de achá-la, é preciso aprender a confiar nela e utilizá-la para descobrir o caminho rumo ao Buda que já existe dentro de nós.
Outra história na crônica do Budismo Chan ilustra o mesmo ponto de outra forma.
Quando mestre Longtan Chongxin (datas ignoradas) ainda era noviço, foi estudar sob a tutela do mestre Tianhuang Daowu (748-807). Depois de vários anos, mestre Tianhuang Daowu ainda não lhe havia dado nenhuma lição, nem uma vez sequer, sobre o Darma. Sentindo-se desmotivado, Longtan Chongxin decidiu procurar outro lugar onde pudesse ter aulas de verdade. Ele foi ter com mestre Tianhuang Daowu e disse: “Vou embora para poder estudar o Darma”. O mestre respondeu: “Mas nós ensinamos o Darma aqui. Por que a necessidade de ir embora para estudar?” Longtan Chongxin replicou: “Passei muitos anos aqui e o senhor nunca me disse nada a respeito do Darma”. O mestre ponderou: “Quando você me traz o chá, eu o aceito. Quando você me traz alimentos, sempre os como. Quando você me reverencia, sempre agradeço e retribuo com a cabeça. Qual foi o dia em que não lhe transmiti o Darma?” Ao ouvir essas palavras, Longtan Chongxin teve um grande despertar e resolveu não abandonar seu mestre.
A sabedoria do Buda encontra-se dentro de nós. Cada um deve encontrá-la por si próprio. Professores e livros auxiliam no aprendizado, mas nada, nem ninguém, pode fazer com que a mente amadureça por nós. Ninguém jamais conseguirá nos mostrar nosso verdadeiro ser. É tarefa nossa descobrir quem realmente somos.
Utilize a não mente para estudar o Darma
A não mente não calcula, não compara, não trama. A não mente é pura. É segura. Não foi manchada pelas complexidades do egocentrismo. Já vi chegarem ao monastério pessoas com intensa atividade mental, querendo iluminar-se o quanto antes. Em geral, devotam-se aos estudos por um ou dois anos e... desistem. Isso acontece porque já chegam com a mente cheia de coisas e, assim, não conseguem atingir o âmago da mensagem do Buda.
A intensidade da mente constrói uma muralha de ideias preconcebidas entre a pessoa e o Darma. Esse tipo de atitude impossibilita o aprendizado de novos conteúdos, quaisquer que sejam eles. Nossa verdadeira mente é receptiva ao que acontece à nossa volta e consegue ouvir sua própria inspiração, assim como a de outras pessoas. A verdadeira mente é uma não mente sem individualidade.
Um aluno perguntou ao mestre de meditação: “Mestre, o senhor geralmente medita durante longos períodos de tempo. O senhor entra em meditação através da mente ou da não mente?” O mestre respondeu: “Não entro em meditação através da mente, tampouco da não mente. Entro em um estado que está além das distinções relativas”.
Em última instância, as verdades contidas no Darma estão além das dualidades e oposições. Transcendem os opostos: bem e mal, alegria e tristeza, calor e frio, certo e errado. A não mente pode ser vista como um estado mental capaz de levar a mente para além de todas as dualidades. É como um antídoto que cura a mente da tendência de aferrar-se a preconceitos limitantes. É quase impossível sorver o rico néctar dos ensinamentos do Buda se os abordarmos sempre de forma analítica ou buscando compará-los a alguma coisa. Primeiro, é necessário estar receptivo: isso é a não mente. Então, será possível absorver o Darma e torná-lo parte de nós mesmos, descobrindo que ele sempre esteve em nós.
Um discípulo do mestre chan Guishan Lingyou (771-853) perguntou-lhe: “Qual é o caminho?” O mestre respondeu: “A não mente é o caminho”. O discípulo disse: “Então, estou perdido!” Ao que o mestre replicou: “Então, encontre alguém que não esteja perdido”. O discípulo questionou: “Mas quem é que não está perdido?” O mestre disse: “Não existe ninguém além de você. Encontre a si mesmo!”
Do fundo do coração, espero que todos os aprendizes do Darma adotem essa atitude em seus estudos. Com receptividade ao mundo à nossa volta e sensibilidade para as conclusões da nossa introspecção, os grandes ensinamentos do Buda nos levarão infalivelmente à libertação final.
A meta da não mente é ver o mundo como ele realmente é, e não como pensamos que é. Alcançando esse objetivo, será possível ver o Buda em tudo e, nele, o seu verdadeiro ser. Reconheceremos todo o universo em uma única flor e a eternidade em um sorriso passageiro.
Os quatro pilares para estudo do Darma
Muitos se perdem em seu estudo do Darma por não aplicarem corretamente o que aprenderam ou por aprenderem incorretamente. As verdades ensinadas pelo Buda são verdades fundamentais. São verdadeiras em todos os lugares, em todos os tempos e para todas as pessoas. Portanto, é extremamente importante confiar em si próprio durante os estudos.
Todos necessitam de livros, explanações e professores para estudar; entretanto, ninguém deveria jamais esquecer que nossas mais profundas percepções da verdade são, provavelmente, nossos guias mais importantes. Os quatro pilares são ideias que devemos ter em mente sempre que abordarmos o Darma. Elas não nos deixam cometer muitos erros, não nos permitem seguir falsos mestres, ficar confundidos com a linguagem, nem nos perder nas vaidades da mente.
O Buda foi um brilhante mestre que, além de ensinar aos seres sencientes o que aprender, os ensinou como aprender. A profundidade do seu insight é revelada pelo estudo. Nos parágrafos a seguir, comentarei as instruções do Buda sobre como estudar seus ensinamentos.
Apoie-se no Darma, não nas pessoas
As pessoas podem apenas interpretar o Darma, podendo, tão somente, ajudar-nos a aprendê-lo. Ninguém pode, simplesmente, dá-lo para nós. Quem não vivencia as verdades do Darma nem as aplica à própria vida não aprende o Darma, apenas se informa a respeito dele. As verdades mais elevadas exigem, em última instância, ser vivenciadas. Por milhares de anos, os mestres e praticantes budistas estudaram as verdades ensinadas pelo Buda até conseguirem experimentá-las por si mesmos.
Quem tenta tomar emprestada a experiência alheia ou permite que a sensibilidade do outro substitua a sua própria não aprende rapidamente. A sabedoria é algo que não pode ser memorizado. O Darma não deve ser imitado. Sempre que aprendemos algo com alguém, precisamos examinar essa mensagem sob a lente da nossa introspecção. Então, se nos parecer verdadeira, devemos internalizá-la e fazê-la nossa. Caso contrário, busquemos resposta em outro lugar.
É desnecessário dizer que um professor que aconselhe alguém a prejudicar a si próprio, ou aos outros, nunca deve ser seguido. É inevitável que pessoas de todos os tipos nos ajudem em nossos estudos, contudo, se as seguirmos muito de perto ou indiscriminadamente, é possível que acabem por nos prejudicar. Não pensar por si próprio contradiz o ensinamento básico do Buda.
Certa vez, um aluno perguntou ao mestre chan Zhaozhou (778-897) o que deveria fazer para aprender o Darma. O mestre respondeu: “Vou urinar agora. Você pode fazer isso por mim? É claro que não! Ninguém pode fazer por mim, algo assim tão simples! Se realmente quiser aprender o Darma, faça-o por si mesmo!
Apoie-se na sabedoria, não no acúmulo de conhecimento
No cerne dos ensinamentos do Buda está a sabedoria que já se encontra em nosso interior. Assim, ao estudar, é necessário que estarmos atentos a essa sabedoria. Podemos encher a cabeça com muitos fatos a respeito do Darma; entretanto, nem mesmo uma biblioteca repleta de relatos sobre fatos se iguala a uma única percepção clara da verdade que existe por trás deles. Ver a verdade é sabedoria, ao passo que conhecer a verdade é apenas conhecimento.
Não há nada de errado com o conhecimento, mas, por si só, ele nunca libertará ninguém das ilusões. Assim como o Darma é um espelho que reflete nossa sabedoria inerente, esta pode ser um espelho que reflete os eventos de nossa vida. Se voltarmos esse espelho para o mundo, veremos as coisas como elas realmente são, e não como as nossas impurezas nos dizem que elas são. Com a profunda sabedoria da mente interna, podemos ver a vida como ela realmente é.
Todos devemos estudar o Darma e aprender as complexidades dos ensinamentos do Buda, mas, ao aprender um fato novo, precisamos também garantir que o absorvamos em profundidade, pois quando absorvemos os ensinamentos do Buda, profundamente, a sabedoria inerente a todas as formas de vida consciente começará a despertar por si própria.
Apoie-se no significado das palavras, não nas palavras
O aprendizado humano é adquirido, em grande parte, por meio da linguagem. É principalmente com palavras que o Darma é ensinado, assim, as palavras devem ser respeitadas pelo importante papel que desempenham em nossa vida, mas nem por isso devemos nos deixar aprisionar por elas. As verdades que o Buda descreveu com palavras não estão nas palavras em si; são verdades que transcendem, completamente, as palavras. Esquecer isso é esquecer a essência da mensagem do Buda.
No passado, era hábito dos mestres chan chocar as pessoas com palavras ou atos, justamente com o objetivo de abrir a mente delas para esse fato. As palavras devem ser utilizadas, mas não podemos permitir que elas nos usem. Xingando seus discípulos ou ridicularizando a Joia Tríplice (ver Capítulo 5), os mestres chan pretendiam chocar levando à compreensão de que nenhum pensamento produzido pode ser aceito como verdade e que nenhum conjunto de palavras é sacrossanto. Até nossa reverência pelo Buda pode se tornar um obstáculo para o nosso crescimento se não compreendermos que o verdadeiro Buda é um estado mental, e não um mero símbolo ou história que exista em algum lugar fora de nós.
O mestre chan Linji Yixuan (c.787-867) gritou certa vez, bem alto: “Se o Buda Shakyamuni viesse aqui hoje e começasse a pregar o Darma, eu o espancaria com uma vara até a morte e com seu cadáver alimentaria os cães!”
A irreverência do Budismo Chan, principalmente por ser já tão antiga, é um valiosíssimo elemento da tradição budista. Suas palavras ferozes sempre nos lembram de que não devemos usar o budismo para com ele construir castelos no ar ou um mausoléu. Não é verdadeiro um ensinamento que não possa ser vivido e experimentado. Se não pudermos começar de onde estivermos, em nosso esforço para aprendê-lo, ele não será de nenhuma valia para nós. Poderíamos também espancá-lo com uma vara atéa morte e com ele dar de comer aos cães.
“De que serve o Tripitaka? Traga-o para mim que eu o usarei como trapo para fazer limpeza!” Essa frase – que se refere aos sutras sagrados do budismo – é outra das famosas observações chocantes do mestre Linji. Ele foi um monge que dedicou sua vida ao Darma e agia desta maneira, não por ter se arrependido de sua decisão [de ser monge], mas para ensinar que não devemos nos aferrar às palavras. Ele também poderia ter dito que a linguagem não passa de uma série de sons pronunciados pela boca de alguém, sendo a verdade algo muito mais grandioso do que isso. Palavras são como um dedo apontando para a Lua, e não a Lua em si.
Apoie-se no significado total, não no parcial
Isto significa que devemos estudar até que tenhamos compreendido a verdade profunda da mensagem do Buda, sem nos permitirmos parar em níveis mais superficiais de compreensão. O Buda disse muitas coisas a diferentes tipos de pessoas. Seu método de ensino costuma ser chamado de “meios hábeis” ou “meios eficazes”, porque o que era ensinado a diferentes públicos dependia da capacidade de compreensão de cada um deles.
Havia aqueles com maior dificuldade de aprendizado, com necessidade de exemplificações concretas de tudo o que o Buda dissesse, ao passo que – outros, com maior capacidade de aprendizado, conseguiam compreender os argumentos diretamente.
Os ensinamentos do Buda, portanto, versam sobre muitos e variados assuntos. A abrangência de seu propósito é ampliada ainda mais pelo fato de ele ter pregado o Darma durante 45 anos. À medida que o tempo passava, seus alunos foram se aprimorando e sua mensagem foi se aprofundando para se adaptar às suas sensibilidades mais aguçadas. A profusão de sutras e escolas que são provenientes daquele período é vasta e, por vezes, confusa até mesmo para estudantes avançados do Darma. Se não formos cuidadosos, podemos ficar preocupados com uma mensagem secundária, perdendo de vista a verdade profunda.
A verdade profunda do Darma é a mente búdica, ou a natureza búdica. Independentemente de quanto estudarmos, não devemos nunca nos permitir perdê-la de vista. A natureza búdica é a realidade que se encontra dentro de nós e que, ao mesmo tempo, nos transcende completamente. A forma correta de estudar o Darma é desenvolvendo uma relação com o Buda, tanto aquele que está em nosso interior como aquele que nos transcende. Quando conseguirmos ver o Buda em tudo, poderemos dizer que realmente compreendemos o Darma.
Fonte:http://www.templozulai.org.br/os-quatro-pilares-para-estudo-do-darma.html
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