VOCÊ, COBAIA - TODO CONSUMIDOR FAZ PARTE DE UM LABORATÓRIO CHEIO DE EXPERIMENTOS,DIVERTIDOS OU PERIGOSOS,DEPENDENDO DO TESTE

Você, cobaia


A questão não é a sua disposição em testar remédios, tratamentos ou a versão beta de um aplicativo. O que estamos falando é sobre você, cidadão-consumidor, se envolver mesmo sem saber nem concordar com uma série de experimentos - que podem ir do divertido ao perigoso

Você é uma cobaia. Mesmo que não concorde ou assine nada que confirme essa condição, ser um consumidor o coloca em tempo integral num laboratório humano cheio de experimentos. Alguns mais perigosos, com consequências que serão reveladas apenas em alguns (muitos?) anos. Outras sem risco e até divertidas, como testar um produto mambembe que evolui a cada versão - com a ajuda de um batalhão de testadores, claro. A diferença é que muitos dessa tropa estão cientes desses processos - até daqueles que envolvem medicamentos. Essas cobaias sabem exatamente o que estão fazendo e por quê. Você não.
Nesse laboratório, você ostenta um relógio inteligente lançado sem metade dos recursos que poderia ter (ficaram guardados para a versão 2.0). Fornece para várias empresas informações a serem usadas sabe-se lá para quê. Alisa os cabelos com químicos que deixam você bem na foto - ou não, se for mais uma vítima de queimadura. E usa eletrônicos, pesticidas, produtos de higiene pessoal e até cosméticos com substâncias sintéticas que podem desregular o sistema endócrino, segundo alerta feito em 2013 pela OMS (Organização Mundial da Saúde).
O estudo ligado à ONU (Organização das Nações Unidas) não especifica quais são esses sintéticos. Se limita a apontar a necessidade de mais pesquisas. No entanto, deixa claro as possíveis consequências para esse alerta, definido como "ponta do iceberg": câncer de mama, câncer de próstata e câncer de tireoide. Entre as crianças, déficit de atenção e hiperatividade, além do mau desenvolvimento do sistema nervoso. "Produtos químicos são cada vez mais parte da vida moderna e neles se baseiam muitas áreas da economia, mas seu gerenciamento doentio desafia as principais metas de desenvolvimento", disse à época Achim Steiner, da ONU.
As empresas sabem disso: seus produtos passam por testes antes do lançamento, muitas vezes só os necessários, mas reações adversas podem aparecer apenas quando usados em larga escala. Há também a incerteza sobre o uso excessivo, tudo junto e misturado, de itens que há algumas décadas não faziam parte de nossas vidas - da comida industrializada à radiação de antenas, passando por um sem número de substâncias hoje consideradas essenciais. Expostas nas prateleiras, ameaças à saúde podem estar na sua casa. O pior: foi você quem as deixou entrar e não está necessariamente disposto a abrir mão de suas vantagens.
Ao menos três documentários recentes abordam esse tema: "Tous Cobayes?", "The Human Experiment" e "Unacceptable Levels" ("Todos Cobaias?", "A Experiência Humana" e "Níveis Inaceitáveis", respectivamente, em tradução livre para o português). O ponto comum entre eles é o tom alarmista, que nos faz considerar trocar a pasta de dente pela cúrcuma de Bela Gil.
Para você sentir o drama, uma edição resumida desses trabalhos abordaria problemas como os efeitos do consumo de alimentos transgênicos, que não foram testados em longo prazo. Falaria sobre câncer, infertilidade e dificuldade de aprendizado, que podem estar associados ao uso crescente de elementos químicos no xampu, no material de limpeza, na maquiagem e nos recipientes de plástico, por exemplo, e contaria com o depoimento de muitos entrevistados, dizendo que esses itens chegam ao mercado sem provar que são seguros para a saúde, mesmo nos níveis de consumo previstos - portanto, não excessivos. E essa seria uma versão resumida, veja bem...
Mas tire o filtro sombrio e considere que esses itens podem, sim, estar livres de riscos. Essa visão é nosso pensamento padrão de consumidor. A questão é estar também ciente da possibilidade contrária. "Tenho certeza que somos usados para testes. Tanto que muitas vezes os órgãos de proteção do consumidor experimentam produtos e mostram que eles não funcionam como deveriam", afirma Regina Parizi, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética.
A especialista reforça haver regulamentação e controle para aquilo que chega ao mercado, mas lembra sempre existir as chamadas "pontas": usuários que apresentam reações até então inesperadas para determinado tipo de produto. Segunda ela, isso acontece até mesmo com medicamentos, pois só quando chega às prateleiras o produto é consumido por diferentes pessoas, nas mais variadas condições. Daí a importância de um controle muito rígido na área da saúde - e a polêmica de um projeto de lei discutido no Senado, que pode trazer mudanças para as pesquisas clínicas realizadas em seres humanos.
Jorge Venancio, coordenador da Conep/CNS (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde), também critica a proposta ao dizer que ela trata a fase 4 - realizada quando o medicamento já está no mercado - como uma etapa sem risco. "Claro que [o risco] existe. Em muitos casos, os problemas foram descobertos justamente na fase 4", afirma. Venancio cita o anti-inflamatório Vioxx (proibido por aumentar o risco de ataque cardíaco) e uma pesquisa de vacina HPV que matou meninas na Índia. Ele inclusive define como "morticínio" as consequências da desregulamentação da ética, entre 2005 e 2012, nas pesquisas no país asiático. "O critério econômico não pode vir na frente da vida", afirma.
Ou seja: até que tudo bem ser cobaia do novo algoritmo do Google, da nova versão do seu pão favorito ou do restaurante que usa iPad como cardápio - mesmo que você não saiba o que está sendo testado e para quê. Pode ser divertido, render likes no Facebook. Mas em outras áreas, muito mais delicadas, vale ser reconhecido oficialmente como um participante de pesquisa: sujeito que conhece o experimento, concorda em participar e sabe quais os reais objetivos dos testes.
Antes que você ganhe uma nova paranoia para chamar de sua e abrace com força o discurso do perigo iminente, saiba que os consumidores não estão totalmente à mercê da indústria. "Qual é o conhecimento mínimo sobre algum produto para que possamos avaliar com pertinência sua segurança? Este parâmetro deverá ser estabelecido pela agência regulatória. E é a altura desta régua que precisa ser regulada: a régua baixa nos torna cobaias involuntárias. A régua alta inviabiliza sua existência", explica o professor doutor Guilherme A. Marson, do Instituto de Química da USP (Universidade de São Paulo).
O posicionamento da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) é categórico. "Nossa prioridade é a segurança. Hoje é tudo muito testado, controlado e estamos mais seguros do que há dez, 20 anos", disse o diretor-presidente Jarbas Barbosa. Portanto, como esperado, a agência considera seguros os produtos registrados por ela, desde que usados conforme as especificações. Um caso em que isso não aconteceu foi com o formol, vendido livremente até 2009, mas não para alisar cabelos. Quando esse novo uso surgiu, causou problemas e a substância foi proibida. Nesse meio tempo, foram muitas cobaias, queimaduras, feridas e até câncer nas vias aéreas.
Mesmo quando não há um novo uso ou indícios de riscos à saúde um produto a princípio liberado pode ser interditado. Isso aconteceu recentemente com todos os lotes de próteses de silicone da maior fabricante de implantes do Brasil. A ação foi motivada após proibição na Europa, onde foram detectadas partículas na superfície de próteses para os seios. Melhor assim do que o contrário: reportagem da Folha de S.Paulo apontou não haver controle rígido nos níveis de agrotóxico usados em frutas, legumes e verduras no Brasil. Quando feita, a fiscalização atinge uma fração pequena de produtos e reprova muitos: um teste de 2014 identificou agrotóxicos proibidos ou além do limite em 31% dos alimentos típicos da cesta básica em São Paulo.
A ideia, cara cobaia, não é desapontá-la. Mas não cabe ao TAB apresentar a lista definitiva de tudo o que pode ser usado com segurança - a essa altura, você deve ter percebido quão complexa é a tarefa. Fosse simples, haveria consenso sobre o forno micro-ondas, as antenas de celular, e aquele estudo da OMS, lá de 2013, teria apontado nominalmente os vilões da saúde. Há também a questão quantitativa: qual a medida para algo usado no dia a dia virar um risco? Marson, da USP, vai além: "Reduzir a discussão às propriedades das substâncias é uma forma de esconder todos os outros interesses envolvidos na existência de um produto. Inclusive reserva de mercado e boicote ao concorrente", afirma. 
Essa constatação do "eu, cobaia" está diretamente ligada ao atual modelo econômico. Há algumas décadas, a oferta era restrita e a durabilidade dos produtos praticamente eterna, se comparadas aos padrões atuais. Só chegava ao mercado algo considerado ideal. "No século 21, o modelo de negócios baseia-se no ciclo de vida a curto prazo. É preciso testar algo rapidamente para lançar na frente da concorrência e ganhar escala", explica Roberto Kanter, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) especializado em varejo, marketing e comportamento do consumidor. Isso não quer dizer que os lançamentos sejam ruins, mas sim que poderiam ser melhores - algo bastante subjetivo, você há de concordar.
É a filosofia do "good enough" (bom o suficiente), que pode vir acompanhada de máximas como "o ótimo é inimigo do bom" e "consertar o avião em pleno voo". "Vivemos na era da inovação. Muitos pagaram caro para experimentar o Google Glass, por exemplo, mesmo sabendo que aquele era um projeto piloto", lembra o economista Samy Dana, também da FGV. Lançado em 2012, os óculos cheios de tecnologia do Google eram comercializados a US$ 1.500 para clientes selecionados. A oportunidade foi então aberta ao público e, em janeiro deste ano, a empresa encerrou as vendas. Anunciou a conclusão da "fase de testes" - sem revelar detalhes sobre novas versões. "Somos cobaias e não vejo problema nisso, desde que tenhamos sempre informações precisas sobre o produto a ser adquirido e suas eventuais limitações", completa Dana.
Essa lógica nos leva a um paradoxo. De um lado, testadores muitas vezes involuntários de produtos e serviços sem padrão de excelência. De outro, essas mesmas pessoas agora ávidas por novidades, que fazem filas em frente às lojas e compram sem pesquisar nem precisar. "É cômodo culpar instâncias superiores ou grandes grupos quando não pensamos nas consequências dos nossos pequenos confortos. Pode ser mais cômodo abrir mão do direito de escolher do que encarar a consequência das escolhas. Ser cobaia tem, portanto, um componente confortável", afirma o químico Guilherme Marson.
Fã de tecnologia, o administrador de empresas Gustavo Vieira, 24, já teve alguns gadgets que acabaram não vingando. Nessa lista aparecem uma câmera Polaroid usada por pouco tempo (ficou difícil encontrar os filmes específicos) e um tablet da Blackberry "que nunca vi ninguém além de mim usando". Hoje usuário de Apple, ele tem um Apple Watch que conversa com seus outros eletrônicos - algo que o tablet mencionado não fazia e, por isso, ficou encostado. "Nunca me vi como cobaia. Como consumidor, meu papel é usar algo novo por interesse em tecnologia e nas vantagens que ela pode me trazer", afirma. No momento, fora a Apple, sua queridinha é uma lâmpada controlada via aplicativos que muda de cor e funciona como despertador. "Ela acende devagar e vai clareando aos poucos até chegar à intensidade máxima. Tenho acordado com mais facilidade", explica Vieira. Durante a semana, a lâmpada pisca às 23h, indicando a hora de dormir.
Claro que a exposição ao risco varia de acordo com o produto. Mas no Código de Defesa do Consumidor a regra é clara e universal: o fornecedor não pode colocar no mercado nenhum produto ou serviço se souber (ou devesse saber) que ele apresenta alto grau de nocividade à saúde ou segurança. Se essa for a natureza do produto, a empresa deve informar sobre os riscos e está sujeita a medidas cabíveis em cada caso. Quando os perigos forem descobertos após o lançamento, o fato deve ser comunicado às autoridades e aos consumidores via anúncios publicitários. Ao usuário é garantido o direito à informação adequada e clara - isso é o que lhe permite decidir quando vale abraçar o papel de cobaia.
Em um post intitulado "Fazemos testes com seres humanos!", o criador do site de namoro OkCupid assumiu o que afirma no título. De quebra, Christian Rudder detalhou algumas das experiências, como esta sobre o poder da sugestão. Para avaliar se o algoritmo funciona ou se apenas "convence" os usuários de que eles combinam, o teste inflacionou os índices de compatibilidade.
Ou seja,o site consegue influenciar a interação entre usuários. Mas as chances de a conversa engrenar são maiores, claro, quando a taxa de 90% é real. 
umar faz mal e você sabe, pois as advertências são obrigatórias em toda embalagem e propaganda. Justo. Com essa informação, o indivíduo fica livre para fazer sua escolha ciente dos riscos - algo que não acontecia na metade do século passado, quando anúncios de cigarro estampavam um joinha de bebês, dentistas, médicos, atletas e até o Papai Noel. Uma coisa é realmente não saber da existência dos perigos. Outra é fingir que não sabe ou não buscar informações sobre aquilo que consome (se você chegou até aqui neste TAB, esperamos que essa opção tenha sido descartada).
Olha só a diferença. Sem ter ideia de que podiam ser manipulados, muitos se indignaram quando veio à tona em 2014 um estudo de contágio emocional feito pelo Facebook. Se a linha do tempo mostrava conteúdo positivo, os usuários faziam postagens no mesmo tom. Caso recebessem informações negativas, essa era a pegada das publicações. Houve uma reação em escala global, pois os usuários foram pegos de surpresa ("somos cobaias do Facebook!"). Os termos de uso mudaram e hoje deixam bem claro o que a rede social (também) faz com seus dados: "Conduzimos pesquisas". E isso com link para a página de descobertas e tudo. Agora não dá mais para dizer que não sabia.
E o Facebook não está só. Em um artigo que deu força ao termo "economia da cobaia", a revista "Forbes" conta como a fabricante de pulseiras de monitoramento Jawbone usou os dados dos clientes para descobrir que as mulheres dormem em média 21 minutos a mais que os homens. Depois, pediu permissão pra incentivar os 40 mil usuários a dormirem mais cedo. Aqueles que aceitaram passaram a ir para cama cerca de 23 minutos antes do habitual. E adivinhe? A Jawbone também não está sozinha e, perto do que você lerá agora, o projeto deles nem parece tão ambicioso assim.
O topo do pódio vai para um laboratório da Universidade de Stanford dedicado à persuasão pelo uso de tecnologia - a ponto de defender que avanços na área poderão promover a paz mundial em 30 anos. Outra aposta do grupo é a influência dos telefones celulares para melhorar a saúde dos usuários, da dieta à vida sexual. O foco dessa ciência chamada em Stanford de "captology" (persuasão + tecnologia) são as mudanças positivas de comportamento - mas o foco pode ser outro, dependendo de quem aperta os botões. Mais do que nunca, pode ser uma boa ideia deixar de concordar com termos de uso que você nunca leu.


Você pode não querer ser manipulado, colocar a saúde em risco, pagar caro por um produto meia boca. Mas quanto está disposto a frear o consumo, limitar o uso da tecnologia, comer de maneira saudável, dedicar-se à leitura de rótulos? E abandonar a gordura trans, aquela amigona do paladar? Esse é um caso clássico - nível hambúrguer e batata frita - de conhecer os malefícios e insistir neles. Liberada e amplamente utilizada no Brasil, a gordura trans será completamente abolida nos EUA em até três anos - o objetivo é reduzir ataques cardíacos associados a essa inimiga das artérias. Sabemos, mas seguimos escondendo o problema embaixo de uma generosa camada de ketchup.
Agora algo tão sofrido quanto dieta: informar-se requer conhecer as manobras da indústria. "No Brasil, a obrigação é falar qual produto tem a partir de 0,2 grama de gordura trans, mas não é estipulado o tamanho da porção. Logo, praticamente todos podem usar o termo 'zero trans' mesmo contendo uma quantidade prejudicial", exemplifica o endocrinologista João Cesar Soares, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Outro exemplo que favorece a confusão é a velocidade de internet: aqueles 10 MB referem-se à taxa de download, não upload. Portanto a conexão será mais lenta se você precisar subir um vídeo. Quer mais? Alimentos geneticamente modificados sem esse alerta no rótulo, como sugere o projeto aprovado em abril pela Câmara dos Deputados (se passar no Senado, a informação só será exigida quando o alimento tiver mais de 1% de transgênicos em sua composição).
Sua ignorância sobre o grande laboratório humano traz benefícios às empresas. "Do ponto de vista psicológico, os testes são mais eficazes assim, pois não há ruídos como medo, receio e vergonha", explica Andrea Jotta, do NPPI (Núcleo de Pesquisa da Psicologia em Informática) da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). "Mas a internet vai na contramão com conhecimento, várias visões sobre um mesmo produto e menos manipulação de quem faz o melhor anúncio no horário nobre", afirma a psicóloga.
Se as empresas nos usam como cobaias, em muitos casos também nos beneficiamos disso. Da mesma forma que elas têm o dever de informar, os consumidores precisam exigir dados e garantias para fazer a melhor escolha - cientes de que decidir, e não apenas deixar que o façam por nós, pode ser trabalhoso. "Não dá pra formatar o disco rígido do mundo e instalar utopias. A realidade está dada e sempre haverá algo a se perder, um preço a se pagar", conclui Marson, da USP. As cartas estão na mesa: cabe a você decidir quando vale a pena deixar o jogo ou pagar para ver.

Juliana Carpanez

Editora do UOL. Não se via como cobaia até escrever esta reportagem. Abandonou o formol nos cabelos, mas segue apegada à crocância da gordura trans. 

tabuol@uol.com.br



Fonte:http://tab.uol.com.br/cobaia/









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