UM UNIVERSO OU MUITOS ? - MARCELO GLEISER



Um universo ou muitos?


Não há dúvida de que físicos teóricos têm uma imaginação fértil. Afinal, somos pagos para imaginar novos cenários que possam ampliar nossa visão de mundo. Um exemplo disso é a teoria da relatividade geral de Einstein, que descreve a atração gravitacional como sendo consequência da curvatura do espaço em torno de um objeto: quanto maior a massa do objeto, maior a curvatura do espaço à sua volta e, portanto, maior a atração gravitacional que exerce sobre outros objetos.
No século 20, como consequência direta da teoria de Einstein, a própria geometria do Universo como um todo tornou-se objeto de estudo da física. Aprendemos que ele é uma entidade dinâmica, em expansão, com galáxias afastando-se mutuamente. É importante lembrar que a expansão do Universo é uma expansão do espaço, devido à sua natureza elástica: as galáxias são carregadas pela expansão como rolhas na corrente de um rio. Consequentemente, ele tem uma história: se passarmos o filme para trás, haverá um ponto no passado onde todas as galáxias, toda a matéria, estavam concentradas num ponto, a singularidade.
É claro que tudo o que existe espremido num ponto não faz sentido. A singularidade vem da falha da teoria de Einstein para descrever uma situação tão dramática. A esperança é que o casamento da teoria com a física quântica resolverá o problema, mas já se passaram quatro décadas e continuamos sem saber. Para complicar, novas teorias do que ocorreu sugerem que a própria noção de universo tem de ser revisada. O nosso pode não ser o único, mas parte de uma entidade chamada “multiverso”, capaz de conter um número enorme de universos.
A ideia está sendo acolhida por muitos cientistas como o início de uma nova era em cosmologia. Por que o entusiasmo? Essencialmente, porque estamos com um problema sério. Não sabemos como justificar o nosso universo: uma geometria plana, uma distribuição de galáxias que parece se repetir em várias escalas como um fractal, velho o suficiente para gerar estrelas, planetas e, finalmente, a vida. Esses fatos são consequência das constantes da natureza, as quantidades que determinam como funciona o Cosmo: a massa e carga das partículas fundamentais (elétrons, quarks), a intensidade das quatro forças conhecidas (gravidade, eletro-magnetismo, e as forças nucleares forte e fraca), a taxa de expansão do Universo, etc.
Com o multiverso, a questão muda: se existem muitos universos, uma enorme variedade torna-se possível. Os valores das constantes da natureza aqui não são os únicos; outros podem ter outros valores. Com isso, o nosso torna-se mais viável, mesmo que raro entre os universos.
O problema com o conceito de multiverso é que ele não é testável, ao menos diretamente. Toda informação que colhemos do Universo é limitada pela distância que a luz pôde percorrer desde o início do tempo (a singularidade). Os outros estão necessariamente fora dessa bolha de informação; não podemos saber se existem. Com isso, temos uma ideia intestável, o que contraria a estrutura da ciência, em que hipóteses têm de ser testáveis. Caso a situação persista, o multiverso existirá apenas na imaginação dos teóricos, por mais atraente que seja como ideia.

 *O autor é  Marcelo Gleiser - Professor de física e astronomia do Dartmouth College, nos EUA. É vencedor de dois prêmios Jabuti e seu mais novo livro chama-se Criação Imperfeita.

(Texto extraído da Revista Galileu - n° 280 de Nov 2014 - Editora Globo)

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