Doutores da agonia
Eles utilizaram humanos como cobaias de pesquisas macabras. Agora estudos dizem que essas experiências guardam informações valiosas para a humanidade.
"Camarada, por favor, peça ao oficial que acabe conosco com uma bala”, suplicou o soldado russo. Depois de 3 horas dentro de um tanque de água gelada, ele já não suportava mais a sensação de congelamento no corpo. “Não espere compaixão daquele cão fascista”, respondeu o colega que dividia o tanque com ele. Quando o cientista responsável pelo experimento descobriu o significado das palavras de suas cobaias, retirou-se para o escritório. Voltou com um revólver na mão. Não para atender ao pedido do soldado, mas para ameaçar seus assistentes na experiência. “Não se intrometam. Nem se aproximem deles!” Passaram-se mais duas horas de agonia antes que o alívio da morte chegasse para os russos. Assim como eles, pelo menos outros 300 prisioneiros dos nazistas foram usados em experimentos destinados a entender os efeitos do frio no organismo – a hipotermia. A maioria não teve a sorte de um final rápido. Ao chegarem ao limite entre a vida e a morte, eram reanimados e expostos novamente a temperaturas baixas.
As descrições acima são apenas um exemplo de como alguns cientistas alemães se adaptaram ao ideário nazista. Eticamente, a ciência produzida na Alemanha entre as décadas de 1930 e 1940 foi repugnante. Os experimentos causaram dor, humilhação e mortes terríveis às pessoas confinadas em campos de concentração – fossem elas judias, ciganas, homossexuais ou qualquer tipo de inimigo do regime. Acontece que os responsáveis por essas “pesquisas” podiam ser sádicos, mas não eram leigos. Muitos foram formados nas escolas mais tradicionais do planeta – antes da chegada dos nazistas ao poder, a Alemanha era um dos líderes mundiais em inovação científica. Metódicos como só pesquisadores alemães podem ser, eles sistematizaram as experiências, coletaram dados, chegaram a conclusões. E geraram informações que, além de inéditas na época, nunca mais foram reproduzidas em testes sérios – afinal de contas, e ainda bem, não é todo dia que aparece alguém propondo jogar ácido na pele de um ser humano para entender como nosso corpo reage à substância.
As pesquisas sobre hipotermia, por exemplo, além de matar centenas de prisioneiros do campo de Dachau, produziram dados que alguns cientistas gostariam de usar em pesquisas atuais. Robert Pozos, diretor do Laboratório de Hipotermia da Universidade de Minnesota, nos EUA, é um deles. Ele estuda como o corpo responde ao frio para descobrir a melhor maneira de reanimar pessoas que cheguem quase congeladas aos hospitais. Mas seu trabalho enfrenta um problema: muitas de suas pesquisas não podem ser concluídas, pois os voluntários podem morrer quando sua temperatura cai abaixo de 36 ºC. A única fonte conhecida de dados sobre pessoas nessas condições são os experimentos nazistas. É ético utilizá-los para salvar vidas? Pozos acha que sim. Mas a respeitada revista médica New England Journal of Medicine se recusou a publicar a pesquisa.
Para enfrentar essa delicada questão, é necessário encarar o legado científico do nazismo, desconhecido até pouco tempo atrás. Estudos recentes, porém, lançaram nova luz em direção ao que sabemos sobre a ciência no período. Afinal, houve experimentos de qualidade no nazismo? O que acontece com a ciência sob um regime tão desumano?
Ciência e nazismo
Planície de Ypres, fronteira entre Bélgica e França, 17 horas de 22 de abril de 1915, 1ª Guerra Mundial. Entrincheirados, soldados do Exército francês observam, atônitos, um inimigo desconhecido se aproximar. Alguns percebem que é impossível combatê-lo e fogem. Outros ficam parados, sem saber como lutar contra o oponente mais letal que já enfrentaram: uma nuvem verde-amarelada de 1,5 metro de altura.
Dez minutos antes, uma tropa especial havia tomado a dianteira do Exército alemão. O Pionierkommando 36 era um batalhão de cientistas com uniforme militar e máscaras protetoras, liderados por um ganhador do Prêmio Nobel de Química, o alemão Fritz Haber. Ao sinal de Haber, foram abertos 730 cilindros, com 100 quilos cada um, de gás cloro em forma líquida. Assim nasceu a nuvem que castigou os franceses. O saldo: 10 mil mortos e 5 mil feridos.
Os cientistas envolvidos no projeto científico-militar alemão eram de primeira linha. Fritz Haber, por exemplo, foi responsável por uma descoberta que não só permitiu à Alemanha prolongar a 1ª Guerra, mas hoje nos permite produzir alimentos para 6 bilhões de pessoas: a técnica de fixação da amônia a partir do nitrogênio do ar serviu tanto à criação de explosivos quanto ao desenvolvimento de fertilizantes baratos. Otto Hahn, outro ganhador do Nobel que liderou um ataque com gás, foi um dos descobridores do processo de fissão nuclear, usado em bombas atômicas e em usinas nucleares. “O Exército alemão se convenceu de que a ciência desenvolveria armas superiores, que compensariam as restrições à produção de armamentos impostas pelo Tratado de Versalhes”, diz Helmut Maier, pesquisador do Instituto Max Planck. “Após a guerra, a elite científica levou o país à liderança nos ramos de balística, química, aviação e construção de foguetes.”
Veterano da 1ª Guerra, Adolf Hitler conhecia o poder da ciência militar – ele foi internado com cegueira temporária após um ataque com gás. E sabia que, se chegasse ao poder, faria da ciência um dos pilares da Alemanha. Mas seu interesse trazia um problema. Ele admirava a ciência, mas não entendia nada do assunto. “Ele seguia seu instinto, seu feeling”, diz o historiador alemão Joachim Fest, um dos mais importantes biógrafos do líder nazista. Na cúpula nazista, a situação não era melhor. Heinrich Himmler, segundo homem na hierarquia, mandava cientistas investigar a relação entre os canhotos e a homossexualidade ou pesquisar a genealogia dos cavalos dos antigos reis nórdicos. “Himmler era a verdadeira encarnação da pseudociência”, diz Michael Kater, autor de Doctors Under Hitler (“Doutores de Hitler”, sem tradução em português).
Hitler não via nenhum problema nessas idéias. Na verdade, ele se considerava um cientista de vanguarda – era um entusiasmado adepto da teoria da higiene racial, doutrina “científica” que prega a eliminação dos genes não arianos do povo alemão. Em seu livro Mein Kampf (“Minha Luta”), de 1925, ele ajudou a disseminar uma metáfora muito útil para o progresso da doutrina: “O povo alemão é um só corpo, mas sua integridade está amea-çada. Para manter a saúde do povo, é preciso curar o corpo infestado de parasitas”. Os parasitas eram os judeus. O que há de científico nisso? Nada. Mas, às vésperas da ascensão de Hitler, já estava difícil discernir o que era ou não ciência. “Desenvolveu-se uma relação simbiótica entre ideologia e ciência. A ciência, nessa época, começou a funcionar como legitimação das idéias racistas do nazismo”, diz Helmut Maier. E era essa mistura insólita que os cientistas teriam de enfrentar, se quisessem permanecer na Alemanha após 10 de janeiro de 1933, dia em que Hitler tomou o poder.
Hitler domina a ciência
Em 6 de maio de 1933, um dos mais importantes cientistas da Alemanha bateu à porta do escritório de Hitler. O führer ouviu com atenção sua tentativa de abrandar a perseguição a pesquisadores judeus: “Há diversos tipos de judeus, alguns valiosos e outros inúteis para a humanidade”, argumentou o pesquisador. Hitler respondeu: “Se a ciência não pode passar sem judeus, teremos de nos haver sem a ciência!” E começou a berrar, falando cada vez mais rápido e tremendo de raiva. O visitante se calou e despediu-se, desapontado. Naquele dia, Max Planck, pai da física quântica e presidente do Kaiser Wilhelm Institute (hoje Instituto Max Planck), não conseguiu o que queria: evitar a demissão do amigo judeu Fritz Haber, aquele que comandara a primeira tropa de gás da história.
Planck foi um dos cientistas que optaram por continuar na Alemanha, mesmo não concordando com os ideais do novo regime. O físico Max von Laue, que costumava sair de casa com um embrulho debaixo de cada braço para não ter de fazer a saudação nazista, tomou a mesma decisão. Acreditando em dias melhores, Planck e Laue encorajavam colegas a ficar no país. Mas nem todos compartilhavam da mesma opinião. “A conduta dos intelectuais alemães como grupo não foi melhor que a de uma ralé”, afirmou o judeu Albert Einstein a respeito da reação de seus pares ao nazismo.
por Texto Rodrigo Rezende da Alemanha
Fonte:http://super.abril.com.br/ciencia/doutores-agonia-446784.shtml?
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