EGOÍSMO E PSICANÁLISE SEGUNDO A VISÃO BUDISTA - MATHIEU RICARD


EGOÍSMO E PSICANÁLISE

 

Os Campeões do Egoísmo


Como vimos detalhadamente, os trabalhos realizados por diversas equipes de psicólogos destacaram que os atos realmente altruístas sobejam no cotidiano, contradizendo a tese de uma motivação humana de natureza sistematicamente egoísta.
Uma outra categoria de pensadores não sustenta que o altruísmo seja inexistente, mas que é pernicioso, imoral ou doentio. Esses pensadores baseiam-se no que os psicólogos e filósofos chamam de “egoísmo ético”, em outras palavras, na doutrina que faz o egoísmo uma virtude que seria o fundamento de uma moral pessoal.
Maquiavel já justificava em certos aspectos o egoísmo. Estava convencido de que o mal era necessário para governar e que o altruísmo constituía uma fraqueza. “Um príncipe”, escreve ele, “não pode exercer impunemente todas as virtudes, pois o interesse em sua conservação o obriga a agir contra a humanidade, a caridade e a religião. Assim, ele deve escolher adaptar-se aos ventos e caprichos da Sorte, manter-se no bem, caso possa, mas entrar no mal, se necessário.
Uma posição mais radical foi adotada pelos filósofos alemães Max Stirner e Friedrich Nietzsche que denunciam o altruísmo como um sinal lamentável de impotência. Stirner exerceu uma certa influência no desenvolvimento intelectual de Karl Marx e no movimento anarquista alemão. Ele rejeita a ideia de quaisquer dever e responsabilidade em relação aos outros. A seus olhos, o egoísmo representa o símbolo de uma civilização avançada. E faz a seguinte apologia:
“Cabe ao egoísmo, ao interesse pessoal decidir, e não ao princípio do amor, aos sentimentos de amor tais como caridade, indulgência, benevolência ou até mesmo equidade e justiça.”
Nietzsche também tem pouca estima pelo amor ao próximo, noção que considera uma atitude defendida pelos fracos para os fracos, inibindo a busca do desenvolvimento pessoal e da criatividade. Segundo ele, não deveríamos sentir nenhuma obrigação em ajudar os outros, sem sentir culpa alguma por não intervir em seu favor. “Você deve procurar tirar vantagem, mesmo em detrimento de todo o resto.”, aconselha ele antes de acrescentar: “Você mostra zelo pelo próximo e exprime isso com belas palavras. Mas eu lhe digo: seu amor ao próximo significa seu mau amor a si próprio”. Desse modo, Nietzsche fustiga violentamente o cristianismo e todos aqueles que pregam a subserviência do indivíduo a uma autoridade externa. Ele conclui em “Ecce Homo”, escrito pouco tempo antes de perder definitivamente a razão:”A moral, esta Circe da humanidade, deformou-se, invadiu com sua essência tudo o que é psicologia a ponto de formular esse absurdo de que o amor é algo ‘altruísta”.
Após esses filósofos, tivemos no século XX duas figuras emblemáticas do egoísmo. Uma é a filosofa americana Ayn Rand. Quase desconhecida na Europa, ela é um ícone nos Estados Unidos. Outro é Sigmund Freud, ainda muito influente na França, na Argentina e no Brasil, mas em vias de ser esquecido em todos os outros lugares do mundo onde o ensino universitário da psicologia já não dá mais importância à psicanálise. A primeira proclama que ser egoísta é a melhor maneira de ser feliz. O segundo afirma que o incitamento a adotar uma atitude altruísta leva a um desequilíbrio neurótico, e que é portanto mais saudável assumir plenamente seu egoísmo natural.
O fenômeno Ayn Rand
No que tange à filosofa Ayn Rand, que chega a sustentar que o altruísmo é “imoral”, é interessante observar que ela continua a desfrutar de uma influência considerável na sociedade norte-americana, sobretudo nos meios conservadores ultra-liberais. É difícil compreender a divisão existente hoje nos Estados Unidos entre republicanos e democratas, entre partidários e oponentes da solidariedade social e de um papel ativo do Estado na vida dos cidadãos, sem mensurar a influência do pensamento de Ayn Rand. Nascida na Rússia no início do século XX e naturalizada norte-americana, falecida em 1982, no início da era Reagan, é uma das autoras mais populares do outro lado do Atlântico. Em 1991, de acordo com uma pesquisa efetuada pela Biblioteca do Congresso, os norte-americanos citaram “A revolta de Atlas”, sua obra principal, como o livro que mais os influenciou após a Bíblia! Publicado em 1957, este imenso romance de 1400 páginas – que define a visão de mundo de Ayn Rand – chegou a 24 milhões de exemplares. Ainda hoje são vendidos várias centenas de milhares por ano. Dois outros romances, Hino (Anthem) e A nascente (Fountainhead) publicados em 1938 e 1943, foram também grandes campeões de venda.
A moda dessa autora e filosofa foi tão significativa nos Estados Unidos que quase todo o mundo passou por “um período de Ayn Rand”. O presidente Ronald Reagan era um de seus fervorosos admiradores. Alan Greenspan, ex-presidente do FED, que controla a economia norte-americana declarou que ela havia modelado profundamente seu pensamento e que “seus valores se harmonizavam”. Ayn Rand estava ao lado de Greenspan quando este prestou juramento perante o presidente Ford. Ela também é considerada uma heroína do Tea Party (Movimento político norte-americano ultraconservador.) e dos movimentos políticos que devem a ela a vontade de reduzir, ao mínimo possível, o papel do Estado na vida dos cidadãos. Paul Ryan, candidato à vice-presidência americana em 2012 na chapa de Mitt Romney, exigiu de seus colaboradores que lessem os livros de Ayn Rand, e afirmou que ela inspirou sua carreira política. O essencial do programa econômico e social de Paul Ryan consistia em reduzir os impostos para os ricos e os subsídios para os pobres.
Ayn Rand estava muito imbuída de sua influência e citava “modestamente” os três “A” relevantes na história da filosofia: Aristóteles, Santo Agostinho e ela própria. Só isso! Na França, A nascente só foi publicada recentemente sob o impulso e com o financiamento de um admirador norte-americano. A razão da publicação tardia deve-se sobretudo ao fato de que a corrente de pensamento encarnada por Rand, o objetivismo, cujos princípios estão resumidos em um ensaio muito conciso publicado na França com título “A virtude do egoísmo”, permanece felizmente bastante afastada da mentalidade europeia.
Ayn Rand não afirma que somos todos fundamentalmente egoístas: ela lamenta que não sejamos o suficiente. Para ela, o altruísmo é só um vício masoquista que ameaça nossa sobrevivência e nos conduz a negligenciar nossa felicidade em prol da dos outros, e a nos comportar como “animais sacrificiais”. “O altruísmo significa que você coloca o bem-estar dos outros acima do seu, que você vive com o objetivo de ajuda-los e que isso dá sentido à sua vida. É imoral segundo minha moralidade.” declarava na televisão em 1979. Ela exalta, em contrapartida, “a palavra gravada que deve ser meu farol e meu estandarte. A palavra não morrerá, mesmo que tenhamos que morrer na luta. A palavra sagrada: EGO.”
O altruísmo, segundo Rand, não é só prejudicial, é “uma noção monstruosa” que representa a “moralidade dos canibais devorando-se uns aos outros”. Ele é também uma degradação: “Você deve oferecer seu amor àqueles que não o merecem […] Essa que é sua moral sacrificial e esses são ideais inseparáveis que ela oferece: reformar a sociedade para fazer dela um curral humano; e remodelar sua mente à imagem de um monte de lixo”.
A filosofa norte-americana não tem papas na língua. Em 1959, em uma entrevista à televisão, declarou: “Considero o altruísmo maléfico. […] O homem deve ter estima apenas por si próprio. […] O altruísmo é imoral porque manda amar todo mundo sem discriminação. […] Devemos amar apenas aqueles que merecem”. Quando o jornalista que a entrevista comenta: “Pouquissímas pessoas no mundo parecem merecer seu amor.”, Ayn Rand replica: “Infelizmente, sim. […] Nunca ninguém deu uma razão válida para justificar que o homem deve proteger seu semelhante. Em um de seus romances, A nascente, Rand conclui: “Os estragos do egoísmo são infinitamente menores que aqueles perpetrados em nome do altruísmo”.
Ela considera que as relações humanas devem ser baseadas nos princípios do comércio. Destacando essas palavras, na mesma entrevista, o jornalista a interroga sobre sua vida pessoal: “A senhora ajuda financeiramente seu marido. Não é uma contradição?” “Não, porque eu o amo com um amor egoísta. É meu interesse ajudá-lo. Não chamaria isso de sacrifício, pois estar com ele me dá um prazer egoísta.” Ela acrescenta, ainda, que diante de uma pessoa que se afoga, só é aceitável moralmente correr riscos para salvá-la se se tratar de um ser querido cujo desaparecimento vá tornar nossa vida insuportável. Nos demais casos, seria imoral tentar salvá-la do afogamento se o perigo que se corre é elevado. Seria dar mostra de falta de autoestima.
Seria tentador descartar Ayn Rand e considerá-la uma sinistra anomalia, uma arrogante psicopata que deu asas a suas divagações egoístas e quis reconstruir o mundo a partir de quase nada (ela tolerava Aristóteles, pois o considerava como sua única inspiração filosófica, embora “discordasse bastante de muitas de suas posições”). Entretanto, o fato de ter marcado a tal ponto a cultura norte-americana que, por sua vez, exerce grande influência em todo mundo, obriga-nos a considerar esse fenômeno, por mais incômodo que seja, à semelhança do clínico que não pode ignorar uma doença estranha que ameaça propagar-se ao resto do mundo.
Ayn Rand desenvolve seu argumento principal da seguinte maneira: o bem mais precioso do homem é sua vida. Esta é um fim em si mesma e não pode ser utilizada como um meio para realizar o bem do outro. Segundo a ética objetivista, cuidar de si e procurar sua própria felicidade por todos os meios disponíveis constituem a razão moral mais elevada do homem.
Até aqui, o raciocínio não é muito original, e podemos admitir que a aspiração mais ambicionada do ser humano é viver sua vida até o fim e ter mais alegria que sofrimento. Mas Ayn Rand lança, desajeitadamente, a pedra angular de seu arcabouço intelectual que a partir daí desmorona: o desejo fundamental do homem é viver e ser feliz, por conseguinte deve ser egoísta.
É aqui que se situa a falha lógica. Rand racicina no abstrato e perde contato com a experiência vivida. Esta demonstra que um egoísmo tão extremo quanto o que ela preconiza tem mais chances de tornar o indivíduo infeliz do que de favorecer seu desenvolvimento. Aliás, parece ter sido o próprio caso de Rand, segundo os testemunhos daqueles que por muito tempo a acompanharam. Altiva, narcisista, rígida e desprovida de empatia, no limite da psicopatia, ela teve relações vingativas e conflitivas com muitos de seus próximos e colaboradores. Desprezava os mortais comuns considerados por ela como “medíocres, broncos e irracionais”.
Perdida na esfera do raciocínio conceitual, Rand ignora o fato de que na realidade – realidade esta que ela afirma adorar acima de tudo – o altruísmo não é nem sacrificial nem fator de frustração, mas constitui uma das principais fontes de felicidade e de plenitude do ser humano. Como destacam Luca e Francesco Cavalli-Sforza, respectivamente pai e filho, um geneticista de renome e outro filósofo: “A ética nasceu como ciência da felicidade. Para ser feliz, é melhor cuidar dos outros ou pensar exclusivamente em si?” As pesquisas em psicologia social demonstraram claramente que a satisfação gerada pelas atividades egocentradas é inferior àquela decorrente de atividades altruístas.
O filosofo norte-americano James Rachels fornece um argumento suplementar para mostrar a incoerência das teses de Ayn Rand: “Em virtude de que diferença poderia eu me considerar tão especial em relação ao outro? Sou mais inteligente? Realizei mais coisas? Aproveito mais a vida do que os outros? Tenho mais defeito de viver e de ser feliz do que aqueles que me rodeiam? Seria impossível responder afirmativamente a esta última questão. Consequentemente, promover o egoísmo como uma virtude moral é uma doutrina tão arbitrária quanto o racismo. Na verdade, devemos nos preocupar com os interesses e com o bem-estar dos outros exatamente pelas mesmas razões que nos fazem preocuparmo-nos com nossos direitos e aspirações, com nossas alegrias e sofrimentos”.
Freud e seus sucessores
A posição de Freud quanto ao altruísmo, menos dogmática que a de Ayn Rand, é também mais fundamentada sobre a intuição do que sobre o raciocínio, porém se mostra também distante da realidade. Freud esboça uma imagem depreciativa do ser humano, desde a fase da primeira infância: “A criança é totalmente egoísta, sente intensamente suas necessidades e aspira, sem qualquer consideração pelos outros, à sua satisfação, sobretudo diante de seus rivais, as outras crianças”. Ora, todos os estudos baseados na observação objetiva e sistemática de um grande número de crianças, os de Tomasello e Warneken em particular, sobre os quais já tratamos em capítulos anteriores, mostraram sem ambiguidade que a afirmação de Freud é falsa, e que a empatia e os comportamentos benévolos estão dentre as primeiras disposições espontâneas das crianças.
Além disso, se acreditarmos no que Freud escreveu numa carta ao pastor Pfister, as coisas não se resolveriam na idade adulta: “Não me preocupo muito com a questão do bem e do mal, mas, em geral, descobri muito pouco “bem” nos homens. Pelo que sei, a maioria não passa de gentalha”.
Segundo Freud, a sociedade e seus membros só têm importância para o indivíduo à medida que favorecem ou contrariam a satisfação de seus instintos. Essa disposição abrangeria todos os aspectos de nossa existência, inclusive os sonhos que são “todos absolutamente egoístas”. Freud chega a afirmar: “Quando parece que o sonho é provocado pelo interesse em relação à outra pessoa, trata-se apenas de uma aparência enganosa”.
Poucas vezes Freud refere-se ao altruísmo (A palavra “altruísmo” aparece somente sete vezes nos vinte e tanto volumes de suas obras completas.), notadamente quando declara: “Em outros termos, o desenvolvimento individual aparece como o produto da interferência de duas tendências: a aspiração à felicidade, que chamamos geralmente de “egoísmo”, e a aspiração à união com os outros membros da comunidade, que qualificamos de “altruísmo”. No entanto, ele acrescenta que as tendências altruístas e sociais são adquiridas sob coerções externas e que “não se deve superestimar a aptidão humana à vida social”. E sobretudo, a definição que ele dá do altruísmo como “aspiração à união com os outros membros da comunidade” é inapropriada: podemos nos unir com outros para fazer o bem, mas também para prejudicar, promover o racismo, fazer parte de uma gangue de malfeitores ou perpetrar um genocídio. ( Posteriormente, o termo “altruísmo” deixou de ser utilizado pelos psicanalistas e não consta no Vocabulário da Psicanálise de Laplanche.)
Em contrapartida, Darwin e muitos outros desde então não cessaram de destacar a propensão natural do homem, e de outros animais que vivem em sociedade, para cooperar e manifestar instintos sociais que, segundo Darwin, “estão sempre presentes e são persistentes” para prestar ajuda e socorro a seus congêneres, e ainda acrescenta: “Eles sentem por estes últimos um certo afeto e simpatia, mesmo sem ser estimulados por qualquer paixão ou desejo especial; sentem tristeza se ocorre de ficarem por longo tempo separados, e ficam sempre felizes por viverem em sua sociedade; o mesmo acontece em relação a nós”. Darwin conclui: “Seria absurdo supor que esses instintos sejam derivados do egoísmo”.
Freud utiliza frequentemente o termo Einfuhlung que, como vimos, deu origem ao termo “empatia”, sem considerá-lo como uma etapa em direção ao altruísmo. Como explica Jacques Hochmann em sua Une historie de L´empathie, Freud refere-se à empatia sobretudo como um meio de comparar nosso estado de espírito com o do outro e de compreender melhor, por exemplo, o efeito cômico involuntário produzido por uma observação ingênua ou boba. “Nosso riso”, afirma Freud, “expressa um sentimento prazeroso de superioridade”.
Em “Por que a guerra?” Freud formula a hipótese da existência de uma “pulsão de morte”, que se exerceria inicialmente contra o próprio indivíduo antes de voltar-se para os outros:
“Tudo acontece de fato como se fôssemos obrigados a destruir pessoas e coisas a fim de não destruirmos a nós próprios, e de nos proteger contra a tendência à autodestruição.”
Este retrato devastador da natureza humana não deixou de impressionar o pensamento contemporâneo, embora tenha sido profundamente questionado e se revelou destituído de fundamento científico. As teses de Freud e do etólogo Konrad Lorenz, segundo as quais a tendência à agressão é uma pulsão primária e autônoma nos seres humanos e nos animais, foram de fato invalidadas por inúmeros trabalhos de pesquisa. (No capítulo “Existe um instinto de violência?” do livro fala-se mais sobre isso.)
Carl Gustav Jung, outra figura fundadora da psicanálise, também te um olhar sombrio a respeito da natureza humana:
“Tem-se quase a impressão de um eufemismo quando a Igreja fala do pecado original. (…) Essa tara do homem, sua tendência ao mal é infinitamente mais pesada do que parece, e é um erro subestimá-la. (…) O mal tem seu lugar na própria natureza humana.”
Desse modo, Freud e Jung forjaram no mundo moderno uma versão secular do pecado original.
O altruísmo seria uma compensação doentia de nosso desejo de prejudicar
Segundo Freud e seus discípulos, o ser humano manifesta muito pouca inclinação para fazer o bem, e se por acaso vier a nutrir pensamentos altruístas e comportar-se de maneira benévola, não se trataria de altruísmo verdadeiro, mas de um meio de conter tanto quanto possível as tendências agressivas constantemente à espreita em sua mente. A agressividade seria, na verdade, um “tranço indestrutível da natureza humana”. Em “As pulsões e seus destinos”, Freud afirma:
“O ódio, enquanto relação de objeto, é mais antigo que o amor: nos primórdios da origem ele tem sua fonte na recusa do mundo exterior que emite estímulos, recusa que emana do Eu narcísico.”
Para Freud, a moralidade e os comportamentos pró-sociais nasceriam unicamente de um sentimento de culpa e de mecanismos de defesa utilizados pelo ego para gerar as restrições que a sociedade impõe às pulsões agressivas inatas do indivíduo, assim como às exigências do superego.
De acordo com o etólogo Frans de Waal, o argumento dos que pensam que o homem é naturalmente malévolo e agressivo é via de regra este: “(1) a seleção natural é um processo egoísta e maldoso. (2) que produz automaticamente indivíduos egoístas e maldosos, e (3) apenas os românticos com flores nos cabelos pensam de modo diferente”. Darwin, por outro lado, estava convicto de que o senso moral era inato e que foi adquirido ao longo da evolução. Diversos trabalhos de pesquisa apresentados pelo psicólogo Jonathan Haidt em sua obra The Righteous Mind, revelaram que o senso moral se manifesta espontaneamente em crianças mais novas e não é atribuível à influência dos pais, das normas sociais e das “exigências impostas pela sociedade”, como afirmava Freud. O psicólogo Elliot Turiel já havia constatado que, já muito cedo, a criança possui o senso de equidade e considera que fazer mal a outro é repreensível.
Para a psicanálise, ao contrário, o altruísmo não passa de um mecanismo de defesa destinado a se proteger de pulsões agressivas difíceis de serem reprimidas. Sobretudo ninguém deve esofrçar-se para ser altruísta. Conforme Freud:
‘Todos aqueles que querem ser mais nobres de espírito do que sua constituição lhes permite são vítimas de neuroses; estariam em melhores condições de saúde se pudessem ter sido menos bons.”
Para Anna, filha de Freud, o altruísmo se inscreve no âmbito de mecanismos de defesa contra os conflitos interiores. Ele seria principalmente, segundo o Dicionário Internacional da Psicanálise, “um exutório à agressividade” que em vez de ser reprimida seria deslocada para objetivos “nobres”. O altruísmo seria também “um regozijo por procuração em que o conflito se vincularia a um prazer recusado a si próprio, mas que ajudamos os outros a obter”. O altruísmo seria, finalmente, “uma manifestação do masoquismo”, visto que seriam os sacrifícios ligados ao altruísmo o que buscaria antes de tudo aquele que o pratica. No entanto, de acordo com as pesquisas em psicologia, não existe a menor indicação que comprove que a bondade tem origem nas motivações negativas ou masoquistas.
Segundo afirma Freud, quando as pessoas sofrem de doenças infecciosas, a sífilis em particular, no fundo delas mesmas guardam o desejo de infectar os outros, por despeito de estarem doentes enquanto outros estão saudáveis. Se elas se abstêm apesar de tudo de não infectar aqueles que as rodeiam, é em razão da “luta que esses indivíduos desafortunados são obrigados a travar contra o desejo inconsciente de transmitir sua doença a outros: por que deveriam eles serem os únicos infectados a se verem recusados a fazer tantas coisas, enquanto outros estão bem e são livres para desfrutar tudo que quiserem?” Freud parece ter descartado a possibilidade de que se alguém zela por não infectar o outro, não é por ir contra suas tendências fundamentalmente malévolas, mas pela simples razão de estar de maneira sincera preocupado pela sorte de seus semelhantes. Jacques Van Rillaer, professor emérito de psicologia da Universidade de Louvain-la-Neuve, ex-psicanalista, e autor da obra “As ilusões da Psicanálise”, menciona que um de seus professores de psicanálise, Alphonse De Waelhens, afirmava, na época em que Van Rillaer cursava essa formação: “Quando quiserem saber qual é a verdadeira motivação das pessoas, imaginem o pior; com frequência é isso”.
A exacerbação do egoísmo
A psicanálise com frequência se descreve mais como um meio de conhecimento de si próprio do que uma terapia. Ela se opõe a qualquer forma de avaliação global da eficácia de seus métodos, julgando esta abordagem muito simplista (Lacan chega a mencionar “a subversão da posição do médico pelo avanço da ciência”). Mas, como mostra um relatório do Inserm, quando essa eficácia foi avaliada levando em consideração um número suficiente de casos, os benefícios terapêuticos foram julgados quase inexistentes em comparação às terapias comportamentais e cognitivas que comprovaram sua eficácia em um grande número de distúrbios.
Parece até mesmo que o fato de seguir uma terapia psicanalítica leva amiúde a um aumento do egocentrismo e uma diminuição da empatia. Depois de uma pesquisa sobre a imagem e os efeitos da psicanálise realizada junto a uma ampla amostragem de população, o psicólogo social Serge Moscovici concluiu que, na maioria dos casos, “o psicanalisado, arrogante, fechado, dado à introspecção, esquiva-se sempre da comunicação com o grupo”. Quanto ao psiquiatra francês Henri Baruk, ele critica a prática analítica por reforçar os conflitos interpessoais na medida em que o sujeito psicanalisado “frequentemente vê com severidade seus próximos, pais cônjuge, responsabilizando-os por seus males”. Baruk também observa que alguns indivíduos psicanalisados se tornam muito agressivos, são extremamente severos em relação aos outros, acusando-os sem cessar, o que faz deles indivíduos antisociais. A prática psicanalítica parece, portanto, atrofiar nossas disposições para o altruísmo.
Alguns psicanalistas, longe de negar essa orientação egoísta, parecem endossá-la. François Roustang fala de “fazer o outro passar à inexistência”. Jacques Lacan afirma que “pessoas bem-intencionadas são muito piores que as mal-intencionadas”. Pierre Rey, ex-diretor da revista Marie Claire, submeteu-se a sessões diárias com Lacan para tentar se curar de fobias sociais que, segundo ele, nunca diminuíram nos dez anos de “cura”. Ele afirma ter aprendido muito com sua análise, entre outras coisas, o fato que: “Todas as relações humanas se articulam em torno da depreciação do outro – para ser, é preciso que o outro seja menos’”.
Rey não deixa de aplicar suas convicções, como testemunha o seguinte fato: numa noite em casa de amigos, ele ouve dois jovens explicar que Lacan é um perigoso charlatão. “Por cinco minutos”, relata Rey, “segurei-me para não intervir. Em seguida, senti um véu branco obscurecer meus olhos enquanto uma fantástica dose de adrenalina me fez levantar, repentinamente lívido, músculos tensos, rosto petrificado. Apontei a cada um deles um indicador assassino e me ouvi dizer com uma voz trêmula: “Escutem aqui, seus imbecis, prestem atenção… Uma piscada, mais uma palavra, eu mato vocês.” Paralisados, brancos como giz, acho que nem respiravam. Com medo de ter que cumprir minha promessa, dei meia-volta. Eles aproveitaram e saíram de fininho.
É inegável que muitos psicanalistas tratam seus pacientes com benevolência e que há pacientes que comprovam ter sido beneficiados pela cura psicanalítica, mas é preciso constatar, à luz dos escritos e palavras dos fundadores, que, em linhas gerais, a teoria psicanalítica incentiva o egoísmo e deixa pouco espaço ao altruísmo.
“Liberar” as emoções ou “liberar-se” das emoções?
O testemunho de Pierre Rey, como de outros, mostra que a psicanálise dificilmente pode ser considerada uma ciência das emoções. Se não, como conseguiria chegar a tal incapacidade de administrar as emoções destrutivas? Rey relata: “Jorraram de mim numa agitação assustadora gritos bloqueados por detrás de minha carapaça de benevolência cordial. Desde então, todos sabiam aa que se ater com relação aos meus sentimentos a seu respeito. Quando eu amava, para o bem ou para o mal, amava. Quando odiava, para o bem ou para o mal, todos ficavam sabendo”.
Existe aí uma confusão, com sérias consequências, entre liberar as emoções como se soltássemos uma matilha de cães selvagens, ese liberar do julgo das emoções destrutivas e conflituosas, no sentido de não mais ser escravo delas. No primeiro caso, renunciamos a qualquer gestão das emoções negativas e deixamo-las explodir pelo menor motivo, em detrimento do bem-estar do outro e de nossa própria saúde mental. No segundo, aprendemos a libertar-nos de seu poder, sem reprimi-las nem deixá-las destruir o nosso equilíbrio.
A psicanálise nunca recorre à prática de métodos que permitam se libertar gradualmente das toxinas mentais, tais como o ódio, o desejo compulsivo, a inveja, a arrogância e a falta de discernimento, nem de cultivar as qualidades, tais como, o amor altruísta, a empatia, a compaixão, a plena consciência e a atenção.
A psicanálise tem valor científico?
O próprio Freud definia a psicanálise como “um procedimento para a investigação de processos anímicos, que são, de outro modo, dificilmente acessíveis; um método de tratamento de perturbações neuróticas que se funda nesta investigação; uma série de concepções psicológicas adquiridas por tal via, que crescem ao mesmo tempo, paulatinamente, para desembocar em uma nova disciplina científica”. Depois, ela foi apresentada como uma “ciência do individual” pelo psicanalista Robert De Falco, que afirma que “o sucesso da psicanálise no mundo, e seu internacionalismo, resulta da combinação da exigência de um saber científico rigoroso e de um judaísmo que havia rompido com a religião”.
Os filósofos das ciências, os psicólogos e os especialistas das ciências cognitivas são, em sua vasta maioria, da opinião que a psicanálise não pode ser considerada uma ciência válida. Eles chegaram a essa mesma conclusão por diferentes caminhos.
O filósofo das ciências Karl Popper acredita que a psicanálise não pode ser considerada uma ciência, uma vez que uma teoria que continua válida tanto para uma observação quanto para o contrário nunca pode ser levada em consideração. Não podendo ser comprovada nem refutada, constitui apenas uma especulação que não acrescenta nada aos nossos conhecimentos.
Um cientista digno desse nome começa emitindo hipóteses – por exemplo a existência do complexo de Édipo no desenvolvimento afetivo da criança -, para em seguida submetê-las a rigorosos testes experimentais suscetíveis de confirmá-las ou refutá-las. Se a observação mostra que os efeitos previstos pela teoria não se produzem, esta é refutada e deve ser abandonada ou modificada. Assim, o critério de refutação permite distinguir o procedimento científico da pseudociência.
Ora, a psicanálise esquiva-se de qualquer refutação concebível graças a sofismas que lhe permitem ter sempre razão, quaisquer que sejam os fatos observados e os argumentos que se lhe opõem: ela se autoconfirma permanentemente. Se um paciente chega adiantado à sessão, ele é ansioso; se chega no horário, é maníaco; se atrasa, é recalcitrante e hostil. Para dar um exemplo mais específico, como provar ou refutar a pedra angular do edifício freudiano, que é o complexo de Édipo?, questionam os autores do “Livro Negro da Psicanálise”. Isso parece impossível, pois se um menino adora a mãe e teme o pai, a psicanálise dirá que ele é a perfeita ilustração desse processo universal. Se rejeita a mãe estando atraído por seu pai, dirá que ele reprime seu “Édipo”, sem dúvida por medo da castração, ou ainda que manifesta um “Édipo negativo”. Em qualquer situação, a psicanálise sempre tem razão. O psicólogo Adolf Wohlgemuth resumia assim essa posição: “Cara eu ganho, coroa você perde”.
Consequentemente, Popper considera que as explicações dos psicanalistas são tão vagas e imaginárias quanto as dos astrólogos e se aparentam muito mais a uma ideologia do que uma ciência.
Um outro grande filósofo das ciências e das teorias do conhecimento, Ludwig Wittgenstein, ficou inicialmente fascinado pela sofisticação aparente da psicanálise mas, após exame metódico, chega à seguinte conclusão:
“Freud prestou um mau serviço com suas pseudoexplicações fantásticas (precisamente porque são engenhosas). Qualquer tolo tem agora essas imagens na mão para explicar, graças a elas, fenômenos patológicos.”
A especulação intelectual, por mais sofisticada que seja, não poderia exibir-se da confrontação com a realidade, isto é, de uma verificação experimental rigorosa. As “pseudoexplicações fantásticas” abundam nos textos psicanalíticos, como prova aquela sugerida pela famosa psicanalista infantil Melanie Klein que parece ter conseguido um acesso quase sobrenatural ao que acontece no cérebro das crianças de menos de dois anos, que ainda não começaram a falar:
“O objetivo principal do indivíduo é de apropriar-se dos conteúdos do corpo da mãe e destrui-la com todas as armas que o sadismo dispõe. (…) Dentro do corpo da mãe, a criança espera encontrar: o pênis do pai, excrementos e crianças, todos esses elementos sendo assimilados a substâncias comestíveis. (…) Nas fantasias, os excrementos são transformados em armas perigosas: urinar equivale a cortar, apunhalar, queimar, afogar, enquanto as matérias fecais são assimiladas a armas e projéteis.”
Um outro epistemólogo (historiador do conhecimento), Adolf Grunbaum, adotava uma posição diferente da de Popper. Para ele, alguns enunciados de Freud são efetivamente refutáveis, visto que, ao serem examinados, revelam-se simplesmente falsos. Freud afirma, por exemplo:
“A inferioridade intelectual de tantas mulheres, que é uma realidade indiscutível, deve ser atribuída à inibição do pensamento, inibição necessária para a repressão sexual.”
Como destaca Jacques Van Rillaer, ecoando a afirmação de Grunbaum, Freud “enuncia duas leis empíricas que podem ser testadas: a inferioridade intelectual das mulheres seria ‘uma realidade’ (a psicologia científica mostrou que não é verdade); a falta de inteligência seria devida à repressão sexual (duvido que se possa observar, numa ampla amostragem, que, quando mulheres sexualmente muito controladas conseguem se libertar de suas inibições, suas capacidades intelectuais são automaticamente aumentadas)”
Frank Cioffi, professor de epistemologia da Universidade de Kent, adota um terceiro modo de refutação: ele qualifica Freud de pseudocientista pela simples razão de ter publicado falsas alegações para comprovar suas hipóteses. Freud nunca realizou pesquisas sistemáticas envolvendo grande número de indivíduos para testar suas ideias, acreditando que as observações clínicas de alguns pacientes bastariam para comprovar suas teorias. Além disso, as pesquisas históricas mostram que Freud não hesitava em truncar a descrição e as conclusões de suas observações clínicas para confirmar suas teorias. O psiquiatra Henri Ellenberger encontrou no instituto psiquiátrico os documentos relativos à Anna O., a primeira paciente psicanalisada segundo os princípios freudianos. Ela ficou visivelmente pior após a tentativa de cura conduzida por Josef Breuer, e a internaram por vários anos no hospital psiquiátrico em questão. Ora, Freud escreveu que Anna O. Havia sido curada de “todos os seus sintomas” pela psicanálise. Em “Os pacientes de Freud”, Borch-Jacobsen demonstrou, por outro lado, que as terapias conduzidas por Freud resultaram, em seu conjunto, em fracassos.
Tudo isso não teria tanta importância se tal teoria se limitasse ao mundo das ideias, mas o fato de ter se tornado uma prática terapêutia acarretou consequências prejudiciais a muitos pacientes. Um exemplo típico é o do autismo. Nos anos 1950, os psicanlistas, encabeçados por Bruno Bettelheim, responsabilizaram as mães pelo autismo de seus filhos. “Afirmo”, escreve Bettelheim, “que o fator que precipita a criança no autismo infantil é o desejo de seus pais de que ela não exista”. Assim, os psicanalistas passaram quarenta anos tentando “tratar” essas mães (que além do sofrimento por ter um filho autista, sentiam-se culpadas por sua doença), abandonando a criança à sua sorte.
Temple Grandin é professora de etologia na Universidade do Colorado. Ela é também autista. Quando criança manifestou graves sintomas, sua mãe a levou ao consultório de Bettelheim. Este declarou à mãe que ela era histérica, e que sua filha havia se tornado autista porque ela não a tinha desejado. Desesperada, procurou outro psicanalista que lhe explicou: “Em termos freudianos, isso significa que a mãe quer ter um pênis”. A mãe, pessoa equilibrada, que sempre cuidou de sua filha com afeto, fez este comentário humorístico: “Tem muitas coisas que eu gostaria de ter na vida, mas o pênis não está na minha lista”.
De fato, segundo a psicanálise, “a psicose da criança nasceria de um mecanismo de defesa diante de uma atitude de uma mãe incestuosa que, na ausência de falo, levaria a destruir o substituto do falo faltante representado por sua prole”. É possível imaginar algo mais absurdo do que isso?
Na França, de acordo com Franck Ramus, diretor de pesquisa no CNRS – Centro Nacional de Pesquisa Científica, os psicanalistas continuam apoiando-se no questionamento dos pais, particularmente da mãe, no caso da doença de seu filho. Uma delas relata que lhe perguntaram reiteradas vezes: “Você realmente queria seu filho?” Alexandre Bolling, pai de um menino autista de cinco anos, conta: “Um dos psiquiatras que consultamos afirmou que eu era esquizofrênico, o que explicava os distúrbios de meu filho…”. Um psiquiatra de trinta anos conta ter assistido a “cenas alucinantes” quando estagiava como psiquiatra infantil em centros de consultas para autistas: “A atribuição da culpa aos pais é uma realidade. Durante as sessões de debriefing, todos eram qualificados de psicóticos, e os problemas das crianças eram consequência exclusiva da toxidade paterna ou materna”.
Essas teorias foram abandonadas após décadas por todos os pesquisadores e cientistas, para quem o autismo é um distúrbio do desenvolvimento neurológico com forte componente genético. Existem inúmeras formas de autismo e, segundo trabalhos sintetizados por Martha Herbert, da Universidade de Harvard, é possível que o aumento da incidência do autismo nos últimos cinquenta anos esteja em parte vinculado ao uso globalizado de pesticidas e fertilizantes. O que sim sabemos é que essa doença jamais é provocada pela influência psicológica da mãe.
Na Inglaterra e em muitos outros países, 70% dos autistas, tratados com atenção, e não suas mães, frequentam estabelecimentos escolares normais. Somente os casos mais graves são colocados em instituições especializadas. Na França, é o contrário. Apenas 20% das crianças são autistas são escolarizadas e levam uma vida quase normal. As demais carregam o peso da influência do pensamento psicanalíticos nos meios acadêmicos. Recentemente, a Alta Autoridade de Saúde – HAS – concluiu que a psicanálise era “não pertinente” no caso do autismo. Ela recomenda um diagnóstico precoce, exercícios educativos e terapias cognitivas baseadas em instrumentos de comunicação específicos por meio do uso de imagens, jogos ou exercícios de gestão dos comportamentos.
Uma generalização abusiva
De fato existem, de modo anormal, indivíduos egoístas, agressivos e que nutrem diferentes obsessões, mas como nos lembra o psicólogo Paul Ekman: “Freud concebeu sua teoria da natureza humana a partir de uma pequena amostragem de pessoas muito perturbadas. Ao constatar-se uma doença em um certo número de pacientes, não se pode inferir que todos os seres humanos sofram dessa doença”. E acrescenta: “Tomemos como exemplo o completo de Édipo. É provável que alguns indivíduos sofram disso, mas desejar ter relações sexuais com seus pais – e isto desde os cinco anos de idade – não está com certeza, inscrito na natureza humana!”
Podemos comparar um paciente particularmente agressivo a um veículo avariado cujo acelerador ficou preso ao assoalho. A única maneira de manter a velocidade normal é pisar constantemente no freio. Um mecânico pode passar muito tempo para identificar e consertar esse problema, mas estaria errado se afirmasse que “todos os automóveis têm uma pulsão interna que os incitam a acelerar continuamente, a menos que sejam detidos pelo uso do freio”, do mesmo modo que os psicanalistas quando afirmam que devemos de maneira incessante reprimir nossas pulsões agressivas.
Os comportamentos patológicos não podem ser considerados uma simples acentuação doentia dos comportamentos normais, mesmo que às vezes seja o caso. Com frequência, são de natureza diferente, incompatível com os comportamentos normais. Uma pessoa sóbria não está “menos bêbada” que um ébrio, ela simplesmente não está bêbada. Uma pessoa que sofre de tiques nervosos lutará contra esses movimentos involuntários, mas uma pessoa saudável não necessita reprimir a cada instante seus tiques. Para ela, não existe o problema.
Os sucessores de Freud continuaram a evoluir na esfera do egocentrismo
Muitos discípulos de Freud preservaram até os nossos dias a ortodoxia de sua doutrina. Outros voltaram a determinados pontos-chave e contestaram, por exemplo, o instinto de violência ou o postulado segundo o qual todos nossos desejos são ditados pela sexualidade – o que dizer, por exemplo, do desejo de passear na floresta ou visitar um amigo idoso? Mas, ao tentar dar às suas terapias um aspecto mais humano, muito frequentemente eles não fizeram nada além do que promover formas mais atraentes de egocentrismo. Conforme demonstram os psicólogos Michael e Lise Wallach, na maioria das adaptações das teorias freudianas – como as propostas por Harry Sullivan, Karen Horney e, em alguns pontos, Erich Fromm – o egocentrismo continua a reinar absoluto. Preocupadas em poupar o individualismo de nossos contemporâneos, essas terapias deram prioridade à expressão espontânea de si, mesmo que continuem egocentrados.
Esses psicólogos afirmam, em especial, que todas as formas de restrições e obrigações, ditadas pela sociedade ou por normas internas, entravam nossa realização pessoal e nos distanciam de nossa verdadeira identidade. A gratificação sem coerções de nossos impulsos lhes parece constituir uma prioridade. Porém, nesse caso, seria impossível participar de atividades coletivas e de viver em sociedade. Como fazer música ou esporte sem adaptar-se às regras ou sbumeter-se a uma disciplina? Imagine uma orquestra na qual cada músico toque o que lhe aprouver, ignorando o maestro e as partituras musicais. Nada distinguiria então a música de uma cacofonia qualquer.
Na prática, a expressão de si mesmo livre de toda restrição parece mais destinada a impedir o bem da sociedade do que realizá-lo. Conheci uma jovem norte-americana que afirmou: “Para ser realmente eu mesma, para ser livre, devo ser fiel a meus sentimentos e expressar espontaneamente o que sinto e o que melhor me convém”. Ora, a verdadeira liberdade não consiste em fazer tudo o que nos passa pela cabeça, mas em ser dono de si mesmo. Ser livre, para um marinheiro, não significa soltar o timão, deixar as velas ao sabor dos ventos e o barco partir à deriva, mas timonear indo rumo ao destino escolhido. Gandhi sempre dizia nesse sentido que “A liberdade exterior que alcançamos depende do grau de liberdade interior que tivermos adquirido. Se tal for a justa compreensão da liberdade, nosso esforço principal deve ser consagrado a realizar uma mudança em nós mesmos”. Essa transformação, se desejarmos combater as visões debilitantes dos campeões do egoísmo, consiste precisamente em diminuir nosso egocentrismo e em cultivar o altruísmo e a compaixão.
Fonte: Ricard, Matthieu. A Revolução do Altruísmo. Ed. Palas Athenas.
http://www.cienciacontemplativa.org/psicologia/egoismo-psicanalise/

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