COMO É SER LGBTQIA+ NO MEIO RURAL


Jackson Raimundo da Silva, coordenador do coletivo LGBT do MST no Paraná  (Foto: Arquivo Pessoal)

Jackson Raimundo da Silva, coordenador do coletivo LGBT do MST no Paraná (Foto: Arquivo Pessoal)

Como é ser LGBTQIA+ no agro

Histórias de quem assumiu orientação e ainda enfrenta preconceitos e estereótipos no meio rural

A cena foi vista por milhões de brasileiros que acompanham a novela de maior sucesso no país atualmente. Ao chegar na fazenda de seu pai em Pantanal, Jove, interpretado por Jesuíta Barbosa, tem sua sexualidade questionada ao apresentar comportamentos considerados pouco viris, como não comer carne, não andar a cavalo ou não revidar aos socos as provocações de Alcides, peão interpretado por Juliano Cazarré. Em uma das cenas, o personagem Tenório, interpretado por Murilo Benício, dispara: “Pode ser até que ele não seja, mas que leva jeito leva”. 

Os questionamentos sobre a masculinidade de Jove, que sequer é um personagem gay, aconteceram na ficção, mas retratam a realidade de milhares de pessoas LGBT’s que vivem no campo ou trabalham diretamente com atividades rurais. Seja antes, dentro, ou fora da porteira, o preconceito ainda é algo presente e o tema, muitas vezes, tratado como um tabu. 

“Eu digo que ser LGBTQIA+ no agro hoje não é fácil. A gente vê que tem uma série de coisas ainda para evoluir no setor, desde sucessão familiar à questão da mulher no campo. Tem bastante coisas que hoje em dia melhoraram, mas a gente está falando de coisas simples, estamos lutando por coisas relativamente simples, imagina o LGBT”, conta Bruno*. Mesmo assumido, ele não se sentiu totalmente seguro após dar a entrevista e preferimos preservar sua identidade.

"A partir do momento que eu me assumi e que eu me descobri, daí começou a ser um pouco mais difícil""

Bruno, engenheiro agrônomo

“No início foi muito difícil, foi extremamente difícil porque eu estava num meio extremamente machista e masculino onde tinha a tradição muito forte. E eu senti esse peso quando eu dei a cara à tapa, vamos dizer assim. Porque até então era tudo sossegado pra mim, mas a partir do momento que eu me assumi e que eu me descobri, daí começou a ser um pouco mais difícil”, conta o engenheiro agrônomo. 

Filho de produtores rurais no interior do Paraná, ele afirma que precisou fortalecer o seu psicológico para lidar com situações embaraçosas e manter-se na profissão. “As pessoas respeitam porque são obrigadas a respeitar, porém fora do ambiente de trabalho elas mostram uma visão extremamente conservadora”, relata o profissional do agro ao revelar os preconceitos que já teve que enfrentar. “Às vezes com conversas, piadinhas, aquele jeito meio que disfarçado. Às vezes as pessoas falam, mas sem saber que eu sou gay. A gente vê de tudo e tem que ter um controle emocional excelente para não mandar para aquele lugar”.

 Josias Mattos, membro do comitê de diversidade da Yara fertilizantes e Supervisor de Saúde e Segurança das Unidades do Sudeste da empresa (Foto: Divulgação)

Josias Mattos, membro do comitê de diversidade da Yara fertilizantes e Supervisor de Saúde e Segurança das Unidades do Sudeste da empresa (Foto: Divulgação)

O membro do comitê de diversidade da Yara fertilizantes e Supervisor de Saúde e Segurança das Unidades do Sudeste da empresa, Josias Mattos, também lembra das situações constrangedoras que já passou na vida e na carreira. Antes de entrar no setor de fertilizantes em 2016, ainda na antiga Galvani, adquirida pela multinacional norueguesa em 2018, ele ouviu que precisaria ter o “saco roxo” para trabalhar na empresa. 

“Era um ambiente hostil. Todo mundo ali é macho"

Josias Mattos, membro do comitê de diversidade da Yara fertilizantes

“Na verdade, esse ambiente rural é muito rústico, muito machista”, comenta Josias ao recordar da infância em Jacareí, interior de São Paulo. “Era um ambiente hostil. Todo mundo ali é macho, todo mundo pega todo mundo no sentido de ser macho e isso ficava muito na minha cabeça porque eu não sabia. Para mim esse desejo era único meu e ninguém era assim como eu”.

A história de Josias se confunde a de outros tantos LGBT’s que crescem e vivem em contextos em que falta representatividade e sobra preconceito. Com 44 anos, somente aos 35 ele conseguiu se libertar das cicatrizes que as piadinhas e cobranças ouvidas na infância deixaram. “Desde pequeno eu já entendia quem eu era. Só que eu venho de uma família religiosa onde não tinha a tranquilidade de falar do que eu sentia, do meu desejo da minha orientação”, conta o profissional. 

Filho de assentados da reforma agrária e membro do Coletivo LGBTI da Via Campesina, Alessandro Santos Mariano explica que o preconceito está muitas vezes está arraigado nas próprias tradições do campo, como a divisão do trabalho. “Enquanto minhas irmãs ficavam com afazeres domésticos eu ia para o campo com meu pai. E quando você rompe com essa lógica, quando você tem uma orientação sexual que não está de acordo com essa tradição, quando a gente não corresponde a essa perspectiva, então é muito violento”, conta Alessandro, que hoje conta com o apoio tanto da família quanto da sua comunidade.

Representatividade importa

Tanto para Alessandro quanto para Josias, contudo, sair do campo e ir para a cidade foi determinante para o entender-se e afirmar-se homossexual. A falta de representatividade e de espaços de convivência em regiões de baixa densidade demográfica torna a vida da comunidade LGBT no meio rural algo ainda mais difícil. “Tem que sair dali e ir pra cidade muitas vezes para poder acessar um espaço em que você encontre com outros iguais e, se for menor a cidade, nem vai ter”, diz Alessandro ao destacar a importância de ter ido fazer faculdade em Cascavel para a afirmação da sua identidade. “De alguma forma, se eu estivesse só no campo, eu não teria encontrado conhecimento e formas de me libertar. E acho que essa é a nossa luta: buscar formas de que os sujeitos LGBTs não tenham que sair do campo como eu tive que sair”, diz.

, Jackson Raimundo da Silva, coordenador do coletivo LGBT do MST no Paraná (Foto: Arquivo Pessoal)

Jackson Raimundo da Silva, coordenador do coletivo LGBT do MST no Paraná (Foto: Arquivo Pessoal)

A saída do campo em busca de uma vida melhor na cidade é constante nos relatos de LGBT’s que vivem em zonas rurais. O coordenador do coletivo LGBT do MST no Paraná, Jackson Raimundo da Silva, explica que foi apenas com o início das discussões sobre sexualidade e gênero dentro do movimento que essa espécie de exôdo rural gay diminuiu, embora ainda ocorra em certa medida. “É como se o meio rural ainda não estivesse preparado para que os sujeitos LGBTs também sejam sujeitos rurais e nesse sentido a gente vê essa dificuldade do camponês e da camponesa de enxergar nos sujeitos LGBTs no meio rural como uma figura que também faz parte daquele meio”, observa o jovem do assentamento Santa Maria, em Paranacity, Paraná, onde trabalha na Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória (COPAVI).

"Quando a gente deixa o campo, não é porque não gosta do campo, a gente gosta do campo, mas o campo, querendo ou não, ainda é algo muito cruel""

Jackson Raimundo da Silva, coordenador do coletivo LGBT do MST no Paraná

Criado em 2015, o coletivo LGBT do MST conseguiu conquistar avanços importantes desde então, alcançando representatividade em quase todas as frentes do movimento, segundo conta Jackson. “Se ocorre algum caso desagradável a gente chega, conversa com os companheiros e se existe essa falta de compreensão ainda a gente conversa com as nossas coordenações para que realmente ocorra o diálogo. Os debates, as discussões são uma coisa necessária dentro do movimento porque se não tem os debates e as contradições a gente não sabe o que precisa mudar pra gente crescer como ser humano”, explica o militante. Segundo ele o coletivo busca trabalhar de forma pedagógica, para que a pessoa entenda a importância do respeito à diversidade.

“Acho que nem tudo é tratado a ferro e fogo, a gente tem que ter essa consciência de que querendo ou não o movimento é um movimento camponês e reúne pessoas de diversas partes do país, com diversas características. Então não é fácil organizar o povo, mas com diálogo, consciência e discussão coletiva a gente consegue, sim, fazer com que as pessoas compreendam”, completa Jackson.

Na indústria, os comitês de diversidade ainda são restritos a empresas multinacionais. Procuradas, a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), por exemplo, afirmaram não possuir nenhum tipo de ação voltada para esse público. “Essa é uma das principais necessidades que a gente tem. De que as organizações, os sindicatos dos agricultores possam compreender essa dimensão da diversidade humana, entender que também os agricultores são diversos. Assim como são em raça e gênero, também são diversos em orientação sexual e em identidade de gênero porque isso também faz parte da humanidade”, observa Alessandro.

"E eu me senti muito amparado dentro da Yara nessa questão LGBTQIA+ porque o gerente deixou muito claro que não iria tolerar piadinhas.""

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Para Josias, que atua numa multinacional onde há uma política de diversidade que inclui LGBT’s, ter um espaço como esse foi fundamental para que ele se sentisse confortável para falar abertamente da sua sexualidade com os colegas de trabalho dois anos depois de começar na empresa. E foi justamente durante um diálogo diário de segurança, quando abordaria a questão LGBT, que ele, ao invés de citar o exemplo trazido no material, falou de si.

“Eu me assumi para o time ali e todo mundo ficou de queixo caído, era aproximadamente umas 80 pessoas e eu me assumi, eu contei minha história. E eu me senti muito amparado dentro da Yara nessa questão LGBTQIA+ porque o gerente deixou muito claro que não iria tolerar piadinhas. Então eu me senti e ainda me sinto à vontade de trabalhar na Yara por esse motivo: de ter a liberdade de ser quem eu sou”, afirma o supervisor de segurança do trabalho. 

Queernejo

Dupla de queernejo Mel e Kaleb (Foto: Divulgação)

Dupla de queernejo Mel e Kaleb (Foto: Divulgação)

Na cultura sertaneja, a presença LGBT também é na base da resistência, como contam a dupla Mel e Kaleb, representantes do Queernejo. O gênero musical busca justamente se opor a linguagem heteronormativa do sertanejo, mas nem sempre é bem recebido nesse universo. Cantar em rodeios ou circuitos tradicionais ainda é um sonho. “Eu sozinha, como mulher no sertanejo, eu consigo entrar. É difícil, é complicado por ser mulher já, mas eu ainda consigo entrar e fazer alguns shows fazendo cover. Agora, teve um período que a gente tentou vender o produto Mel e Kaleb não foi aceito de jeito nenhum”, conta Mel.

Hoje, as apresentações estão restritas a grandes capitais e ao circuito pop, mas a experiência nos dois ambientes faz Mel perceber que mesmo nas casas de shows e eventos do sertanejo tradicional, o público LGBT está lá. “A gente consegue identificar muitos dos nossos lá dentro e isso é o mais preocupante porque a nossa galera não está à vontade nesse local. Porém essa galera ama o sertanejo e para consumir esse tipo de música elas têm que ir a esses locais onde correm muito risco”, explica a cantora ao lembrar do caso recente em Franca, interior de São Paulo, quando uma mulher transsexual foi agredida aos gritos de “é travesti”. “Isso acontece em baladas do Brasil inteiro, o tempo inteiro”.

LGBTFobia mata

Segundo dados do Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil, foram registradas pelo menos 316 mortes violentas de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e pessoas intersexo (LGBTI+) no país em 2021, um aumento de 33,3% em relação ao ano anterior. O levantamento não faz um recorte sobre LGBT’s no campo ou na cidade, apenas regional. Com um olhar mais atento às regiões onde há disputa por terra, um segundo levantamento, realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), aponta que cinco LGBTs foram vítimas de violência no campo no ano passado. “A violência praticada contra essa população foram as mais variadas: prisão, humilhação, inclusive assassinato, intimidação e tortura, relata a integrante da coordenação nacional da CPT, Andréia Silvério. 

“A gente percebe que as pessoas que estão envolvidas em processos coletivos de luta por direitos humanos no Brasil estão numa condição de vulnerabilidade, mas essa condição de vulnerabilidade é agravada em decorrência da orientação sexual e da orientação de gênero dessas pessoas"

Andréia Silvério, da coordenação nacional da CPT

O trabalho realizado pelo CPT leva em consideração apenas as situações de violência que ocorreram em contextos de disputa pela terra e passaram a compor o relatório anual elaborado pela instituição este ano. “A gente percebe que as pessoas que estão envolvidas em processos coletivos de luta por direitos humanos no Brasil estão numa condição de vulnerabilidade, mas essa condição de vulnerabilidade é agravada em decorrência da orientação sexual e da orientação de gênero dessas pessoas”, explica Andréia.

Reunir essas informações, contudo, tem dificuldades adicionais que surgem pela própria realidade LGBT no campo. Sem espaços de discussão ou de afirmação, muitos sequer são reconhecidos ou se afirmam como tal. “A gente está falando de um cenário em que o conservadorismo é muito grande, no Brasil de modo geral, mas sobretudo no campo brasileiro e isso dificulta a possibilidade de autoindentificação por parte dessas pessoas” 

Campo X Cidade

Casal Felipe Andrade Vieira Maciel e Philipp Uhl decidiu deixar a cidade em viver no campo durante a pandemia  (Foto: Arquivo Pessoal)

Casal Felipe Andrade Vieira Maciel e Philipp Uhl decidiu deixar a cidade em viver no campo durante a pandemia (Foto: Arquivo Pessoal)

Quando decidiram deixar a vida na cidade do Rio de Janeiro para viver no campo, ainda em meio às restrições impostas pela chegada da Covid-19, o casal Felipe Andrade Vieira Maciel e Philipp Uhl sentiram imediatamente o contraste entre ser LGBT na cidade ou no campo. Foi ainda durante a escolha do imóvel, quando visitaram algumas propriedades no interior do Estado. “A gente inicialmente tentava buscar lugares através de imobiliária e aí alguém da imobiliária levava a gente já como casal e rolava um clima estranho. Meio que não parecia que a pessoa realmente queria que a gente e ficasse lá”, recorda Felipe.

O acaso levou os dois para Itacaré, no Sul da Bahia, onde dão os primeiros passos para iniciar um pequeno sistema agroflorestal. A cidade mais turística, acredita Felipe, ajudou a diminuir a resistência local a um casal de homens gays, mas isso não significa que o tema seja tratado tão abertamente quanto na cidade. “A diferença que eu senti é que no Rio de Janeiro e em São Paulo esse assunto não é tão importante. Se a gente falar que é casado, é isso. Está ok. As pessoas não ficam muito surpresas. Já sabem, gay existe e está aí. Aqui não, é como se fosse um tabu, mas as pessoas evitam falar do tema. Falam ‘seu amigo’”. 

A falta de espaços LGBTs estruturados também foi notória para os dois. “Não tem muita coisa, a gente não vê locais igual em São Paulo e Rio de Janeiro que são LGBT realmente. Não é uma cidade muito grande e todo mundo que eu encontro aqui fala que a cidade é de boa, que não tem homofobia e tal, mas ao mesmo tempo também não tem um lugar gay, por exemplo, não existe essa proposta aqui. Não tem uma programação e também não tem vida noturna gay, por exemplo. Não tem uma possibilidade de encontro com um local só para pessoas homossexuais ou algo assim”, relata o agricultor de primeira viagem.

"Existem três possibilidades quando você se afirma LGBT no campo. A primeira é sair do campo, a segunda é viver no armário ou a terceira, que é a gente se juntar com outros LGBT’s para juntos buscar formas de superar esse preconceito""

Alessandro Santos Mariano, membro do Coletivo LGBTI da Via Campesina
Alessandro Santos Mariano, membro do Coletivo LGBTI da Via Campesina (Foto: Arquivo Pessoal)

Alessandro Santos Mariano, membro do Coletivo LGBTI da Via Campesina (Foto: Arquivo Pessoal)

Embora pareçam sutis, essas diferenças acabam dificultando não só a vida social da de gays, lésbicas e transsexuais do meio rural, mas também o acesso a políticas públicas. “As cidades acabam tendo mais acesso do que quem mora no campo em relação tanto não só uso de camisinha, mas a própria PEP e Prep que, por exemplo, no Paraná só é oferecida nas regionais de saúde, não está em todo posto de saúde”, compara Alessandro. “A gente se depara muito com essas situações, a questão da própria harmonização das pessoas trans a gente vê essa dificuldade e não é só nos assentamentos, mas nos municípios mesmo”, completa Jackson. 

Apesar das dificuldades, contudo o desejo de permanecer no campo se mantém. “Quando a gente deixa o campo, não é porque não gosta do campo, a gente gosta do campo, mas o campo, querendo ou não, ainda é algo muito cruel e inviabiliza tanto mulheres quanto sujeitos LGBTs”, explica o militante do MST.

Mas para isso ocorrer o caminho ainda é longo segundo avaliam os próprios LGBT's inseridos na agropecuária. “A gente precisa que as instituições também evoluam, que os próprios espaços de organização como MST e sindicatos possam também ser esse espaço que lute contra a LGBTfobia que, possam ter lideranças LGBTs, contribuir e representando outros sujeitos que estão no campo”, avalia Alessandro ao ver apenas três opções para gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros do campo: “a primeira é sair do campo, a segunda é viver no armário e a terceira é se juntar com outros LGBT’s para juntos buscar formas de superar esse preconceito”.

“Não é só a questão da necessidade de inclusão, mas de construir uma agricultura que não seja LGBTfóbica, que não seja machista, e que a gente possa também sendo gay afeminado poder trabalhar e produzir no campo, produzir alimentos vender e comercializar o seu produto e não sofrer nenhum tipo de violência”, comenta Alessandro.

Fonte:https://globorural.globo.com/Noticias/noticia/2022/06/como-e-ser-lgbtqia-no-agro.html



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