O PAPEL DA POESIA : CONSTRUIR MUNDOS ?

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Qual o papel da poesia? Talvez nenhum - se o papel estiver relacionado a valor ou utilidade. A poesia, como qualquer obra de arte, não serve para nada, além de construir mundos.
 
Muito perigosa se mostra a discussão acerca do papel da poesia na sociedade atual. Os perigos, provavelmente, decorrem do fato de, ao se dizer sobre “papel” logo apontar para o caminho de “função” e, mais adiante, ou mesmo bem ao lado, chegarmos em “utilidade”. A utilidade da poesia, como a de qualquer obra de arte, sem dúvida escorre bem ao longe da prática, digo, da utilidade prática – não serve a poesia para construir casas, muito menos para segurar corpos, como cadeiras, ou mãos e pratos, como uma mesa. As casas, cadeiras e mesas construídas em versos não desprendem do papel em objetos que se podem tocar, guardar, proteger. O papel da poesia é justamente esse: construir casas, cadeiras, mesas, até mesmo cidades, que destoam daquelas que estamos acostumados a observar no cotidiano – usa-os, sim, mas os que conseguem encurtar a distância entre esses objetos (os dos versos) e o mundo material.
Qual seria, nessa conjuntura, o papel da poesia no ensino fundamental e médio? Construir, ou refletir, mundos. Devemos ter em mente qual a função da poesia, principalmente, no ensino médio que é, mesmo que por vezes alguns neguem, preencher currículo e pré-requisitos para programas de vestibulares. Daí, então, parte a nova questão: como é a poesia tratada no vestibular? Sabemos da grande falta de respeito, em todos os sentidos da palavra, com o gênero poético nesses concursos. Usa-se, em sua maioria, o texto como simples pretexto de se abordar questões gramaticais e, mais raramente, semânticas. O texto, duro no papel, poderia facilmente ser substituído por uma propaganda comercial ou mesmo uma receita de bolo de fubá, ou (por que não?) uma bula de remédio – não que estes textos não sejam importantes, alto lá, mas só estão aqui servindo como exemplo de como o gênero lírico não vem sido tratado de maneira adequada, com suas devidas especificações. Outro ponto é o conhecimento de autores. Ao lermos editais recentes, observamos que cobra-se em algumas instituições, nas provas de literatura, assuntos como Drummond, Bandeira, etc. Caímos, então, no ensino biográfico, que, em detrimento da obra, preza-se pela vida do poeta. Sabe-se que Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, o que o levou a escrever “Confissão do itabirano”, mas pouco compreende-se a função deste poema fora do próprio poeta, como se a poesia não falasse por si, como se estivesse costurada qual etiqueta (eu-etiqueta?) eternamente nos ombros, que suportam o mundo (ou não) de Drummond. O papel do professor, portanto, deve passar por este viés, afinal a escola, como instituição, ainda preserva os valores materiais da sociedade, e passar no vestibular e ingressar em um curso superior é o objetivo de muitos, se não todos, que frequentam as salas de aula. No entanto, não se deve encerrar aí o ensino de poesia.
Um bom professor de literatura deve prezar pela poesia como arte em si, sabendo medir as demandas das instituições de ensino superior com a própria leitura do texto poético. Antes que vire máquina, folha em falso, letras duras no papel, carteira de identidade, o poema precisa ter autonomia. Autonomia essa que também deve ser (re) inserida nos próprios alunos, na leitura dos textos. Mas como isso surge? Através da formação de leitores e não apenas de um exército preparado para prestar o vestibular. Antes que se esgote em provas, a poesia deve ser aproximada do cotidiano dos que as leem, para que seja possível a integração desses mundos, para que sobreviva ao tempo, às tempestades acadêmicas. Daí surge o papel da poesia. “Um poema, como uma obra de arte é uma coisa que se acrescenta ao mundo”, diz Ferreira Gullar, e este “acréscimo” é o responsável pelo prazer da leitura, pelo interesse pelo texto, pela verdadeira concepção de poesia. Procura-se, desse modo, reviver ou acordar essa contribuição na vida dos alunos do ensino médio e, também, fundamental.
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Ler poesia deveria equivaler a ir ao supermercado: encher uma sacola de coisas que se deve ter em casa, para manter sua existência. Colocar um texto poético em sala de aula deve também incluir essa medida: encontrar o ponto que o texto mantenha a existência do leitor: o poema é humano, fala de coisas humanas, mesmo que seja por metáforas, e nós, ditos humanos, interagimos e trocamos vivências com ele. Cabe ao professor mostrar aos alunos essa troca. “Confidência do itabirano” não apenas reflete a condição de Drummond, paralisado pela vontade de amar, mas de muitos outros que se sentam nas carteiras, paralisados pela vontade de estar fora de sala de aula, mas possuem metas, que não sempre as suas, que devem ser cumpridas (como passar no vestibular). Cada aluno, como cada professor, possui em si sua própria Itabira, que mesmo que não uma cidade, mesmo que não a própria cidade, existe, de aço, como fotografia na parede ou mesmo como uma pinta, uma mancha de nascença, na pele. De que nos valeria estudar Drummond se, nesse poema, pularmos o que dele existe em cada um, e insistirmos no modelo plástico, corrosivo? O resultado, sem nos esforçar muito, pensaríamos: um crescente, e honesto, desinteresse por parte dos “leitores” – que apenas veem de fora marcas de um mundo, o qual não pertencem, que é exclusivo do senhor Carlos – itabirano de nascença, funcionário público no Rio de Janeiro.
Não se deve, volta-se a essa questão, abandonar o estudo do poeta, visto que é importante sua contribuição na literatura, é importante seu reconhecimento, é importante que os alunos passem no vestibular. Mas importância também deve se dar ao texto que sobrevive ao tempo. Qual a função, então, da poesia no ensino médio e fundamental? Construir mundos, não apenas carreiras. E esses mundos se constroem através do autoconhecimento. “(...) o poema nos fala, nos constitui porque fala de coisas humanas e ajuda a compor o universo humano, o qual necessitamos para viver”. Enxergar a poesia fora da caixa, fora do cânone, é o passo principal: entendê-la como diálogo, como coisa da vida e aproximar a vida de cada um à vida que surge (e não se encerra) nos versos. Nessa medida, o texto poético vive, como vive os que o leem e, entendendo e lendo (verdadeiramente lendo) o poema desta forma, a primeira (a do vestibular) também entra, como consequência – com uma fórmula que se decora. O aluno chega na prova e se depara com um Drummond, mas também consigo mesmo e, embora reproduza cartilhas, possui mais propriedade de escrever sobre algo que conhece. De um lado, constrói respostas planejadas que agradam a banca e o jogam para dentro da instituição de ensino, de outro, constrói cadeiras, mesas, casas, cidades, mundos.
Referências:
GULLAR, F. In: FARIA, A. Anos 70 poesia e vida. Juiz de Fora: UFJF, 2007
ANDRADE, C. D. “Confidência do itabirano”. In: ______. Sentimento do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2006.

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