Dois Mestres Que Partilhavam
da Divindade
Eça de
Queiroz
O escritor
português Eça de Queiroz (1845-1900)
O texto a seguir é
reproduzido
do volume “A
Correspondência de
Fradique Mendes”, de Eça de Queiroz,
L& PM Pocket, 2001, 206
pp., pp. 196-198.
Trata-se de um fragmento do
capítulo XVI.
Na década de 1970, seu
conteúdo causou escândalo
e divisão na cúpula do
movimento teosófico brasileiro. [1]
(C. C.
A.)
Muito aprovo, minha
estudiosa Clara, que andes lendo a [ história] do divino Buda. Dizes,
desconsoladamente, que ele te parece apenas um Jesus muito complicado. Mas, meu
amor, é necessário desentulhar esse pobre Buda da densa aluvião de Lendas e
Maravilhas que sobre ele tem acarretado, durante séculos, a imaginação da Ásia.
Tal como ela
foi, desprendida da sua mitologia,e na sua nudez histórica, - nunca alma melhor
visitou a terra, e nada iguala, como virtude heróica, a “Noite do
Renunciamento”.
Jesus foi um
proletário, um mendigo sem vinha ou leira, sem amor nenhum terrestre, que errava
pelos campos da Galileia, aconselhando aos homens a que abandonassem como ele os
seus lares e bens, descessem à solidão e à mendicidade, para penetrarem um dia
num Reino venturoso, abstrato, que está nos Céus. Nada sacrificava em si e
instigava os outros ao sacrifício - chamando todas as grandezas ao nível da sua
humildade.
O Buda, pelo
contrário, era um Príncipe, e como eles costumam ser na Ásia, de ilimitado
poder, de ilimitada riqueza: casara por um imenso amor, e daí lhe viera um
filho, em quem esse amor mais se sublimara: - e este príncipe, este esposo, este
pai, um dia, por dedicação aos homens, deixa o seu palácio, o seu reino, a
esposada do seu coração, o filhinho adormecido no berço de nácar, e, sob a rude
estamenha [2] de um mendicante, vai através do mundo esmolando e pregando
a renúncia aos deleites, o aniquilamento de todo o desejo, o ilimitado amor
pelos seres, o incessante aperfeiçoamento na caridade, o desdém forte do
ascetismo que se tortura, a cultura perene da misericórdia que resgata, e a
confiança na morte...
Incontestavelmente, a meu ver
(tanto quanto estas excelsas coisas se podem discernir duma casa de Paris, no
século XIX e com defluxo) a vida do Buda é mais meritória. E depois considera a
diferença do ensino dos dois divinos Mestres. Um, Jesus, diz:
“Eu sou
filho de Deus, e insto com cada um de vós, homens mortais, em que pratiqueis o
bem durante os poucos anos que passais na Terra, para que eu depois, em prêmio,
vos dê a cada um, individualmente, uma existência superior, infinita em anos e
infinita em delícias, num palácio que está para além das nuvens e que é de meu
Pai!”
O Buda,
esse, diz simplesmente:
“Eu sou um
pobre frade mendicante, e peço-vos que sejais bons durante a vida, porque de
vós, em recompensa, nascerão outros melhores, e desses outros ainda mais
perfeitos, e assim, pela prática crescente da virtude em cada geração, se
estabelecerá pouco a pouco na Terra a virtude universal!”
A justiça do
justo, portanto, segundo Jesus, só aproveita egoistamente ao justo. E a justiça
do justo, segundo o Buda, aproveita ao ser que o substituir na existência, e
depois ao outro que desse nascer, sempre durante a passagem na Terra, para lucro
eterno da Terra. Jesus cria uma aristocracia de santos, que arrebata para o Céu
onde ele é Rei, e que constituem a corte do Céu para deleite da sua divindade; -
e não vem dela proveito direto para o Mundo, que continua a sofrer da sua porção
de Mal, sempre indiminuída. O Buda, esse, cria, pela soma das virtudes
individuais, santamente acumuladas, uma Humanidade que em cada ciclo nasce
progressivamente melhor, que por fim se torna perfeita, e que se estende a toda
a Terra donde o Mal desaparece, e onde o Buda é sempre, à beira do caminho rude,
o mesmo frade mendicante.
Eu, minha
flor, sou pelo Buda. Em todo caso, esses dois Mestres possuíram, para bem dos
homens, a maior porção de Divindade que até hoje tem sido dado à alma humana
conter.
De resto,
tudo isto é muito complicado; e tu sabiamente procederias em deixar o Buda no
seu Budismo, e, uma vez que esses teus bosques são tão admiráveis, em te
retemperar na sua força e nos seus aromas salutares. O Buda pertence à cidade e
ao colégio de França: no campo a verdadeira Ciência deve cair das árvores, como
nos tempos de Eva. Qualquer folha de olmo te ensina mais que todas as folhas dos
livros. Sobretudo do que eu - que aqui estou pontificando, e fazendo
pedantescamente, ante os teus lindos olhos, tão finos e meigos, um curso
escandaloso de Religiões Comparadas.
NOTAS:
[1] O presente fragmento de Eça provocou uma
séria crise de poder na Sociedade Teosófica de Adyar no Brasil. Publicado sob o
título “Comparação Pouco Conhecida” na revista “O Teosofista”, em
sua edição número um de 1977, pp. 30-31, o texto causou profunda revolta na
cúpula ritualística daquela sociedade, formada por seguidores de Annie Besant.
Em correspondência datada de 28 de abril de 1977 e dirigida ao então presidente
da seção nacional, Murillo Nunes de Azevedo, alguns dos principais líderes do
movimento teosófico adyarista expressaram a sua “estranheza e preocupação”. Eles
não podiam aceitar a publicação do texto de Eça. O motivo da indignação era que
o fragmento incluía referências a Jesus que eles consideravam como
“depreciativas, impróprias e inverídicas”. Para eles era um absurdo inadmissível
insinuar que Buda fosse mais sábio que Jesus, ou que seus ensinamentos eram mais
completos que os ensinamentos cristãos. A carta - cujo texto revela
desinformação e intolerância - ameaçava com uma cisão na Sociedade. Entre os
que a assinavam estavam dirigentes bem conhecidos como Cora Salles, Cinira R.
Figueiredo, J. Gervasio Figueiredo, Carmen Piza e Olinda Pugliesi. Expressando a
revolta da ortodoxia dos rituais besantianos, José Hermógenes de Andrade Filho
renunciou ao cargo de vice-presidente nacional em carta datada de 29 de abril de
1977. Desde então, e até o final do seu mandato, Murillo teve pouca influência e
participação nos rumos da Sociedade no Brasil. A história ocorre em ciclos,
porém, e obedece a marés cármicas. Muitos anos mais tarde, Murillo seria
nomeado pela presidente internacional Radha Burnier para ser responsável pela
Escola Esotérica de Adyar no Brasil, tendo como seu principal auxiliar a Sra.
Olinda Pugliesi - que havia assinado a carta de 1977. Monge budista, Murillo
Nunes de Azevedo (1920-2007) foi autor de vários livros. Cópia dos documentos
relativos aos fatos narrados acima fazem parte da biblioteca da loja
luso-brasileira da Loja Unida de Teosofistas. Reprodução fotostática deles está
à disposição de pesquisadores que desejem estudar este notável episódio
histórico. (C. C. A. )
[2] Estamenha - veste religiosa.
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