O LÍDER E O MAL - JAIME MOGGI

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O Líder e o Mal 

Jaime Moggi

“Que estrela é aquela, irmão Francisco, tu a conheces? Deve ser um arcanjo, talvez o Arcanjo Gabriel. Ele brilhava desta maneira na manhã que veio a terra para anunciar a virgem. E aquela estrela de brilho intenso, ali mais brilhante do céu [estrela D’Alva]? Aquela é Lúcifer. Lúcifer! – Exclamou o irmão Leão. É mais brilhante que o Arcanjo Gabriel! A mais brilhante do céu! Por quê? Que injustiça! Foi assim que Deus o puniu? Sim – respondeu São Francisco. Não existe pior castigo para quem faz o mal, do que receber o bem em troca do mal. E eu não me espantaria irmão Leão, que lá no fim dos tempos, quando todas estas estrelas tiverem se apagado, Deus tenha reservado um lugar para Lúcifer, ‘o redimido’ ao seu lado no seu coro de anjos.” Lenda Franciscana Será possível liderar sem ter que lidar com o mal? Liderar sem lidar com a crueldade, com a mentira, com a falta de ética, com a inveja, com o ódio, com o autoritarismo e o uso do poder em benefício próprio, em vez do coletivo. É provável que você chegue à mesma conclusão que eu. Não, não é possível. Do ponto de vista filosófico, existem duas grandes maneiras de ver o mal. As religiões tradicionais veem o mal como uma força separada que precisa ser combatida. Outras filosofias negam a existência do mal em si, postulando que ele é uma ilusão, uma distorção do bem ou ausência dele. Não vou adentrar nesse mérito, muito já se escreveu sobre isso. Há alguns anos, em Auschwitz, o Papa Bento XVI perguntou onde estava Deus durante o holocausto, mostrando a perplexidade do homem diante do mistério da maldade humana. Um eco do Cristo na cruz, gritando: “Deus por que me abandonaste?”. Abraham Joshua Heschel¹, diz que a pergunta está errada. Deveríamos perguntar “onde estava o homem?”. Mas, e em sua vida? Já teve contato com o mal? Me lembro do começo da minha carreira em que trabalhava há pouco menos de um mês na área de Seleção de uma empresa. E começaram a aparecer relatórios nas entrevistas de desligamento, nos quais moças pediam demissão porque estavam sendo assediadas pelo gerente. Ele era filho do dono, do presidente da empresa. Jovem e inexperiente levei as entrevistas para meu chefe que também havia chegado há pouco tempo na empresa. Ele as leu e perguntou o que eu achava e o que deveríamos fazer. Respondi que não sabia, nunca havia lidado com algo parecido antes. “Eu também não”, sorriu e disse, “mas na dúvida vamos fazer o certo”. Pegou as entrevistas e foi para a sala do presidente. Voltou uma hora depois e começou a limpeza de suas gavetas. Perguntei o que aconteceu e ele disse que o presidente mandara não fazer nada, que as coisas “eram assim mesmo”. Então ele pediu demissão. Saiu da empresa e, na semana seguinte, também fui demitido. Me lembro do alívio quando me demitiram. Confesso que, desde o primeiro dia nesta empresa, me surpreendi quando entrei no refeitório e vi, no centro do salão, uma mesa isolada servida por garçons, com vinhos e comida diferenciada para os executivos. E em volta dela, toda a empresa, “no bandejão”, com uma comida horrorosa. Acho que neste dia entendi a frase de Lacan. De que “o contrário do amor não é o ódio, o contrário do amor é o poder”. Nunca voltei na tal organização, mas soube que, anos depois, havia sido comprada por um dos meus clientes atuais. Não precisei voltar lá para saber que a mesa isolada não está mais lá. E que o diretor está na mesma fila que todo mundo. Eu conheço os valores deste cliente. A liderança é um campo fértil para o poder sem escrúpulos, de não estar a serviço de algo, além de si mesmo. Como líderes, como lidar com o mal que vemos fora de nós? Talvez seja melhor começar lidando com o mal dentro de nós. Negar que somos capazes de fazer o mal, de ter inveja, de ter agressividade, abusar da confiança, de provocar dor desnecessariamente ou de sermos arrogantes é o caminho certo para duas possibilidades — praticar o mal ou ser manipulado por quem o pratica. Grandes figuras consideradas verdadeiros santos, livres de pecados, por exemplo, foram os motores de algumas das maiores tragédias da história. Ficou famosa uma enquete na internet que propunha a escolha entre dois perfis para liderar o mundo — Um político vindo de família pobre, que era vegetariano, não bebia, não fumava, não tinha casos extraconjugais, amava os animais, foi o primeiro a proibir experiências e testes médicos em cães e outros animais, herói de guerra condecorado. Ou o outro, que nasceu em berço de ouro, mas que bebia um quarto de litro de uísque todo dia, acordava sempre ao meio-dia, fumava como uma chaminé e tinha sido destituído de cargos públicos por duas vezes por incompetência. Claro que estamos falando de Adolf Hitler e Winston Churchill. O mal raramente se apresenta com chifres, rabo e cheiro de enxofre. Todo processo de autodesenvolvimento acontece com a máxima do autoconhecimento. Se você não é capaz de ver o mal em si mesmo, dificilmente será capaz de vê-lo fora. Mesmo em nós, de forma consciente e inconsciente, muitas vezes justificamos nossos atos “questionáveis” como busca da verdade, defesa de valores, etc. A defesa de valores, por sinal, é uma postura típica de quem está envolvido em conflitos por poder e recursos. Há argumentações do tipo “temos valores muito diferentes”. E quando se pede para o interlocutor explicar quais valores são estes, ele não consegue. Na última promoção que você deu a alguém da sua equipe, por exemplo, tem certeza que a fez pelos motivos certos? Quais foram os seus critérios? Não foi por simpatia ou antipatia? Por conforto? Quem você preteriu, quais foram os motivos? O mal interno pode se apresentar numa decisão de liderança como no caso citado. Talvez a pessoa preterida tenha lhe contrariado alguma vez, e, você, sentindo-se ameaçado, toma uma decisão manipulada pelas suas emoções negativas. Na origem do mal está quase sempre o medo. Uma síndrome comum nos líderes é a do não merecimento. Quando não admitem a ninguém que não se acham merecedores, não merecem estar na posição ocupada, não merecem os privilégios. Não se sentem dignos, se sentem como farsantes, mentirosos e temem que a qualquer momento todos vão descobrir que não são tão competentes quanto se dizem ser. Que na verdade não sabem exatamente o que estão fazendo. A psicologia tradicional, baseando-se em um século de prática clínica, afirma que quando negamos pensamentos, emoções e medos, estes acabam assumindo o controle do inconsciente. E então praticamos o mal com os outros ou com nós mesmos. Se você quer uma dica de como lidar com isso, a melhor seria ter alguém com quem pudesse compartilhar emoções e sentimentos. Um terapeuta, um coach, um amigo. Se não for possível, escreva para você mesmo seus medos, pensamentos, sentimentos. Inclusive, aqueles que você acha que não devia ter. É muito mais fácil lidar com o mal que está fora de você, quando há o conhecimento da forma como ele se manifesta. E o melhor mestre está em você mesmo. Já conheci líderes que fracassaram por serem ingênuos. Tinham uma atitude extremamente positiva perante as pessoas e as situações e imaginavam que os outros eram como eles, bem intencionados. Também do ponto de vista moral, cada pessoa está em estágio de desenvolvimento diferente. Caso típico é o do líder que trabalha com um grupo imaturo e o trata como se fosse maduro. Não dura muito e, em pouco tempo, é sabotado pelo grupo². Devemos, sim, esperar o melhor das pessoas. Mas devemos estar atentos aos sinais. Por ignorância, por medo, por uma série de fatores, elas podem ter atitudes moralmente questionáveis. Certa vez um participante de workshop me perguntou que livros ele poderia ler para ser menos ingênuo nos jogos de poder da organização. Eu lhe disse que isso não se aprende em livros, mas, em todo caso, sugeri algumas biografias de políticos como Hitler, Stalin, Bismarck e alguns romances, entre eles, Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, Shakespeare. Se fosse hoje, indicaria que assistisse a série House of Cards. O personagem Francis Underwood, de Kevin Spacey, pode ser um bom professor sobre como o mal pode florescer em pessoas de poder. Nas lendas franciscanas conta-se uma história em que, certa vez, São Francisco e o seu fiel seguidor, o irmão Leão, estavam contemplando o céu estrelado. “Que estrela é aquela, irmão Francisco, tu a conheces?” Deve ser um arcanjo, talvez o Arcanjo Gabriel. Ele brilhava desta maneira na manhã que veio a terra para anunciar a virgem. E aquela estrela de brilho intenso, ali mais brilhante do céu [estrela D’Alva]? Aquela é Lúcifer”. “Lúcifer!”, exclamou o irmão Leão. “É mais brilhante que o Arcanjo Gabriel! A mais brilhante do céu! Por quê? Que injustiça! Foi assim que Deus o puniu?” “Sim”, respondeu São Francisco. “Não existe pior castigo para quem faz o mal, do que receber o bem em troca do mal”. “E eu não me espantaria irmão Leão, que lá no fim dos tempos, quando todas estas estrelas tiverem se apagado, Deus tenha reservado um lugar para Lúcifer, ‘o redimido’ ao seu lado no seu coro de anjos.” Notas 1 – Abraham Heschel, rabino, um dos principais teólogos e filósofos judeus do século XX. 2 – 

Ver o artigo – O desafio do Líder no desenvolvimento do seu time – por Jaime Moggi, no site da Adigo. - See more at: http://www.antroposofy.com.br/wordpress/o-lider-e-o-mal/#sthash.tLWm09u3.dpuf

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