SEM DEIXAR RASTROS : TRECHO DE "MENTE ZEN,MENTE DE PRINCIPIANTE"



Na mente do principiante não há pensamentos do tipo "eu alcancei algo". Todos os pensamentos egocentrados limitam a vastidão da mente. Quando não alimentamos pensamento nenhum de conquista, nem pensamentos egocentrados, somos verdadeiros principiantes e podemos então aprender alguma coisa de fato. A mente do principiante é mente de compaixão. Quando nossa mente é compassiva, torna-se ilimitada. O mestre Dogen, fundador da nossa escola, sempre enfatizou a importância de preservar nossa mente original ilimitada. Com ela somos verdadeiros conosco, estamos em comunhão com todos os seres e podemos, de fato, praticar.Assim, a coisa mais importante é manter sua "mente de principiante". Não há necessidade de ter uma profunda compreensão do Zen. Mesmo que você leia muita literatura Zen, deve ler cada frase com uma mente virgem. Nunca deve dizer: "Eu sei o que é Zen' ou "eu atingi a iluminação". O real segredo das artes também é esse: ser sempre um principiante. Seja muito cuidadoso nesta questão. Se começar a praticar zazen, você começará a valorizar sua mente de principiante. Este é o segredo da prática do Zen.

Shunryu Suzuki



MENTE ZEN, mente de principiante – Shunryu Suzuki (Palas Athena Editora)

Depois de participar de alguns encontros de Zazen para principiantes no Templo da Monja Coen, no Pacaembu, eu comprei este belo livro do Mestre Budista Japonês Shunryu Suzuki. Ele esclarece algumas dúvidas sobre o Zen.
Mestre Suzuki começa explicando como é a prática correta do zazen. Sente-se na posição de lótus completo (se possível) com pé esquerdo sobre a coxa direita, pé direito sobre a coxa esquerda. Coluna reta, orelhas e ombros alinhados, cabeça apontada ao teto e queixo levemente recuado para dentro. Dorso da mão direita sobre o colo, dorso da mão esquerda sobre a palma da mão direita. Dedos polegares se tocam levemente formando uma figura oval com as mãos (mudrá cósmico). Braços relaxados, ligeiramente afastados do tronco, como se segurasse um ovo em cada axila sem quebrá-los. A postura é por si só o propósito da pratica zazen.
“O estado da mente que existe quando você se senta em postura correta é, por si só, iluminação. Se você não está satisfeito com o estado da mente que tem no zazen, significa que sua mente está divagando por aí afora. E nosso corpo e nossa mente não devem oscilar nem vaguear. Nessa postura, não há por que falar em estado correto da mente. Você já o possui. Esta é a conclusão do budismo”.
O verdadeiro propósito do Zen é ver as coisas como elas são e deixar que tudo siga seu curso natural. Aceitação é fundamental. Aceitar o outro como é. Aceitar a si mesmo. Aceitar os nossos problemas. Mas com a consciência que na vida tudo é impermanente. Os problemas passam. Tudo se transforma. No meio de um problema, sente-se em zazen. E o Mestre Suzuki indaga: “O que é mais real para você? O seu problema ou você mesmo? A consciência de que você existe aqui e agora é o fato supremo. Isso é o que você vai perceber com a prática do zazen”.
Tudo isso nos leva à reflexão sobre o desapego. Mestre Suzuki nos fala sobre o dar verdadeiro. Não estamos criando nada. Ou melhor, tudo que se cria já existe de antemão. Só damos a forma. A criação é Divina. Então, devemos transformar o conceito do apego. Nada é nosso. Mas ao mesmo tempo, tudo está à nossa disposição.
Estudar o budismo é estudar a si mesmo. Estudar a si mesmo é esquecer-se de si mesmo.
“Quando estiver comendo, coma!” Esta é a idéia da atenção, concentração, foco. Quantas vezes nos pegamos pensando em trabalho na hora do almoço e pensamos na família ou namorada (o) na hora do trabalho? Mais fácil nos lembrarmos das vezes em que isso não acontece. É muito raro. Isso me faz recordar do episodia da mãe que esqueceu o bebê no carro. Será ela louca ou displicente? Uma falha imperdoável? O quanto temos disso em nós mesmos? Agindo sempre automaticamente. Estamos realmente acordados? O quanto somos imprudentes?
O Zen aponta para a simplicidade. Viver momento a momento, com seu maior esforço, atençao e concentração. Deixando de lado o conceito de posse, retorno, ganhos, lucros. Faça por que se é pleno fazendo o que faz.
O Zen não se preocupa com o entendimento filosófico. O Zen dá ênfase à prática. O importante são a postura correta e a respiração. E o que você irá atingir com a postura correta e a respiração não é o mais importante. A prática do zazen não deve ser encarada como um meio para se atingir algo (iluminação, por exemplo). A prática do zazen original e verdadeira aponta para a prática como fim, em si mesma.
Sobre o zazen, Mestre Suzuki ainda nos diz: “É tudo o que fazemos e somos felizes nesta prática. Para nós, não há necessidade de entender o que é o Zen. Nós praticamos zazen. Assim, para nós não há necessidade intelectual de saber o que é o Zen.”
Para finalizar, Mestre Suzuki nos faz refletir:
“O que é mais importante: atingir a iluminação ou atingir a iluminação antes de atingi-la? Ganhar um milhão de dólares ou desfrutar a vida aos poucos com seu próprio esforço, ainda que seja impossível ganhar aquele milhão? Ter sucesso ou encontrar algum sentido em seu esforço para ser bem-sucedido? Se você não sabe a resposta, não será capaz de praticar zazen, se a sabe, terá encontrado o verdadeiro tesouro da vida.”

“Sem Deixar Rastros” [TRECHO de "Mente Zen, Mente de Principiante"]
Por Shunryu Suzuki

“Ao fazer alguma coisa você deve se consumir completamente, como uma boa fogueira, sem deixar rastro de si próprio.”
Quando praticamos zazen (meditação), nossa mente está calma e livre de complicações. Porém, normalmente está muito ocupada e emaranhada, e é difícil concentrar-se naquilo que se está fazendo. Isso acontece porque antes de agir pensamos e esse pensar deixa rastros. Nossa atividade fica ofuscada pela sombra de uma idéia preconcebida. O pensar não só deixa rastros ou sombras, também nos dá muitas outras noções sobre diferentes atividades e coisas. Esses rastros e idéias tornam nossa mente muito complicada. Quando fazemos uma coisa com a mente clara e livre de complicações, não temos idéias ou sombras, e nossa atividade é vigorosa e direta. Mas quando fazemos algo com uma mente complicada, isto é, envolvida com outras coisas ou pessoas, nossa atividade se torna muito complexa.
A maioria das pessoas tem idéias duplas ou triplas numa mesma atividade. Existe um dito: “Caçar dois passarinhos com uma pedra só”.* Isso é o que habitualmente as pessoas tentam fazer. Porque querem caçar pássaros demais, acham difícil concentrar-se em uma só atividade e podem não caçar pássaro algum! Essa maneira de pensar sempre deixa sombras na atividade dessas pessoas. Na realidade, a sombra não é o próprio pensamento. Claro que muitas vezes é necessário pensar, ou preparar-nos antes de agir. Mas o pensamento correto não deixa sombras. Pensamento que deixa rastros provém de uma mente confusa e relativa. Mente relativa é a que se estabelece a si mesma em relação a outras coisas, autolimitando-se. É essa mente pequena que cria idéias de ganho e deixa rastros.Se você deixar rastros de seu pensamento em sua atividade, ficará apegado aos rastros. Você poderá dizer, por exemplo, “isto é o que fiz”. Mas de fato não é assim. Rememorando o feito, é possível que você diga “eu fiz isto e aquilo desse jeito”, porém oque você diz não corresponde ao que realmente aconteceu. Ao pensar dessa maneira, você está limitando a experiência real do que fez. Portanto, se você se apega à idéia do que fez, você está implicado em idéias egoístas. Freqüentemente achamos bom o que fizemos, mas de fato pode não ter sido assim. Quando envelhecemos, em geral ficamos orgulhosos daquilo que fizemos. As pessoas acham graça quando ouvem alguém falando com orgulho de algo que fez porque sabem que a memória dessa pessoa está sendo tendenciosa. Sabem que o que a pessoa está dizendo não é exatamente o que ela fez. Além do mais, se uma pessoa se orgulha do que fez, o orgulho vai criar-lhe problemas. Repetindo suas lembranças dessa forma, sua personalidade irá se distorcendo mais e mais, até se tornar uma criatura desagradável e teimosa. Este é um exemplo de como o pensamento deixa rastros. Nós não devemos esquecer o que fizemos, desde que a lembrança esteja livre de rastros adicionais. Deixar rastros não é o mesmo que lembrar alguma coisa. É necessário lembrar o que fizemos, mas não devemos apegar-nos ao que fizemos em nenhum sentido especial.
O que chamamos de “apego” são simplesmente esses rastrosdo nosso pensamento e atividade.A fim de não deixar rastros ao fazer alguma coisa, você temde fazê-la com todo o seu corpo e a sua mente; deve estar concentrado naquilo que está fazendo. Faça inteiramente, como umaboa fogueira, e não como uma fogueira que apenas faz fumaça.Você deve consumir-se por completo. Se não arder completamente, rastros de você mesmo serão deixados naquilo que fizer.Ficarão resíduos que não se consumiram. Atividade Zen é aquela que se consome inteiramente sem deixar nada além de cinzas.Esse é o objetivo de nossa prática. É isso o que Dogen quis dizercom: “Cinzas não voltam a ser lenha”. Cinzas são cinzas. Cinzas devem ser cinzas. Lenha, lenha. Quando ocorre este tipo deatividade, uma só atividade abarca tudo.Portanto, nossa prática não é uma questão de uma ou duashoras, um dia ou um ano. Se você pratica zazen com todo o seu corpo e a sua mente, mesmo por um momento apenas, isso é zazen.
Momento após momento você tem que dedicar-se à sua prática. Não deve ficar resíduo algum depois de ter feito algo. Mas isto não quer dizer que se deva esquecer tudo a esse respeito. Se você entender este ponto, todo pensamento dualista etodos os problemas da vida se dissiparão. Quando você pratica Zen você se torna um com o Zen. Não há você e não há zazen.
Ao inclinar-se em reverência, não há Buda, não há você. O que acontece é uma reverência plena, issoé tudo. Isto é nirvana. Ao transmitir esta prática a Maha Kashya-pa, o Buda simplesmente apanhou uma flor, com um sorriso. Apenas Maha Kashyapa entendeu o que ele quis dizer com isso – ninguém mais compreendeu. Não sabemos se esse evento éhistórico ou não, mas ele tem um significado. É uma demonstração do caminho da nossa tradição. Uma atividade que abarcatudo é a verdadeira atividade, e o segredo desta atividade foi transmitido desde o Buda até nós. Esta é a prática do Zen e não um punhado de ensinamentos dados pelo Buda, ou algumas regras de vida estabelecidas por ele. Os ensinamentos ou as regras devem mudar de acordo com o lugar e com as pessoas que os observam, mas o segredo desta prática não pode ser mudado. É sempre verdadeiro.P ortanto, para nós não há outra forma de viver neste mundo. Tenho isso como certo, e é fácil de aceitar, de entender e depraticar. Se você comparar o tipo de vida baseado nesta prática com o que está acontecendo no mundo, ou na sociedade humana, descobrirá quão valiosa é a verdade que o Buda nos legou. É muito simples, e a prática é simples também. Mas, ainda assim, não devemos desconsiderá-la; seu grande valor tem que ser descoberto. Em geral, quando algo é muito simples, dizemos: “Ah,eu sei disso! É muito simples. Qualquer um sabe”. Mas se não descobrimos seu valor, nada significa. É o mesmo que não saber. Quanto mais você entende a sociedade contemporânea, maisvocê percebe como é verdadeiro e necessário este ensinamento.Em lugar de ficar apenas criticando sua cultura, você deve devotar sua mente e corpo à prática deste caminho simples. Então, a sociedade e a cultura se desenvolverão a partir de você. Talvez o fato de serem críticos seja válido para aqueles demasiado apegados à sua cultura . Sua atitude crítica indica que estão voltando à verdade simples deixada pelo Buda. Nosso procedimento, entretanto, é apenas concentrar-nos numa prática simples e básica, num entendimento simples e básico da vida. Nossas atividades não devem deixar rastros. Não devemos nos apegar a idéias fantasiosas ou a coisas bonitas. Não devemos ir em busca de algo bom. A verdade está sempre à mão, ao seu alcance.

“Mente Zen, Mente de Principiante” é um dos livros mais suscintos e claros para a introdução à filosofia e prática do Zen Budismo, contendo palestras do monge Zen japonês Shunryu Suzuki (1904-1971), da Escola Soto Zen, e o trecho abaixo mostra o especial entendimento do Zen sobre os pensamentos e o apego, falando sobre o viver inteiramente no momento presente, “como uma fogueira, se consumindo completamente”. De maneira muito simples e clara, Suzuki fala sobre o agir entoxicado por pensamentos, e como esse pensar deixa rastros, criando o que chama de uma mente complicada. “O pensamento correto não deixa sombras“, diz ele.
As palestras foram proferidas em 1970, no centro Zen de Los Altos, na Califórnia (EUA), e selecionadas por discípulos de Suzuki. A tradução para o português é de Odete Lara na edição da Palas Athena.

Fonte:http://dharmalog.com/

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