O AMOR ACABA



Se estivesse vivo, Paulo Mendes Campos, autor da crônica O amor acaba, talvez acrescentasse em seu texto: em tempos modernos o amor acaba por WhatsApp, iMessage ou mudança de status de relacionamento no Facebook.

Em 1965, o amor podia acabar “num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio (...) em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar (...) ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas (...) no desenlace das mãos no cinema”...
Se estivesse vivo, Paulo Mendes Campos ( autor das linhas acima) talvez acrescentasse em sua crônica: o amor acaba por WhatsApp, iMessage ou mudança de status de relacionamento no Facebook. A verdade é que nem a genialidade do cronista, poeta e jornalista mineiro - que tenho junto ao peito como um dos escritores da maior predileção - é capaz de dar conta desse mistério: o fim de um amor.
Em sua crônica O amor acaba, presente no livro O amor acaba: crônicas líricas e existências, Paulo Mendes Campos dá conta de fotografar o instante em que as mãos se separam e passam a boiar no oceano do mundo como polvos perdidos. Mas, os motivos? Esses ele demonstra sensibilidade suficiente para não tentar decifrá-los.
De repente porque acreditava, como eu acredito, que quando o amor acontece para valer ele nunca acaba. Em suas palavras: “às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão”.
Desde que li o escritor pela primeira vez, há alguns anos, entendi que havia ali um poeta de ressaca e não apenas um observador atento do cotidiano e suas mazelas.
Seus textos tem um je ne sais quoi de ensaio, artigo, poema, conto. Sua matéria-prima não é a ação, mas a reação.
Enquanto a maioria dos cronistas demonstra interesse pelo alheio, o mineiro descreve a sensação provocada pela aurora: “Como às vezes, ao surgir do dia, o homem se descobre miraculosamente perdoado de todos os crimes, crimes não, de todas as coisas feias que cometeu. Que nem cometeu, que deixou acontecer. Quem nos perdoa, não sabemos. Talvez seja assim: o sofrimento se junta, vai se juntando dentro da gente, lacerando, doendo, até que um dia a dor é tanta que nos pune. Então, ficamos perdoados. Puros, recomeçamos de alma nova, passada a limpo como um exercício de escola”.
A aurora, crônica escolhida pelo organizador Flávio Pinheiro para abrir o livro O amor acaba: crônicas líricas e existenciais (editora Civilização Brasileira), é um sopro e uma mordida.
Outros temas recorrentes no livro de 269 páginas: tédio, Deus, amor, poesia francesa, psicanálise, beleza, antropologia, boêmia, mulheres, etc. Um verdadeiro virado à mineira para paladar nenhum botar defeito.
Aos vinte e três anos Paulo Mendes Campos saiu de sua terra natal, Belo Horizonte, para conhecer o poeta chileno Pablo Neruda no Rio de Janeiro. Acabou ficando. Seis anos mais tarde lançou o primeiro de seus 15 livros, A palavra escrita (poemas).
Traduziu Julio Verne, Oscar Wilde, John Ruskin e contos de Shakespeare. Trabalhou como repórter, redator publicitário e foi diretor da Divisão de Livros Raros da Biblioteca Nacional, além de ter publicado diversas crônicas em revistas e jornais.
Por que é tão pouco lembrado ou conhecido? Porque não fazia politicagem. Não deu atenção aos críticos, aos acadêmicos e à tão almejada notoriedade literária.
Felizmente existem as reedições dos livros, que vez ou outra acontecem, os sebos e a Internet que nos possibilitam correr atrás do tempo perdido e mergulhar no pote de ouro: o lirismo do poeta (quase esquecido) Paulo Mendes Campos.
paulo_mendes_campos8.jpg
RONDÓ DE MULHER SÓ Paulo Mendes Campos
Estou só, quer dizer, tenho ódio ao amor que terei pelo desconhecido que está a caminho, um homem cujo rosto e cuja voz desconheço.
Sempre estive duramente acorrentada a essa fatalidade, amor. Muito antes que o homem surja em nossa vida, sentimos fisicamente que somos servas de uma doação infinita de corpo e alma.
O homem é apenas o copo que recebe o nosso veneno, o nosso conteúdo de amor. Não é por isso que o homem me atemoriza, quando aqui estou outra vez, só, em meu quarto: o que me arrepia de temor é este amor invisível e brutal como um príncipe.
Quando se fala em mulher livre, estremeço. Livre como o bêbado que repete o mesmo caminho de sua fulgurante agonia.
A uma mulher não se pergunta: que farás agora da tua liberdade? A nossa interrogação é uma só e muito mais perturbadora: que farei agora do meu amor? Que farei deste amor informe como a nuvem e pesado como a pedra? Que farei deste amor que me esvazia e vai remoendo a cor e o sentido das coisas como um ácido? É terrível o horror de amar sem amor como as feras enjauladas.
É quando o homem desaparece de minha vida que sinto a selvageria do amor feminino. Somos todas selvagens: são inúteis as fantasias que vestimos para o grande baile. Selvagem era a romana que ficava em casa e tecia; selvagens eram as mulheres do harém, as mais depravadas e as mais pudicas; selvagem, furiosamente selvagem, foi a mulher na sombra da Idade Média, na sua mordaça de castidade; mesmo as santas - e Santa Teresa de Ávila foi a mais feminina de todas - fizeram da pureza e do amor divino um ato de ferocidade, como a pantera que salta inocente sobre a gazela. E selvagem sou eu sob a aparência sadia do biquíni, olhando a mecânica erótica de olhos abertos, instruída e elucidada. Pois não é na voluntariedade do sexo que está a selvageria da mulher, mas em nosso amor profundo e incontrolável como loucura.
O sexo é simples: é a certeza de que existe um ponto de partida. Mas o amor é complicado: a incerteza sobre um ponto de chegada.
Aqui estou, só no meu quarto, sem amor, como um espelho que aguarda o retorno da imagem humana. O resto em torno é incompreensível. O homem sem rosto, sem voz, sem pensamento, está a caminho. Estou colocada nesse caminho como uma armadilha infalível. Só que a presa não é ele - o homem que se aproxima - mas sou eu mesma, o meu amor, a minha alma. Sou eu mesma, a mulher, a vítima das minhas armadilhas. Sou sempre eu mesma que me aprisiono quando me faço a mulher que espera um homem, o homem. Caímos sempre em nossas armadilhas. Até as prostitutas falham nos seus propósitos, incapazes de impedir que o comércio se deixe corromper pelo amor.
Quantas mulheres traçaram seus esquemas com fria e bela isenção e acabaram penando de amor pelo velhote que esperavam depenar. Somos irremediavelmente líquidas e tomamos as formas das vasilhas que nos contêm. O pior agora é que o vaso está a caminho e não sei se é taça de cristal, cântaro clássico, xícara singela, canecão de cerveja. Qualquer que seja a sua forma, depois de algum tempo serei derramada no chão. Os vasos têm muitas formas e andam todos eles à procura de uma bebida lendária.
Li num autor (um pouco menos idiota do que os outros, quando falam sobre nós) que o drama da mulher é ter de adaptar-se às teorias que os homens criam sobre ela. Certo. Quando a mulher neurótica por todos os poros acaba no divã do analista, aconteceu simplesmente o seguinte: ela se perdeu e não soube como ser diante do homem; a figura que deveria ter assumido se fez imprecisa.
Para esse escritor, desde que existem homens no mundo, há inúmeras teorias masculinas sobre a mulher ideal. Certo. A matrona foi inventada de acordo com as idéias de propriedade dos romanos. Como a mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita, muito docilmente a mulher de César passou a comportar-se acima de qualquer suspeita. Os Dantes queriam Beatrizes castas e intocáveis, e as Beatrizes castas e intocáveis surgiram em horda. A Renascença descobriu a mulher culta, e as renascentistas moderninhas meteram a cara nos irrespiráveis alfarrábios. O romancista do século passado inventou a mulherzinha infantil, e a mulherzinha infantil veio logo pipilando.
Os tipos vão sendo criados indefinidamente. Médicos produzem enfermeiras eficientes e incisivas como instrumentos. Homens de negócios produzem secretárias capazes e discretas. As prostitutas correspondem ao padrão secreto de muitos homens. Assim somos. Indiquem-nos o modelo, que o seguiremos à risca. Querem uma esposa amantíssima - seremos a esposa amantíssima. Se a moda é mulher sexy, por que não serei a mulher sexy? Cada uma de nós pode satisfazer qualquer especificação do mercado masculino.
Seremos umas bobocas? Não. Os homens são uns bobocas. O homem é que insiste em ver em cada uma de nós - não a mulher, a mulher em estado puro ou selvagem, um ser humano do sexo feminino - o diabo, a vagabunda, a lasciva, o anjo, a companheira, a simpática, a inteligente, o busto, o sexo, a perna, a esportista... Por que exige de nós todos os papéis, menos o papel de mulher? Por que não descobre, depois de tanto tempo, que somos simplesmente seres humanos carregados de eletricidade feminina?
(O amor acaba: crônicas líricas e existenciais. 2a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 63-65).
imagens: google

Por Mônica Montone é escritora, autora dos livros Mulher de minutos, Sexo, champanhe e tchau e A louca do castelo.

© obvious: http://lounge.obviousmag.org/monica_montone/2014/06/o-amor-acaba.html#ixzz37lVs5Fhm 
Follow us: obviousmagazine on Facebook


Comentários