Jesus
na Índia, uma Breve Análise das Fontes
por Octavio da
Cunha Botelho
(Obs: Para auxílio dos estudantes e dos pesquisadores, este estudo está disponível também, mas no formato .docx, em um layout mais próximo do manográfico e com paginação, a fim de facilitar o trabalho de consulta, de download, de impressão e de manuseio em pesquisa, em:
O santuário Roza Bal em Srinagar, na Caxemira, onde está sepultado Yuz Asaf, quem a tradição local e alguns autores identificam com Jesus |
O ímpeto fantasioso
O ímpeto pela
fantasia é tão incontido nos religiosos que o processo de composição de novas
lendas e mitos não tem fim, bem como o resgate de antigas lendas perdidas continua
a atrair a curiosidade de muitos. Mesmo numa época predominantemente secular,
tal como o século XX, novos relatos fantasiosos sobre as antigas religiões e
seus líderes foram criados com a receptividade dos curiosos, sobretudo daqueles
que procuram versões alternativas que, supostamente, preencham lacunas deixadas
pelas grandes religiões tradicionais. No Ocidente, este interesse é alimentado,
sobretudo, pelos esoteristas, pelos teósofos, pelos rosa-cruzes, pelosnew
agers e por outros, os quais estão sempre abertos e ávidos por novas
revelações, por novos achados e por novas interpretações que satisfaçam os seus
apetites por esclarecimentos suplementares ausentes nas religiões tradicionais,
não importando, na maioria das vezes, o quão fantasiosa a nova revelação possa
ser.
Com respeito ao
Cristianismo, a continuidade do aparecimento de novos relatos, sobre a vida e
os ensinamentos de Jesus, recebeu os nomes de “apócrifos modernos” ou de
“boatos bíblicos” (Goodspeed, 1956). Se estas denominações são procedentes ou
não, trata-se de um assunto discutível. A literatura sobre estas novas
revelações e descobertas é extensa, de modo que o breve estudo abaixo se
limitará aos recentes textos sobre a viagem e a estadia de Jesus na Índia.
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Gravura reproduzindo Jesus no interior de um
templo hindu
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O assunto nunca foi
seriamente encarado pelos acadêmicos. Com isso, não temos literatura acadêmica,
apenas breves avaliações e comentários desaprovadores por estudiosos, os quais
não se deram ao trabalho de aprofundar na questão. Porém, mesmo assim, será interessante
tratar deste assunto aqui, pois embora não seja de interesse acadêmico, provoca
muito reboliço na mídia e na população. Veja os exemplos do alvoroço provocado
por filmes como a Última Tentação de Cristo (1988) e O
Códico Da Vinci (2006), ambos a partir de livros, duas obras que
tratam da sobrevivência de Jesus à crucificação.
A lacuna nos evangelhos canônicos
Os quatro textos oficiais omitem o relato da vida de Jesus dos 12 aos 30 anos
de idade. No máximo, o Evangelho de Lucas apenas menciona que ele foi
levado ao templo na idade de 12 anos (Lucas 2:41), mais adiante é afirmado que
ele inicia seu ministério na idade de cerca de 30 anos (Lucas 3:23), portanto
um salto de 18 anos. Existem alguns evangelhos apócrifos da infância, porém
nada foi registrado da sua adolescência e do início da sua vida adulta.
Esta lacuna deixa a curiosidade em saber da vida do nazareno durante este
período. Os relatos sobre as suas viagens durante este período, sobretudo à
Índia, são contestadas pelos oponentes com base em um episódio, nem tão
esclarecedor, narrado nos evangelhos de Marcos e de Mateus, quando Jesus está
iniciando seu trabalho de pregação e é visto por conterrâneos que se
surpreendem com o seu discurso, então proferem a indagação: “Não é ele o
carpinteiro, o filho de Maria...”? (Marcos 6:03 e Mateus 13:53). Existe uma
diferença na redação destas duas passagens, na de Marcos, Jesus é mencionado
como o ‘carpinteiro’ (gr: tekton; lat: faber), enquanto
na de Mateus, é mencionado como o ‘filho do carpinteiro’ (gr: tektonosuios;
lat: fabri filius). A alegação dos contestadores das viagens é que
Jesus permaneceu em sua cidade, trabalhando como carpinteiro, durante este
período, por isso a familiaridade de seus conterrâneos e a surpresa pela sua
pregação. No entanto, a indagação dos conterrâneos não é suficiente para
assegurar a sua invariável permanência, pois a frase “filho do carpinteiro” (tektonos
uios) deixa uma margem para o fato de Jesus ser conhecido apenas como o
filho de José, o carpinteiro, e não ter sido um carpinteiro de profissão, bem
como a possibilidade de ter estado fora da região por algum período, portanto
não trabalhou o tempo todo como carpinteiro em sua cidade.
Os anos perdidos e a sobrevivência à
crucificação
O período da vida de Jesus omitido nos relatos bíblicos é conhecido como “os
anos perdidos” ou “os anos desconhecidos” (Notovitch, 1916; Dowling, 1947;
Prophet, 1987; Kerster, 2001 e Ahmad, 2003), isto é, a fase dos 12 aos 30 anos,
quando alguns autores alegam que o nazareno esteve com os essênios, ou visitou
a Bretanha, ou viajou pelo Oriente (Índia, Tibete, Egito, Pérsia, Grécia,
Japão, etc.), aprendendo com os sábios ou ensinando ao povo. Outra alegação é a
de que ele não morreu na cruz (Alcorão 4:157 e Ahmad, 2003: 57-62), sendo então
substituído por outra pessoa no momento da crucificação, a qual foi crucificada
em seu lugar, ou também, sobreviveu à crucificação, não chegando a morrer, mas
apenas sofreu um desmaio (Ahmad, 2003: 17), este último caso é conhecido como
“hipótese do desmaio”. Então, em seguida, partiu em viagem para o Oriente, onde
faleceu nestas terras distantes em idade avançada (Ahmad, 2003: passim),
ou até mesmo que Jesus visitou as regiões orientais tanto na sua juventude como
depois da sobrevivência à crucificação (Kersten, 2001). Os mórmons acreditam
que Jesus realizou aparições na América depois da sua morte. Dentre todas estas
especulações, o estudo aqui se limitará à hipótese de sua viagem à Índia, do
contrário este estudo se tornaria muito extenso, em vista do grande número de
relatos delirantes.
O despertar do interesse
O mosteiro de Hemis, Ladak,
Caxemira, onde Notovitch
alegou ter anotado a tradução do manuscrito de A Vida Desconhecida de Jesus. |
O assunto acima estava adormecido até
1887, quando o jornalista russo Nicolas Notovitch, durante uma viagem à Índia,
visitou a região do Ladak, no estado da Caxemira, Índia, onde
predomina a cultura do Budismo Tibetano, por isso oLadak é
apelidado de “Pequeno Tibete”. Após uma fratura na perna, ele teve de ser
assistido por monges do mosteiro budista de Hemis, nesta região,
fato que lhe obrigou a estender sua permanência. Na ocasião, ele foi informado
da existência de um manuscrito desconhecido com o nome de “A Vida do Santo Issa,
o Melhor dos Filhos do Homem” guardado na biblioteca deste mosteiro. Issa é
o nome atribuído a Jesus no Alcorão (3:45 e 5:75). Então, com a ajuda de um
intérprete, anotou as traduções para, assim, publicá-las depois em Paris com o
título de “La Vie Inconneu de Jésus Christ” (A Vida Desconhecida de
Jesus Cristo), em 1894. A edição inglesa apareceu logo em seguida, com o nome
de “The Unknown Life of Jesus Christ”, em 1895 (Notovitch, 1916: 08-9).
O livro, certamente, provocou um alvoroço no meio intelectual. As opiniões se
dividiram entre os que acreditaram na publicação de Notovitch e os que
perceberam nela uma fraude. O primeiro a contestar foi o então prestigiado
orientalista F. Max Müller, no jornal inglês The Nineteenth Century,
em Outubro de 1894, onde ele denunciou a descoberta de Notovitch como uma
fraude, bem como suspeitou até mesmo da visita deste jornalista russo ao
mosteiro de Hemis no Ladak (Kerster, 2001:
10). Outro ataque, desta vez de um professor doGovernment College de Agra,
Índia, J. Archibald Douglas, cuja visita ao Ladak em 1895, o
levou a investigar a autenticidade da descoberta de Notovitch. Seu relato foi
publicado em Abril de 1896 no Orientalischen Bibliografie com
o título de “Documentos provam a fraude de Notovitch”. Outra publicação do The
Nineteenth Century, em 1896, contém a afirmação de J. A. Douglas, durante
sua visita ao mosteiro Hemis, de que o abade, ao conhecer a
publicação de Notovitch, respondeu que “tudo era mentira” (Kerster, 2001:
11).
Em 1956, Edgar J Goodspeed usou o primeiro capítulo de seu livro Famous
Biblical Hoaxes or Modern Apocrypha (Famosos Boatos Bíblicos ou
Apócrifos Modernos) para demonstrar a fraude de Nicolas Notovitch. Mais
recentemente, o conhecido e dedicado pesquisador bíblico Bart D. Ehrman
escreveu: “Hoje não há um único pesquisador reconhecido no planeta que tenha
dúvida sobre a matéria. A história inteira foi inventada por Notovitch, que
ganhou muito dinheiro e uma substancial soma de notoriedade por seu boato”
(Ehrman, 2011: 282-3). Para James R. Lewis, tudo é uma forja (Lewis, 2003:
79s).
Por outro lado, Nicolas Notovitch também teve defensores, naturalmente da parte
de um esoterista, de um místico, e de uma que se autoproclamava vidente
(Kersten, 2001: 01-18; Abhedananda, 1987 e Prophet, 1987: 92-120 respectivamente).
Enfim, somente estas modalidades de pessoas acreditaram em Notovitch. O fato é
que, o manuscrito, do qual Notovich retirou suas anotações traduzidas, nunca
foi mostrado publicamente, nem sequer uma cópia, sendo assim, nunca foi
entregue para o escrutínio de pesquisadores acadêmicos com conhecimento em
Crítica Textual e em Filologia, para a avaliação da sua autenticidade, do seu
significado e da sua credibilidade como documento histórico.
“A Vida Desconhecida de Jesus Cristo”
de Nicolas Notovitch
Agora, deixando de lado a questão se a publicação de Notovitch é autêntica ou
uma fraude, ou seja, se o tal manuscrito realmente existe, se ele esteve no
mosteiro de Hemis, se o tal manuscrito lhe foi mostrado, se ele de
fato anotou as traduções ditadas pelo tradutor, etc., uma vez que a dúvida não
foi esclarecida até hoje, a análise do próprio conteúdo da publicação poderá
ser mais útil para o julgamento da autenticidade.
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Nicolas Notovitch despertou o interesse pela hipótese da viagem de Jesus à Índia |
Notovitch afirmou que a sua
publicação de “A Vida Desconhecida de Jesus Cristo” não é uma tradução integral
do manuscrito que lhe foi mostrado no mosteiro de Hemis, mas sim
uma coletânea de notas que ele efetuou conforme o tradutor lhe foi ditando.
Estas anotações em algumas passagens coincidem e em outras divergem dos relatos
do Antigo e Novo Testamentos. Com respeito a Jesus, chamado de Issa neste
texto, ele já era um admirado pregador na idade de treze anos, quando sua casa
era frequentada por ricos e nobres, os quais disputavam o jovem Issa(Jesus)
como genro (Notovitch, 1916: 106-7). Mas Issa não se
interessou por este destino e, clandestinamente, deixou a casa dos pais para,
na companhia de mercadores, viajar em direção aSindh (Índia), para
“se aperfeiçoar na divina palavra e estudar as leis dos grandes Budas” (idem,
p. 107). Chegando lá, ele primeiro esteve com os adoradores do deus Jaina (os
jainistas não adoram nenhum deus), mas logo em seguida os abandonou e se
dirigiu para a província de Orissa(nordeste da Índia). Lá encontrou
os brâmanes, os quais lhe ensinaram a ler e a compreender os Vedas (os brâmanes
nunca ensinavam os Vedas aos estrangeiros no passado), a realizar curas pela
oração e a expulsar demônios. Ele permaneceu seis anos em algumas cidades,
inclusive Benares, na companhia dos vaishyas e dos sudras,
as castas mais baixas do Hinduísmo (idem, p. 108). Então, Issa passou
a ensinar o que tinha prendido dos Vedas aos membros das castas mais baixas, o
que provocou a imediata ira dos brâmanes de dos kshatriyas (as
castas mais altas), uma vez que a lei hindu (Dharma Shastra) restringe o
ensino védico aos vaishyas e proíbe totalmente aos sudras.
Em seguida, Issa (Jesus) negou a divina origem dos Vedas e dos Puranas(os
pesquisadores ainda não têm certeza se os Puranas já tinham
sido compostos naquela época, sobretudo na forma em que se apresentam hoje),
bem como desestimulou a adoração aos deuses hindus e começou a fazer uma
pregação com base na doutrina bíblica, falou até do Juízo Final aos vaishyas e
aos sudras (para quem conhece o Hinduísmo, esta seria, se
fosse verdade, uma cena cômica).
Ao saberem deste discurso de Issa, os brâmanes ordenaram que ele
fosse assassinado (essa reação não é comum na história do Hinduísmo). Porém,
antes disto, Issa ficou sabendo e fugiu para o Nepal, onde
aprendeu a língua Páli e estudou os Sutras (sermões) de Buda
(idem p. 113) – ainda é dúvida se a língua Páli era conhecida naquela época no
local. Depois deixou esta região em direção ao Ocidente, onde continuou
pregando em seu caminho até chegar de volta à Israel com 29 anos de idade
(idem, p. 123). Na passagem pela sua terra natal (idem p. 123-46), alguns
episódios coincidem e outros divergem do Novo Testamento. Seria muito extenso
mencioná-los todos aqui, porém os mais curiosos são os fatos que Issa também
é crucificado e a tumba é encontrada vazia depois de três dias, mas não por
Maria Madalena, e sim pela multidão (idem, p. 146), então o texto termina aqui.
De maneira que não menciona a ressurreição e nem as aparições póstumas de Issa aos
discípulos. Bem, se o relato acima não é crível, é, pelo menos, cômico em
alguns trechos.
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O templo de Jagannatha em Puri, no estado de
Orissa, Índia; a alegação de que Jesus esteve aqui é anacrônica |
Outro livro sobre a viagem de Jesus à
Índia, nesta mesma fase da sua vida, é a fantasiosa obra de Levi Dowling “The
Aquarian Gospel of Jesus the Christ” (O Evangelho Aquariano de Jesus,
o Cristo), primeira edição em 1908, com a diferença que este não foi escrito a
partir de algum manuscrito antigo, mas sim de experiências de clarividência. Em
linhas gerais, o trecho sobre a viagem a Índia (p. 47-65) ora coincide ora diverge
da narrativa do livro de Notovitch, com alguns acréscimos ainda mais cômicos e
a especificação de mais detalhes. Afirma-se aí que Jesus esteve e estudou em Jagannath,
na cidade de Puri, no estado de Orissa, Índia, um
templo Vishnuista do Hinduísmo, famoso por seu festival anual da carruagem (Ratha
Yatra). Este relato é tão absurdo que, segundo a história e as pesquisas
arqueológicas, este templo só foi construído durante a dinastia Ganga Oriental
(séculos XI-XV e.c.), mais precisamente, iniciado pelo reiAnanga Bhima Deva em
1174 e.c. e finalizado em 1198 e.c., portanto o templo ainda não existia na
época de Jesus.
Jesus na Índia após a crucificação
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H. Mirza Ghulam Ahmad (1835-1908) foi o principal divulgador da identificação de Yuz Asaf e Jesus |
Outro momento que é alegado que Jesus
esteve na Índia, mas não na fase dos 12 aos 30 anos de idade, como tratado
acima, e sim no período após a crucificação, com o argumento que ele sobreviveu
à crucificação. A tradição de que ele não morreu na cruz é antiga, uma das
fontes mais antigas é a seguinte passagem do Alcorão 4:157 “e disseram: Nós
matamos o Messias, Jesus, o filho de Maria, o Mensageiro de deus. (Quando na
verdade) eles não o mataram, nem o crucificaram, embora pareceu assim para
eles. Aqueles que discordaram sobre ele (se morreu ou não) estão em dúvida, sem
nenhum conhecimento, somente suposição, eles certamente não o mataram” (Haleem,
2005: 65). Ainda na tradição islâmica, H. M. Ghulam Ahmad menciona alguns Hadiths (ditos
de Maomé), da coleção conhecida como Kanz-ul-Ummal, de que Jesus
viveu até a idade avançada de 125 anos, viajou por muitas partes do mundo e
ficou conhecido como o “profeta viajante” (Ahrmad, 2003: 62-3). Este autor, que
é o fundador do movimento islâmico reformista Ahrmadiyya Muslim Jamat,
é um dos primeiros e mais ardentes defensores da tese de que Jesus sobreviveu à
crucificação, viajou para a Índia para encontrar as tribos de Israel e, o que é
também surpreendente, do argumento de que o profeta Yuz Asaf,
enterrado no santuário de Roza Bal, na cidade de Srinagar,
Caxemira, é o próprio Jesus. Ele foi o principal divulgador desta tradição de Roza
Bal, através do seu livro, publicado em 1908 na língua urdu “Misih
Hindustan Mein”, depois publicado em inglês pela primeira vez em 1944, com
o título de “Jesus in India”.
H. Mirza Ghulam
Ahmad influenciou outros autores, inclusive esoteristas ocidentais, os quais
acreditaram na sua argumentação. Em suma, para ele Jesus sobreviveu à
crucificação, viveu na Índia por muitos anos, que ele é Yuz Asaf e
está sepultado no santuário de Roza Bal emSrinagar,
Caxemira.
Jesus no Bhavishya Purana
Os Puranas são textos em sânscrito que fazem parte de uma
coleção de contos dos tempos antigos da Índia. Estão entre as mais importantes
e influentes escrituras do Hinduísmo. Existem 18 Puranas principais,
conhecidos como Maha Puranas (Grande Puranas), e o Bhavishya
Purana está entre eles. Diferente dos demais, o Bhavishya
Purana trata, além dos habituais tópicos comuns nos outros puranas,
de profecias sobre o futuro (bhavishya), portanto, em alguns trechos, é
um purana profético.
O que existe de excepcional neste purana é a referência a
Jesus, mencionado como Isha Putra (filho de deus), a partir
dos termos Isa e Issa dos textos islâmicos,
no episódio do diálogo com o rei Salivahana (também conhecido
como Gautamiputra Shatakarni), pertencente à dinastia Shatavahana,
que reinou de 78 a 102 e.c. (portanto contemporâneo com o período da
sobrevivência de Jesus à crucificação), cuja capital do reino era Ujjain,
no atual estado de Madhya Pradesh, na Índia Central. Este
diálogo aparece no Pratisarga Parva do Chaturyuga
Kanda do Dwitiya Adhyayah, no capítulo 19, versos 17-32.
Abaixo um resumo deste trecho.
O texto inicia informando que uma vez um poderoso rei, chamado Salivahana,
alcançou muitas conquistas, o qual subjulgou osShakas, os Cinas,
o povo de Roma, os descendentes de Khuru e o povo de Bahikaus. Em
seguida estabeleceu as fronteiras do país dos arianos e a dos Mlecchas (estrangeiros
impuros). O país dos arianos era conhecido como Sindusthan, o qual
se transformou em um grande país (versos 17-21).
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Moeda cunhada com o perfil do rei Salivahana
(r.78-102 e.c.), com quem Jesus teve um diálogo, tal como narrado no Bhavishya Purana |
Uma vez o rei Salivahana dirigiu-se
para o oeste, na direção de Hunadesha(região perto da montanha Kailasa no
Tibete Ocidental). Aí, o rei avistou um auspicioso homem que vivia numa
montanha. A pele deste homem era dourada e suas roupas brancas (verso 22).
Então, o rei lhe perguntou: “Quem és tu, senhor”? O Homem respondeu: “Você
deveria saber que eu sou Isha Putra, o filho de deus”, e completou:
“eu sou filho de uma virgem” (verso 23). “Eu sou o expositor da religião dos Mlecchas e
eu me prendo estritamente à verdade absoluta”. Ao ouvir isto o rei indagou:
“Quais são os princípios de acordo com sua opinião” (verso 24)? Após ouvir esta
pergunta deSalivahana, Isha Putra (Jesus) disse: “Ó
rei, quando a destruição da verdade ocorreu, eu,Masiha, o profeta, vim
para este país de um povo degradado, onde não há regras e leis. Então, ao
encontrar esta temerosa condição irreligiosa dos bárbaros, a qual se espalha
desde o país dos Mlecchas, eu decidi assumir o papel de profeta
deste povo” (versos 25-6). Então, em seguida, Isha Putra (Jesus)
expôs os princípios da sua religião ao rei, através de tópicos da religião
hindu (versos 27-9). No fim do discurso (verso 30), Isha Putra afirma
que se tornou o Isha Masiha (Jesus, o Messias).
Após ouvir estas comoventes palavras e prestar reverência a aquele homem, o
qual é adorado pelos bárbaros, o rei humildemente pediu a ele para permanecer
na terra horrível dos Mlecchas (estrangeiros impuros).
Primeiro é preciso esclarecer que o Bhavisha Purana é um texto
cercado de desconfianças, uma vez que, das quatro edições disponíveis
atualmente, nenhuma coincide uma com a outra em muitos pontos. Por isso,
Maurice Winternitz observa que “o texto preservado até nós em forma manuscrita
certamente não é a antiga obra, a qual é citada no Apastambiya
Dharmasutra” e que Th. Aufrecht o “tem exposto como uma fraude literária”
(Winternitz, 1990, 541). As fraudes não são difíceis de serem percebidas,
pois se mostram através de clamorosas falhas históricas e anacrônicas. Logo no
início é afirmado que o rei Salivahara (r. 78-102 e.c.)
derrotou os Shakas, os Cinas (chineses), o povo de
Roma, os descendentes de Khuru (os persas) e o povo de Bahikaus (bactrinianos-gregos).
Historicamente falando, dos povos relacionados, o rei Salivahana (Gautamiputra
Shatakarni), na verdade, derrotou apenas os Shakas(Keay, 2000,
131). Os outros povos derrotados pelo rei Salivahana, conhecidos
na história, são os Yavanas e os Pahlavas, porém
não são mencionados no texto em questão. Não existe nenhum registro na história
indiana no qual os chineses travaram uma batalha com os indianos no passado.
Também, os indianos nunca guerrearam com os romanos, apenas com os gregos, na
época de Alexandre, o Grande. Ademais, não existe prova de que os gregos
chegaram até a região de Ujjain, a capital Shatavahana na
Índia Central, a ocupação grega na Índia se limitou à região noroeste.
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Jesus na posição de meditação, bem no estilo yoga |
Ainda mais, existe uma forte suspeita
de que este trecho do Bhavishya Purana seja uma interpolação
acrescida por missionários cristãos, durante o período da ocupação britânica na
Índia, com o objetivo de converter os hindus das classes mais instruídas, uma
vez que sabemos que alguns sacerdotes aprenderam a língua sânscrita, e esta foi
uma estratégia para tentar aproximar o Cristianismo do Hinduísmo e,
consequentemente, com isso, facilitar as conversões. A pista para esta suspeita
é o fato de que todas as edições existentes deste texto são do período a partir
da colonização britânica. Outra indicação é o fato de que, os tópicos dos
puranas são geralmente repetidos em vários puranas, às vezes
alterando apenas os personagens ou pequenas mudanças na redação, enquanto que,
este episódio sobre Isha(Jesus) não aparece nos demais puranas,
somente no Bhavisya Purana, então a suspeita de que seja uma
interpolação por missionários cristãos na Índia. O pedido do rei Salivahana para
permanecer na região dos Mlecchas, no final do relato, após se
comover com a exposição deIsha Putra (Jesus), sinaliza bem para
isto.
Outra curiosidade é a diferença entre as quatro edições conhecidas, uma tem 5 capítulos, outra tem 4, uma outra tem 3 e ainda uma outra tem apenas 1 capítulo. Também, o conteúdo em cada uma das 4 versões diverge em muitos graus, algumas têm mais versos, enquanto outras têm menos, embora todas elas mencionam Jesus (Isha Putra), porém, com redações diferentes. Aqui foi utilizada, para este estudo, a edição da Venkateswara Press, Mumbai, 1917.
Outra curiosidade é a diferença entre as quatro edições conhecidas, uma tem 5 capítulos, outra tem 4, uma outra tem 3 e ainda uma outra tem apenas 1 capítulo. Também, o conteúdo em cada uma das 4 versões diverge em muitos graus, algumas têm mais versos, enquanto outras têm menos, embora todas elas mencionam Jesus (Isha Putra), porém, com redações diferentes. Aqui foi utilizada, para este estudo, a edição da Venkateswara Press, Mumbai, 1917.
A exposição dos princípios da
religião dos Mlecchas por Jesus (Isha Putra) ao reiSalivahana (versos
27-9) parece uma pregação proferida pela boca de um guru hindu, com tópicos
tais como: prescrição da prática de japa (repetição de mantras),
menção do Surya Mandala (diagrama do deus Sol para adoração
dos hindus) e da dhyana (meditação).
Enfim, para encerrar, se para um cristão tradicional a ideia de uma vida de
Jesus sobrevivendo à crucificação, portanto sem ressurreição, já é percebida
como um desmoronamento da fé cristã, imagine então o choque que será ao saber
de um Jesus pregando doutrinas e prática hindus.
Obras consultadas
ABHEDANANDA, Swami. Journey into Kashmir and Tibet: with the
Life of Jesus by Nicolas Notovitch. Calcutta: Ramakrishna Vedanta
Math, 1987.
AHMAD, H. M. Ghulam. Jesus in India: Jesus’s Deliverance from
the Cross & Journey to India. Tilford: Islam International
Publication, 2003, (1st edition, 1908).
BHAVISHYA MAHAPURANA (Sanskrit Edition). Mumbai: Venkateswara Press,
1917.
DOWLING, Levi H. The Aquarian Gospel of Jesus the Christ.
London: L. N. Fowler & Co. Ltd, 1947 (first published, 1908).
EHRMAN, Bart D. Forged: Writing in the Name of God. Why the
Bible’s Author’s Are Not Who We Think They Are. New York:
Harper/Collins, 2011.
GOODSPEED, Edgar J. Famous Biblical Hoaxes or Modern Apocrypha.
Grand Rapids: Baker Book House, 1956.
GREEN, Joel B. Crucifixion em The Cambridge
Companion to Jesus. Markus Bockmeuhl (ed.). Cambridge: Cambridge
University Press, 2001, p. 87-101.
HALEEM, M. A. S. Abdel (tr.). The Qur’an. Oxford/New York:
Oxford University Press, 2005.
KEAY, John. India: a History. London: HarperCollins
Publishers, 2000.
KERSTEN, Holger. Jesus Lived in India: His Unknown Life Before
and After the Crucifixion. New Delhi: Penguin Books, 2001.
LEWIS, James R. Legitimating New Religions. New Brunswick: Rutgers University Press, 2003. p. 73-88.
LEWIS, James R. Legitimating New Religions. New Brunswick: Rutgers University Press, 2003. p. 73-88.
NOTOVITCH, Nicolas. The Unknown Live of Jesus Christ.
Chicago: Indo-American Book Company, 1916, (primeira edição francesa, 1894).
PROPHET, Elizabeth Clare. The Lost Years of Jesus: Documentary
Evidence of Jesus’ 17-years Journey to the East. Gardiner: Summit
Publications, 1987.
WINTERNITZ, Maurice. A History of Indian Literature, vol. I. Delhi: Motilal
Banarsidass, 1990.
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