Faça a revolução lá fora.
Mas só depois de mudar
as coisas aí dentro
Amanhã você vai sair — ou voltar — às ruas e fazer a revolução.
Sem medo, sem máscara, vai dizer “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” a todos os conhecidos e desconhecidos que passarem por você. No elevador, no estacionamento, no ônibus, na fila da padaria. E se ninguém responder, não importa. Você vai manifestar um sorriso largo como uma avenida e seguir em frente.
Porque é para frente que se anda.
No trânsito, vai dar passagem a todos os outros carros assim que vir uma seta piscar, indiferente às buzinas nervosas de quem vier atrás. E quando alguém fizer a mesma gentileza por você, não vai esquecer de acenar em puro e simples agradecimento.
Ao ligar o ônibus coletivo com o qual circula pela cidade todos os dias, vai se lembrar de que está conduzindo pessoas e não caixas de verdura. E de que os milhares de veículos lá fora não são seus adversários em uma corrida para lugar nenhum.
Vai começar todo e qualquer pedido com “por favor” e concluí-lo com “obrigado”.
Quando reunir seu batalhão no quartel, em vez de gritar “ordinário, marche”, vai orientá-lo a ler a Constituição Brasileira e qualquer um dos livros de Carlos Drummond de Andrade. Para que seus soldados percebam, do alto de seus coturnos, o quanto as coisas às vezes não fazem mesmo sentido. E descubram o quanto a autoridade que lhes foi atribuída pode ser usada não para reprimir e subjugar, mas para fazer da vida uma extraordinária marcha para frente.
Porque é para frente que se marcha.
No hospital público em que você, doutor ou doutora, dá plantão de madrugada, vai atender cada paciente com a calma, a seriedade, a competência e o respeito devidos a qualquer ser humano. E vai sentir vergonha de todas as vezes em que se dirigiu a essas pessoas como se você fosse um ser superior vestindo branco e elas não passassem de malditas desvalidas atrás de uma injeção “de graça”.
Nas cerimônias religiosas, vai retribuir a confiança de quem o chama de padre, pastor ou pai de santo não apenas com uma benção, um sermão ou um passe, mas pedindo às pessoas que façam uma oração para aqueles que protestam e para aqueles contra quem se protesta. E que nessa oração, o único pedido seja a compreensão e a clareza, para que todos saibam realmente o que estão fazendo, contra quem, contra o quê e como estão se manifestando.
Nos veículos de comunicação que você dirige, vai determinar a seus repórteres, redatores, editores e afins que se concentrem no factual, que ouçam, analisem e publiquem todas as visões possíveis de cada fato. E que deixem os leitores, ouvintes e telespectadores concluírem como bem entenderem.
Nas escolas e nas faculdades, vai ensinar seus alunos a ver e pensar política de outro modo, para além dos discursos e dos partidos, com profundidade, amplitude e perspectiva. Com inteligência, liberdade e espírito crítico.
Nas redes sociais, antes de curtir e compartilhar qualquer post sobre qualquer assunto, você vai pensar. E vai pensar de novo, até se certificar de que realmente acredita naquilo.
E quando alguém próximo a você esbravejar palavras de ódio e apoio à violência – seja da parte de quem se manifesta depredando, seja do lado de quem defende agredindo — você não vai discutir. Vai respirar fundo, pensar consigo “let it be” e seguir em frente. Porque há vários lados nessa história, mas nenhum deles é “o adversário”. E você está em todos eles.
Você é o mínimo de inteligência que resiste em cada homem e cada mulher que ainda respiram neste mundo, brutalizados e amortecidos pela doença da normalidade que torna tudo banal — as mortes, os estupros, a violência doméstica, a roubalheira nos cargos públicos, o corrupto e o corruptor, o ódio e a maldade.
Amanhã você vai sair às ruas e fazer a revolução. E se ninguém mais aderir, não importa. Você vai manifestar um sorriso largo como uma avenida e seguir em frente.
Porque é para frente que se anda.
E a revolução “lá fora” só começa depois de uma outra, aquela que acontece “aqui dentro”.
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