AYAHUASCA COMO OPÇÃO ESPIRITUAL
por: DR. RÉGIS ALAIN BARBIER As plantas sagradas, como um remédio, podem nos auxiliar a conscientizar um senso ampliado de identidade, provendo o estímulo necessário para a superação do hábito de restringir a nossa consciência de "eu" ao mundo das abstrações ou ao dos desejos egóico e pueris. Com certeza, uma poção com a Ayahuasca, (assim como a seiva de outras plantas tradicionais e de uso ritualista), é capaz de proporcionar o auxílio que precisamos para redirecionar o nosso destino; orientar a humanidade em direção à realização do homo-sapiens verdadeiro: um ser ponderado, compreensivo, compassivo, tolerante, flexível e integrado. O caminho dos vegetalistas, ou ayahuasqueiros, por ser mais intenso que muitas outras disciplinas, pode parecer de alguma maneira mais fácil por proporcionar um contato mais precoce e mais intenso com o numinoso. Tal contato pode inspirar compromisso e abrir as portas para mais força e criatividade, mais graça, para superar os conteúdos incômodos. Certamente, com um investimento enorme de tempo e esforço, estas mesmas expe-riências podem ser obtidas pelos que dominam a ciência da meditação. Para investigadores cuja prática espiritual deve ser integrada com a necessidade de trabalhar e prover ao seu sustento, o uso adequado dessa tecnologia milenar pode tornar o pro-cesso da realização exeqüível. Para os que, mergulhados nessa nossa “sociedade de competitividade e consumo”, encontram o tempo para meditar essas experiências poderão vir a representar um salto qualitativo nas suas práticas. Porém, a Ayahuasca não é um caminho para todos; substâncias psicoativas não são pontes, ou atalhos, apenas vias mais rápidas. A escolha deve ser baseada no conhecimento amplo dos fatores envolvidos. Esclarecer-se requer a resolução de materiais e conflitos inconscientes; aqueles que aspiram a essa realização precisam avaliar a sua disposição e coragem, decidir o compasso e a intensidade com a qual desejam se encontrar com essa psicodinâmica, essa “purgação” ou purificação na linguagem dos adeptos da Ayahuasca. A Ayahuasca revela que o conhecimento que temos do mundo, da existência, é um estado ou processo psicossomático. A experiência mística realiza a descrição cientifica da relação ecológica de todos os seres, do campo quântico e unificado; essa experiência implica desapego e transformação, isto é a drenagem do conceito de “ego”. Se a nossa intenção é sincera, se temos coragem e generosidade o suficiente, então vale a pena estudar todas as técnicas úteis para a realização espiritual - a Ayahuasca, utilizada com motivação certa, habilidade e integridade, pode contribuir muito para o alívio do sofrimento, dando acesso à sabedoria e visão necessária para a união mística. AYAHUASCA COMO INSTRUMENTO DE AUTO-OBSERVAÇÃO: A percepção, habitualmente embotada, permite apenas aprender e acessar uma fração distorcida de realidade; uma realidade revestida de projeções pessoais e pressuposições. A propriedade central dos “enteógenos” ou “psico-integradores” é com certeza levantar o véu, amplificando a experiência. A Ayahuasca amplifica a capacidade psicossomática de responder a gradações mais sutis de estímulos além de muitas vezes integrar as diversas faculdades sensoriais em processos sinestésicos. Esse efeito de aumentar a capacidade de experienciar, de avaliar e apreciar por si mesmo, é central para a compreensão do seu significado. Esta amplificação, como uma lupa, permite uma (re)visitação intensiva e absorta dos conteúdos mentais - recordações, idéias, fantasias, pensamentos, emoções, medos, esperanças, sensações em gerais. Na dependência da ética e valores morais atuais do indivíduo, além de influir na intensidade e no foco das percepções, a experiência pode motivar a re-significação dos conteúdos sendo observados. Valores morais e atitudes são revistas. Aqui temos uma tecnologia que alterando a composição bioquímica do instrumento e dos meios de processamento da informação, permite a inativação temporária dos filtros culturais e psicodinâmicos que nos bastidores da mente agem determinando, formatando e hierarquizando, nossas experiências quotidianas. Pode se de fato aprender muito, crescer e liberar energia psíquica revendo, transformando, eliminando, aceitando e se reconciliando com conteúdos incômodos. COMO CAMINHO INICIÁTICO: SINCERIDADE E CORAGEM: A função de uma substância com a Ayahuasca é muitas vezes mal entendida. Muitos pensam que pelo fato de terem tido experiências maravilhosas, já obtiveram as respostas e foram de alguma maneira transformados. Em alguns aspectos foram, mas muitos descobrem a realidade de que existem muitas camadas de condicionamento e ignorância a separar a mente superficial do núcleo do ser. A Ayahuasca e outras plantas instrutoras podem levar à transposição dessas barreiras permitindo o acesso à nossa essência, necessitando, contudo persistência e comprometimento no sentido de mudar e remover os velhos hábitos que tendem a reaparecer. Muitos imaginam que a repetição da experiência irá manter um estado de lucidez e visão, de fato pode, mas freqüentemente, a mudança requer trabalho duro e esforço dedicado; algumas vezes a experiência transforma, outras vezes mostra o possível, aponta o caminho, a responsabilidade de implementar as mudanças nos pertence. Para o investigador espiritual sério, assim como para os que buscam conhecimento verdadeiro, a característica mais importante é a honestidade. Isto significa a coragem para olhar para o que se apresenta no processo, pela habilidade de admitir as suas falhas quando se tornam aparentes e pela determinação de mudar os seus comportamentos em função do que se revela. O contéudo e natureza das experiências que essa substância induz não são, portanto, produtos artificiais resultantes da sua interação farmacológica com o cérebro, mas expressões autênticas da psique que revela seu funcionamento e potenciais em níveis inacessíveis no estado ordinário de consciência. Para aquele cuja intenção real é instalar uma transformação psico-espiritual, a Ayahuasca pode funcionar como catalisador natural a revelar e liberar intuições e conhecimentos oriundos das facetas mais elevadas do ser, permitindo o acesso a uma sabedoria fundamental relativa ao universo e à nossa posição como indivíduo. O grande valor da Ayahuasca, trazidos à nossa atenção pelas sociedades indígenas, é que ela dissolve os limites da mente inconsciente; ela dá acessos aos conteúdos reprimidos e esquecidos. Ela possibilita o reconhecimento das configurações universais da psique, os arquétipos de humanidade, junto com um leque mais abrangente de conhecimentos e maneiras de conscientizar, até eventualmente a vivência dos diversos aspectos da união mística. COMO CAMINHO INICIÁTICO: TOLERÂNCIA: Uma substância como a Ayahuasca oferece opções terapêuticas já que tende a dissolver a fragmentação e a compartimentagem interna, a revelar mecanismos de defesas diversos como “projeção”, “negação” ou “deslocamento”, possibilitando o esclarecimento dos sectarismos e pontos de vistos intransigentes. Na medida em que o indivíduo consegue ver as coisas de uma maneira não distorcida, vendo claramente não apenas o seu passado mais também a presunção e cegueira da sua própria cultura e grupos de referencias, ele necessita, além de tolerar a decepção e o sofrimento, superar sentimentos de desamparo. Nem sempre é fácil ter de ver e aceitar que não somos assim tão vítimas, mas sim responsáveis pelas nossas vidas; aceitar ser capaz, reconhecer o seu potencial e a responsabilidade que isso requer implica coragem e determinação. Podemos até recusar crer que fazemos jus a muita beleza e alegria, bem estar profundo, sem nada ter de pagar além de ser o que já se é; apenas sendo o que já somos. O gerenciamento emocional produtivo dessa reavaliação, a reorganização psíquica, implica um grau suficiente de equilíbrio e bom senso para que se tomam atitudes judiciosas sem precipitações. TRIANGULAÇÃO - AYAHUASCA COMO UM FENÔMENO TRÍPLICE: A PESSOA, O AMBIENTE E O CHÁ. Sobre a influência da Ayahuasca, a intensidade dos estímulos - tanto por amplificação e enriquecimento de detalhes e pontos de vistas perceptuais quanto pelo maior influxos de dados perceptivos - aumenta consideravelmente as possibilidades de respostas à experiência. Devido a essa magnificação da percepção, uma atenção especial tem se dado à qualidade dos estímulos provenientes tanto do indivíduo quanto do meio onde o chá esta sendo utilizado. A hipótese denominada em inglês de “set and setting” foi inicialmente formulada por Timothy Leary nos anos 60 no âmbito das pesquisas iniciais com agentes psicoativos e foi rapidamente aceita pelos demais pesquisadores da área. A teoria geral determina que o conteúdo de uma experiência com substância psicoativa é uma resultante da interação de três fatores básicos. Os fatores essenciais são: o “set”, que traduzo como sendo o “fator pessoal”, isto é aquele que o individuo traz consigo, os seus conteúdos (intenção, atitudes, personalidade, humor, etc.); o “setting” ou “fator ambiental” corresponde a todos os elementos externos ativos e capazes de influir a experiência (fatores interpessoais, social, ambiental, o âmbito). A substancia em si, o “Chá” age como um gatilho, ou catalisador, a conectar e por em interação os fatores citados numa dinâmica especifica, criativa e intensa. É evidentemente impossível definir qual dos fatores é o mais importante tanto quanto é impossível dizer qual o lado mais essencial de um triângulo isóscele. Contudo “o âmbito” é a vertente da experiência que pode ser programada, estudada, ensaiada e cuidadosamente preparada para um melhor proveito. TRIANGULAÇÃO - O FATOR PESSOAL: Como a Ayahuasca revela o nosso lado oculto, abrindo as portas do inconsciente numa linguagem psicológica, um enorme leque de opções e qualidade de experiência se apresenta. Na realidade essa poção psicoativa revela e liberta o que está dentro da pessoa, tornando a mente manifesta (ou seja, efeito “psicodélico” como “manifestação da mente”). A mente se torna sujeita a observação e, por isso mesmo, a transformação. A fluidez e a qualidade do deslocamento do ayahuasqueiro nesse labirinto psíquico depende antes do tudo do fator pessoal, do “conteúdo” que inclui os elementos do inconsciente pessoal, o registro da experiência de vida, assim como os mecanismos condicionantes em operação – recatos e defesas – a determinar a liberdade de opções, a qualidade, riqueza e legitimidade das interpretações, enfim, os principais desafios do indivíduo. Outro aspecto importante do conteúdo consiste nos valores e critérios pessoais; atitudes, aspirações, expectação, intenção e ética. Estes elementos irão influenciar a atração da atenção e determinarão o modo da pessoa lidar com o material psíquico revelado. TRIANGULAÇÃO - O FATOR AMBIENTAL: O fator ambiental se refere aos fatores externos ao indivíduo e capazes de influenciar a experiência: o lugar onde o chá é servido; a atmosfera do ponto de vista cultural, espiritual e emocional; como o indivíduo está sendo atendido; a quantidade de pessoas envolvidas; o tipo de liderança aplicada na experiência são alguns dos fatores a considerar. Normalmente o indivíduo se torna bastante impressionável quando sofre os efeitos de substâncias como a Ayahuasca, estado decorrente da magnificação perceptual já mencionada. Esse efeito acoplado como o aumento da perspicácia, capacidade metafórica e habilidade em gerar psico-associações criativas, alimenta o lado noético e o imaginário da experiência. É obvio que essa “impressionabilidade” não significa que o ayahuasqueiro é mais facilmente suscetível de influência do que o homem comum ou do que os fiéis das religiões de massas, por exemplo. O grau de credulidade, ingenuidade, ou então de cepticismo (ver nota) de um indivíduo reflete opções cognitivas, filosóficas, assim como traços de personalidade profundos e estáveis, até mesmo inerentes, que não serão transbordados pela “força e influência” do chá. Ao contrário, são justamente esses conteúdos profundos do indivíduo – inclusive tendências básicas como credulidade ou cepticismo - que determinam a maneira de significar a experiência. O tipo e da qualidade do sistema de crenças, da visão, pertinente ao âmbito social no qual a experiência irá ocorrer assim como o tipo de liderança e dinâmica dos trabalhos são fatores essenciais, capazes de influenciar em grande parte a harmonia e tranqüilidade da experiência; possuir uma boa descrição do âmbito onde se irá comungar a poção é um fator importante. Uma liderança não muito interventiva e tranqüila favorece o acesso e estudo dos conteúdos pessoais, o exame e integração da sua própria trajetória, o encontro de caminhos e conceitos próprios. Um facilitador precisa ser paciente, empático, familiarizado com os processos da experiência; ele pode ser muito efetivo sabendo refletir os pontos essenciais, fazer perguntas, observações aparentemente casuais. Cantos, músicas, atitudes e até mesmo orientações diretas bem dosadas, podem ser importante para facilitar uma experiência suave e rica. O ayahuasqueiro descobrirá que dividindo possíveis dificuldades com companheiros receptivos e compreensivos poderá gerar claridade e conforto. Finalmente, e na maioria das vezes, o melhor guia é a nossa própria consciência e esse processo interno não deve ser interferido a não ser quando solicitado. Rituais inspiradores, universais e holísticos, ambientes naturais, atividades espontâneas e criativas, permitem a focalização da atenção para regiões psíquicas interessantes. Os próprios conteúdos, junto com a configuração de ambiente, a qualidade do chá, a própria intenção e a do grupo, configuram um processo singular, uma “gestalt”, um “ser maior”, o próprio eu transpessoal da experiência. Reconhecer e ter certeza de estar em sintonia e harmonia com esse “ser maior” gerado pelo evento é a chave de uma experiência de grupo bem sucedida. (Nota) Cepticismo: atitude ou doutrina segundo a qual o homem não pode chegar a qualquer conhecimento indubitável, quer nos domínios das verdades de ordem geral, quer no de algum determinado domínio do conhecimento. TRIANGULAÇÃO - O CHÁ: Investigações demonstram a variabilidade do chá na sua composição química. Fatores dependentes, das plantas e lugar de origem, da hora da colheita, do preparo (quantidade relativa das duas plantas, grau do apuro e tipo de água utilizada - fatores com pH, teor mineral da água) todos influenciam a qualidade do chá e, portanto os seus efeitos. A quantidade utilizada durante uma cerimônia é também um fator decisivo. Quantidades habituais ou moderadas permitem uma observação melhor dos seus próprios conteúdos, um estudo detalhado da sua própria psicodinâmica. Quantidades maiores são necessárias para se “viajar no astral” na linguagem dos usuários de algumas seitas. A utilização de grandes quantidades de chá, acima de 300 mililitros, numa única tomada é mais bem aproveitada em ambiente especifico, mais reservados com uma supervisão adequada e favorece o tipo de vivência descritas na fenomenologia como “experiências místicas”. Com uma prática adequada e um considerável trabalho sobre si mesmo é possível se chegar aos mesmos resultados com dosagens menores. INTEGRAÇÃO DA EXPERIÊNCIA - REAÇÕES: Como as defesas do ego são desafiadas, sentimentos reprimidos e recordações afloram na consciência, podendo criar algum nível de ansiedade - uma reação semelhante ao enfrentado em situações inusitadas ou de desfecho incerto como praticar esportes radicais, participar de competições esportivas ou ainda se submeter a alguma prova. Uma experiência desse tipo é geralmente muito proveitosa por ensinar mais. Reações adversas mais sérias ainda não foram descritas com o uso da Ayahuasca, em parte porque o chá tem sido utilizado com critério e responsabilidade, em doses adequadas, e que a Ayahuasca não tem sido promovido como sendo remédio e solução para curar as crises emocionais de pessoas seriamente transtornadas. Triagens para eliminar os prováveis candidatos a reações adversas, como as personalidades esquizóides e pre-psicóticas, os neuróticos com instabilidade de identidade e níveis altos de ansiedades, os usuários de drogas e medicamentos psico-ativos possibilitam a realização de Cerimônias tranqüilas, seguras, criativas e de inestimável valor espirituais. INTEGRAÇÃO DA EXPERIÊNCIA - EFEITOS PRÁTICOS: Experiências como as proporcionadas pela Ayahuasca são por natureza transcendental, transpessoais, porque alargam a experiência e visão da realidade, diminuem o império do ego sobre a personalidade, facilitam uma mudança de valores. Torna-se evidente que a utilização de uma substância como a Ayahuasca é mais útil dentro de um contexto e de uma disciplina tendo como objetivo o crescimento e a evo-lução espiritual, um programa chamando atenção para os valores éticos e morais fundamentais. Uma disciplina adequada fornece um corpo de ética capaz de apoiar as mudanças requeridas, clarificando os objetivos, mantém a mente focada e aberta para o aprofundamento crescente da experiência. É o indivíduo, a sua intenção que determinam se a experiência será mística e religiosa, evolutiva ou não. Bastante preparo é necessário para se chegar a uma experiência mística, mesmo usando Ayahuasca e um trabalho de integração efetivo é necessário para que a experiência seja de fato transformadora. Se o estado de consciência ampliado induzido pela experiência conduz ou não a mudanças positivas e duradouras, depende da intenção e dedicação do usuário. Uma visão, mesmo rápida, de uma realidade maior pode mudar a vida de uma pessoa se ela resolve integrar essa visão à sua realidade. Receber uma luz não é igual a aplicar essa luz no dia a dia; não há conexão inerente entre uma experiência mística de unidade e a expressão ou manifestação daquela unidade na vida cotidiana. Este ponto é talvez óbvio, contudo freqüentemente esquecido por aqueles que debatem se, em princípio, um agente psicoativo pode ou não ter valor no âmbito da busca espiritual. Qualquer que seja a fonte ou a origem da iluminação, as revelações só poderão ter efeitos práticos com a permissão e dedicação do individuo. Autor: Dr. Régis Alain Barbier. fonte: http://www.panhuasca.org.br/ * nota: Nossa gratidão ao nosso amigo Dr. Régis pelo excelente trabalho que vem realizando e pelos esclarecimentos que com grande maestria nos brinda no texto acima, que reflete com grande clareza nossa própria visão da Bendita Abuelita Ayahuasca e de suas propriedades maravilhosas em abrir os mistérios do Divino dentro de nosso coração. Que Deus lhe abençoe querido Régis. Ahô! Luis Pereira |
http://www.universomistico.org/s/opcao-espiritual.html
A HORA DO CHÁ |
A ayahuasca conquista adeptos de outras religiões e vive seu momento de maior expansão e reconhecimento. Mas a bebida sagrada segue polêmica, no Brasil como e em outros países Revista Galileu - Pablo Nogueira
O pedido foi feito durante uma visita oficial do ministro da Cultura ao Acre, e tinha como porta-vozes políticos, religiosos e o governador do estado, Binho Marques (PT-AC). A reação de Gilberto Gil foi positiva: "espero que possamos celebrar, em breve, o registro do ayahuasca como patrimônio cultural da nação brasileira". A imprensa nacional rapidamente repercutiu as palavras do ministro. Alguns veículos apenas registraram a iniciativa, mas outros questionaram a idéia, na linha "bebida alucinógena pode virar símbolo nacional", incitando comentários pró e contra internet afora.
A mais conhecida das três religiões do chá é o Santo Daime. A menos conhecida é a Barquinha, que praticamente não se expandiu para fora do Acre, onde surgiu. A que tem mais fiéis é a União do Vegetal (UDV). De estrutura centralizada e hierárquica, foi criada em 1961, em Rondônia, pelo baiano José Gabriel da Costa (1922-1971), chamado Mestre Gabriel. Sua doutrina é cristã e reencarnacionista, e eles chamam o chá de "hoasca" ou de "vegetal".
Expansão e exposição A UDV tem capitaneado boa parte dos esforços para que o uso religioso do chá seja visto como algo legítimo também fora do Brasil. O caso mais controverso ocorreu nos Estados Unidos. Entre 1999 e 2006 a UDV enfrentou uma longa batalha jurídica a fim de preservar o direito de consumir o ayahuasca, que estava sendo contestado pelo governo americano. Durante esse período, os membros mantiveram suas práticas rituais (veja quadro "Uma sessão da união"), mas bebendo água em vez de chá. Em janeiro de 2006 a Suprema Corte anunciou um veredicto favorável ao grupo, e o ayahuasca voltou a ser consumido. À frente da batalha pela legalização estava Jeffrey Brofman, representante da UDV nos Estados Unidos. Ele recusou entrevistas a veículos como New York Times e CBS na época do veredicto e falou a Galileu sobre sua participação no Congresso em Brasília. De origem judaica, conheceu grupos indígenas que fazem o uso religioso de psicoativos antes de chegar à UDV, em 1990. Hoje ele comanda 180 adeptos nos EUA. A penetração do Santo Daime no exterior é bem maior. Estados Unidos (incluíndo Havaí), Canadá, Espanha, França, Itália, Suíça, Irlanda, Alemanha Inglaterra, Holanda e Japão têm grupos ativos. Como explica o antropólogo Alberto Groisman, da UFSC, o processo se iniciou com a visita de estrangeiros à região amazônica, nos anos 1970, e continuou na década seguinte, quando os daimistas brasileiros passaram a ser convidados a viajar para realizar rituais e ensinar os fundamentos da religião. Desse intercâmbio foram se formando grupos estáveis que se reúnem para praticar rituais como o bailado (ver quadro "Um bailado no Santo Daime") e cantar hinos religiosos que versam, entre outras coisas, sobre a espiritualidade da floresta amazônica. Sabe-se que eles atuam em diferentes condições legais, dependendo do país. Na Inglaterra os trabalhos são realizados secretamente, a fim de não chamar a atenção das autoridades. Na Espanha, dois daimistas brasileiros foram presos em 2000, acusados de tráfico de drogas, mas hoje a religião está inscrita no cadastro nacional de entidades religiosas. Nos EUA, os daimistas pleiteiam os mesmos direitos já outorgados à UDV. Na França, após uma vitória judicial inicial em 2005, o governo incluiu os princípios ativos do chá na lista de estupefacientes, tornando ilegal seu uso religioso ou não. "Cada país reagiu à chegada do Daime conforme o estabelecido por suas normas nacionais de controle de drogas, aplicada conforme a demanda que aparecia", explica Groisman. Um bom exemplo desta mudança de atitude foi o caso da Holanda. Em 1999, dois daimistas foram presos devido ao uso religioso da ayahuasca. Dois anos depois, após um processo judicial que envolveu a consulta a médicos, psicólogos, teólogos e antropólogos, os rituais do Daime foram liberados. Groiman viveu algum tempo na Holanda acompanhando as igrejas daimistas do país. "O que mais me impressionou foi a dedicação dos holandeses em seguirem as formas e conteúdos tradicionais do Santo Daime. Eles cantavam os hinos em português, muitos estavam aprendendo a língua ."
Chá em transe Mas em certas "igrejas" (como são chamados os templos do Daime) a mistura já é norma. "Acho que o Daime caminha para se tornar cada vez mais eclético", diz a antropóloga Beatriz Labate, autora de quatro livros sobre o uso religioso da ayahuasca e de outras substâncias psicoativas ". No exterior há igrejas que adotam influência hare krishna e de terapias alternativas. Em Assis, na Itália, há uma influência forte da mitologia local, ligada a São Francisco." Aqui no Brasil algo semelhante aconteceu a partir da popularização do uso religioso da ayahuasca nas grandes cidades do Sudeste. É cada vez maior o número de grupos religiosos que se baseiam no uso do chá mas incorporam elementos diferentes daqueles propostos pelos fundadores das três religiões. "Em 2000, pesquisando para o mestrado, encontrei 30 grupos em São Paulo; hoje deve haver pelo menos o dobro", diz a antropóloga. Talvez o exemplo mais conhecido dessa nova geração de usuários religiosos seja o umbandaime, tendência que, como o próprio nome sugere, busca uma aproximação com a religiosidade afro-brasileira. O terapeuta Antônio Marques Alves Júnior defendeu em 2007 um mestrado na PUC-SP sobre a aproximação entre Daime e umbanda. Alves ressalta que, embora o fundador do Daime, o maranhense Raimundo Irineu Serra (1892-1971), chamado Mestre Irineu, fosse negro, a religião que ele criou não dava importância ao chamado transe mediúnico, comum nas religiões afro. "Talvez ele tenha deixado a mediunidade de lado intencionalmente, para escapar da perseguição religiosa que a própria umbanda sofria no inicio do século 20", especula. Irineu morreu sem apontar um sucessor. Após sua morte, um de seus discípulos, Sebastião Mota Melo, chamado por daimistas de Padrinho Sebastião, passou a liderar uma comunidade batizada de Colônia dos Cinco Mil, perto de Rio Branco. Entre 1974 e 1980 esse grupo se tornou um pólo de difusão do Daime para fora da Amazônia. Ao chegar ao Rio de janeiro, no início dos anos 1980, o Daime atraiu o interesse de praticantes de umbanda, inclusive mães-de-santo. A partir desse trânsito, surgiu no Rio uma variante da religião. Nela, além dos trabalhos "tradicionais" de Daime, havia espaço também para outros rituais, onde o consumo do chá se ligava a "receber entidades". O próprio Padrinho Tião, um ex-espírita, se interessou por essa vertente, e seu filho, Alfredo melo, construiu rituais que exploravam a conexão entre daime e umbanda. "Muitos adeptos criticam essa aproximação, dizendo que isso não é Daime", explica Alves, ele mesmo um "aproximador". Nos anos 1990, ele abriu uma igreja daimista chamada de Reino do Sol, que se tornou referência desse tipo de sincretismo em São Paulo. O hino oficial da instituição diz que "O Daime é o sol da minha vida/e a umbanda é sua filha querida", e lá realizam-se, além dos trabalhos "oficiais" do Daime, rituais chamados de giras, com até 200 participantes, dos quais as pessoas participam descalças e vestidas de branco, e nos quais o ayahuasca facilitaria o transe mediúnico. Às terças-feiras, o grupo de Alves realiza um ritual no qual, assim como acontece nos centros espíritas, alguns indivíduos entram em transe e recebem "entidades", que dão consultas grátis à população como exercício de caridade. Antes de entrar em transe os médiuns podem beber pequena quantidade de ayahuasca. E durante as duas horas que dura o trabalho, um grupo de músicos canta suavemente hinos que misturam os imaginários da umbanda e do Daime. Ao final, todos os participantes formam uma roda e bailam e cantam hinos de inspiração daimista, terminando o ritual com a oração de São Francisco. "Acho que essa nossa síntese é um trabalho inovador. Sou umbandista tanto quando sou daimista. Pertenço a toda religião que não se considera a única", diz Alves.
Passagem para a Índia Outro exemplo representativo de novo grupo é o Beija Flor de Lótus, que tem sua sede nos arredores de São Paulo. Ele é dirigido pelo músico e terapeuta Chandra Lacombe. Lá os rituais combinam alguns elementos do Santo Daime, como orações cristãs, uso da ayahuasca e o canto de hinos, com outros originários da espiritualidade indiana, tais como mantras, posturas meditativas e música hindu. Um dos hinos que o músico compôs diz assim: "É o sol e a Lua/ É Jagube e Rainha/ É o shiva e a shakti/ A divina alquimia". "Jagube" e "Rainha" são os nomes que os daimistas dão às plantas a partir das quais se faz o chá, e Shiva e Shakti são divivindades da Índia. Chandra começou a desenvolver o que ele chama de "linha unificada" dez anos atrás. Até então, era apenas membro de um outro grupo independente, no qual também se buscava aproximar o hinduísmo do Daime -ou seja, ele já é a segunda geração desse tipo de sincretismo no Brasil. Atualmente sua comunidade reúne 60 membros regulares. "A maior parte são pessoas que estavam insatisfeitas com a doutrina do Daime. Queriam mais espaço para abordar sua individualidade." Já os que chegam ao grupo vindos das seitas hinduístas tradicionais encontram a experiência mística associada ao chá. "Se consumido num contexto ritualístico, ele é mais do que simplesmente um alterador de consciência. Acreditamos que o mesmo estado poderia ser alcançado pela meditação, mas a pessoa precisaria de muito esforço e disciplina para chegar aos níveis rapidamente atingidos com a bebida." Ao longo dos seus anos como líder de grupo, Chandra viajou por diversos países coordenando rituais, onde formou um grupo regular de adeptos. Alguns deles vêm ao Brasil para matar a saudade dos trabalhos no Beija Flor de Lótus. É o caso de John, pseudônimo usado por um terapeuta de um país escandinavo que prefere não se identificar, com medo de que o governo de seu país descubra que o ayahuasca está circulando por lá. Ele diz adorar "o Santo Daime tradicional", e vê o trabalho de Chandra como uma parte legítima dele: "Se o Mestre Irineu está incluído, para mim também é Daime". Discussões doutrinárias à parte, ele ressalta a importância da experiência com o chá: "os momentos de êxtase são a parte fácil. Difícil é quando você se confronta com a sua sombra. É aí que o Daime é importante para mim, e pode ser para outras pessoas. Às vezes penso que essa bebida poderia curar o mundo."
Ainda polêmico Segundo o psiquiatra Wilson Gonzaga, são justamente os pequenos grupos independentes que preocupam as autoridades que regulamentam o uso religioso do ayahuasca no país. Ele é membro do grupo de trabalho interdisciplinar do Conselho Nacional Antidrogas, criado em 2004 para estabelecer princípios éticos a serem seguidos por todas as entidades usuárias do chá. Na estrutura da comissão foram indicados representantes da União do Vegetal, das diferentes linhas de Daime e dos independentes, e Gonzaga entrou como representante desses últimos. "Os grandes, como a UDV ou o Daime, possuem mecanismos fiscalizatórios para controlar a maneira como o chá é utilizado. Já essas organizações novas, oriundas das maiores, não tem". Ele acredita que a tendência é que o número de grupos se reduza. "Estamos vivendo um momento de boom, mas com o tempo muitos grupos desaparecerão. Ficarão os que realmente fazem uso ritualístico. Só continuará bebendo ayahuasca quem souber porque está fazendo isso", diz. O fato é que uma das conseqüências desse boom é, justamente, a idéia de que o uso religioso da ayahuasca possa ser considerado patrimônio cultural brasileiro. Para Beatriz Labate, o que se passa agora com as religiões que usam o chá pode ser comparado ao que já aconteceu, por exemplo, com a capoeira. "Durante boa parte do século 20 a capoeira era marginalizada. Aos poucos foi entrando nas academias, nas escolas e hoje é um ícone do Brasil." Ela diz que a percepção dessa religiosidade como um fator de identidade cultural é mais forte na Amazônia e particularmente no Acre, onde os comerciais de TV que estimulam a visitação ao estado exibem cenas de daimistas bailando. "Essas religiões foram perseguidas de várias formas por décadas. Se hoje o governador do Acre e o ministro da Cultura estão se manifestando favoravelmente a elas, é porque ocorreu a expansão desses grupos. Ninguém ia dar a menor bola se fosse apenas um fenômeno regional."
Fonte: Revista Galileuhttp://revistagalileu.globo.com/Revista/Galileu/0,,EDG83915-7942-203-1,00-A+HORA+DO+CHA.html http://www.universomistico.org/s/a-hora-do-cha.html |
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