AMANHECER DA SABEDORIA BUDISTA

 
Há muitos e muitos anos, o rei de um país distante andava triste. Um de seus conselheiros sugeriu que ele usasse a camisa de uma pessoa feliz para se tornar feliz também. A procura começou, mas parecia difícil encontrar alguém capaz de estar sempre alegre e contente.

Finalmente, os emissários reais ouviram falar de um homem simples, que morava do outro lado da montanha, e foram encontrá-lo. Ficar...
am surpresos ao vê-lo, trabalhando sem reclamar, sorrindo ao recebê-los. Conversaram, e ele concordou em ver o rei.
Na sala do trono, o rei tristonho aguardava, já sem esperanças. Talvez não existisse um ser verdadeiramente feliz. Entrevistara tanta gente. Sempre havia um pedido, uma reclamação, uma tristeza secreta embutida em alguma prega da memória ou da ambição. Será que não haveria na Terra uma criatura que sorrisse sem malícia, que falasse sem nenhuma intenção?
Os arautos reais anunciaram a chegada da comitiva. O rei se aprumou no trono, andava cabisbaixo. Os ministros estavam cansados de convidar artistas e já tinham trocado mais de 15 "bobos da corte".
De bobos eram chamados os que deveriam fazer a corte rir. Palhaços. Geralmente, pessoas muito sábias, cuja intenção era alegrar e até mesmo aconselhar, de maneira sutil e risonha, nas decisões finais. Conhecedores dos corações e das mentes de seus senhores, sabiam segredos íntimos. Entretanto, suas cabeças sempre dependiam das risadas que tiravam dos soberanos. Os bobos daquela corte não conseguiam do rei mais do que um sorriso.
O rei sentou-se e viu com surpresa o homem entrar. Era grande, truculento e estava suado. Sorria ao reverenciar o monarca ali assentado. "Aproxime- se! Você é uma pessoa feliz?", perguntou o rei. O homem respondeu que sim. "Você veio ao meu castelo, pode falar comigo. Há alguma coisa que o incomode, alguma tristeza ou problema, alguma reivindicação, alguma reclamação, algum ódio do passado, algum rancor guardado?", continuou o monarca. O homem disse: "Não, majestade! Respiro a cada instante e isso me basta. É verdade".

"Você não gostaria de comer coisas raras e deliciosas, banhar-se em leite, ser acariciado pelas mulheres mais belas do reino? Não gostaria de possuir terras, casas, gado, plantações? Não seria bom ter poder de controlar e de matar? Algo falta, com certeza, diga o que é", insistiu o soberano.
O homem mais uma vez disse que nada lhe faltava. Seu olhar era límpido e sereno, parecia verdadeiro. Finalmente, haviam encontrado um homem feliz.
Conta essa história antiga, do tempo de minha infância, que o rei pediu ao homem que entregasse sua camisa. Porém, ele não possuía uma.
Há quem pense que alegria, felicidade e contentamento dependem de roupas, objetos, lugares, conhecimentos. Alguns acreditam que podem encontrá-los nos cargos, no status. Outros depositam suas esperanças de felicidade em amores, relacionamentos.

Entretanto, a capacidade de ficar satisfeito é interna e profunda. É estar contente pela existência em si. Tudo o que pode acontecer faz parte de nossa vida. Nada temos a excluir, nada temos a desejar.

Buda, em seu último sermão, pouco antes de morrer, disse a seus discípulos que quem conhece a satisfação penetra a grande sabedoria suprema.
Estar contente e satisfeito não é apenas ficar rindo à toa. É uma sensação profunda que vem do encontro com si mesmo. Sofrimentos e alegrias, dores e prazeres, falta e abundância, reconhecimento e injustiças, tudo isso existe em dualidade.
Ao encontrar a unidade, o sábio sente piedade por quem ainda se encontra fragmentado e partido, triste e desenxabido.

Monja Coen
Desperdiçar a vida

Quando não abandonamos as buscas mundanas, desperdiçamos esta vida. Às vezes as pessoas dizem: “não tenho tempo para praticar”. Qual é o motivo principal para dizer isso? É porque elas estão muito preocupadas com as preparações para uma vida confortável. Às vezes as pessoas não acham tempo nem para fazer suas refeições ou dormir adequadamente por estarem tão ocupadas trabalhando, arranjando coisas ou lutando por algum objetivo.

Meus professores sempre diziam: “a vida humana é gasta com preparativos. Ao se preparar para o futuro, a vida se vai. A pessoa morre cheia de preparações não concluídas”. As pessoas perseguem coisas materiais, compram o que querem possuir e desfrutar. Mas, frequentemente, acontece que elas morrem antes de encontrar tempo de vestir todas as roupas, gastar todas as economias e usar todos os eletrônicos.

Chokyi Nyima Rinpoche (Tibete, 1951~)
“Bardo Guidebook”


Mente da Renúncia

Dzongsar Khyentse Rinpoche (Butão, 1961 ~):

Por eu facilmente ficar chateado e agitado, isso mostra que não tenho a mente de renúncia. A mente de renúncia de certo modo é bem simples. Temos mente de renúncia quando compreendemos que tudo isso não é grande coisa. Alguém pisa em seu dedão, qual a grande coisa aí? Quanto mais nos acostumarmos com essa ideia, mais temos mente de renúncia. Pelo menos, tento ver por que transformo tudo em uma coisa tão grande. Estou meramente dando a você um modelo de como invocar a mente de renúncia.

É um pouco como esse exemplo. Estamos andando nesse deserto por tanto tempo, e tudo que jorra, que é aquoso, é tão importante para nós. Mesmo se vemos uma miragem, nosso único desejo é se aproximar da água sem jamais compreender que é só uma miragem. Se você não sabe que é uma miragem e vai até lá, tudo que você obtém é um grande desapontamento. Então, saber que é só uma miragem é a mente de renúncia. [...]

A renúncia de algum modo tem essa conotação de abrir mão de algo. Mas é como o exemplo da miragem. Você não pode abrir mão da água porque não há nenhuma água; é só uma miragem. Além disso, você não precisa abrir mão de uma miragem porque qual é o sentido de abrir mão de uma miragem? A pessoa simplesmente só precisa saber que é uma miragem. Tal compreensão é uma grande renúncia. No momento que você sabe que é uma miragem, o mais provável é que você nem vá até lá porque sabe que é falso; ou mesmo que vá, não há desapontamento, porque você já sabia o que havia ali. No mínimo, você terá só um pequeno desapontamento. É por isso que Jamgon Kongtrul disse que a mente de renúncia é como uma fundação. [...]

A mente de renúncia não tem nada a ver com sacrifício. Como já mencionei, quando falamos sobre renúncia, de algum modo ficamos todos assustados porque pensamos que temos que abrir mão de alguns bens, algo valioso, algumas coisas importantes. Mas não há nada que é importante; não há nada que solidamente exista. Tudo que você está abrindo mão é, na verdade, uma vaga identidade. Você compreende que isso não é verdadeiro, não é absoluto; é esse o modo e o porquê de desenvolver renúncia.

“Dzogchen Primer”, 45-53
(citado por Marcia Dechen Wangmo, em “Confessions of a Gipsy Dakini“)


E o Amanhecer da Sabedoria...

O vajrayana nos diz para, sempre que uma emoção como o desejo surgir, apenas observar e não fazer nada, “não fabricar”. Mas essa é uma instrução facilmente mal compreendida. Quando a emoção surge, “não fabricar” significa simplesmente parar de fazer qualquer coisa.

O que isso não significa é que, se você está caminhando na rua, deve parar, achar um banco, sentar de pernas cruzadas e tentar “observar” a emoção. O ponto aqui é que, tendo notado a emoção, a maioria de nós tende não a “observar”, mas sim seguir. Sentimos desejo, então seguimos nossos desejos; sentimos raiva, então seguimos a raiva — ou, no máximo, apenas a suprimimos.

Então, como devemos lidar com as emoções? Sem fabricar nada, apenas observe. E no momento que você olha a emoção, ela desaparece. Iniciantes vão descobrir que a emoção reaparece bem rápido, mas isso não importa. O importante é que no momento em que você começa a observar a emoção, ela imediatamente desaparece. E, mesmo que só desapareça por uma fração de segundo, o fato de que uma emoção desapareceu também significa que a sabedoria, momentaneamente, amanheceu. O reconhecimento dessa atenção nua: é a isso que a palavra “conhecer” se refere.

“Conhecer” a emoção é compreender que, já que ela não tem nenhuma raiz, não há e nunca houve nenhuma emoção. Algumas pessoas falam sobre emoções, particularmente as emoções negativas, como se elas fossem algum tipo de força demoníaca horrível que intencionalmente invade nosso ser, mas elas não são nada disso.

Quando sentir raiva, apenas observe a raiva. Não a causa da raiva ou seu resultado, apenas a emoção da raiva. Ao encarar sua raiva, você descobrirá que não há nada que você possa apontar e dizer: “Aqui está minha raiva”. E a compreensão de que não há absolutamente nada ali é o que é chamado de “amanhecer da sabedoria”.

“Not For Happiness”, loc. 3167
 
Há muitos e muitos anos, o rei de um país distante andava triste. Um de seus conselheiros sugeriu que ele usasse a camisa de uma pessoa feliz para se tornar feliz também. A procura começou, mas parecia difícil encontrar alguém capaz de estar sempre alegre e contente.

Finalmente, os emissários reais ouviram falar de um homem simples, que morava do outro lado da montanha, e foram encontrá-lo. Ficaram surpresos ao vê-lo, trabalhando sem reclamar, sorrindo ao recebê-los. Conversaram, e ele concordou em ver o rei.
Na sala do trono, o rei tristonho aguardava, já sem esperanças. Talvez não existisse um ser verdadeiramente feliz. Entrevistara tanta gente. Sempre havia um pedido, uma reclamação, uma tristeza secreta embutida em alguma prega da memória ou da ambição. Será que não haveria na Terra uma criatura que sorrisse sem malícia, que falasse sem nenhuma intenção?
Os arautos reais anunciaram a chegada da comitiva. O rei se aprumou no trono, andava cabisbaixo. Os ministros estavam cansados de convidar artistas e já tinham trocado mais de 15 "bobos da corte".
De bobos eram chamados os que deveriam fazer a corte rir. Palhaços. Geralmente, pessoas muito sábias, cuja intenção era alegrar e até mesmo aconselhar, de maneira sutil e risonha, nas decisões finais. Conhecedores dos corações e das mentes de seus senhores, sabiam segredos íntimos. Entretanto, suas cabeças sempre dependiam das risadas que tiravam dos soberanos. Os bobos daquela corte não conseguiam do rei mais do que um sorriso.
O rei sentou-se e viu com surpresa o homem entrar. Era grande, truculento e estava suado. Sorria ao reverenciar o monarca ali assentado. "Aproxime- se! Você é uma pessoa feliz?", perguntou o rei. O homem respondeu que sim. "Você veio ao meu castelo, pode falar comigo. Há alguma coisa que o incomode, alguma tristeza ou problema, alguma reivindicação, alguma reclamação, algum ódio do passado, algum rancor guardado?", continuou o monarca. O homem disse: "Não, majestade! Respiro a cada instante e isso me basta. É verdade".

"Você não gostaria de comer coisas raras e deliciosas, banhar-se em leite, ser acariciado pelas mulheres mais belas do reino? Não gostaria de possuir terras, casas, gado, plantações? Não seria bom ter poder de controlar e de matar? Algo falta, com certeza, diga o que é", insistiu o soberano.
O homem mais uma vez disse que nada lhe faltava. Seu olhar era límpido e sereno, parecia verdadeiro. Finalmente, haviam encontrado um homem feliz.
Conta essa história antiga, do tempo de minha infância, que o rei pediu ao homem que entregasse sua camisa. Porém, ele não possuía uma.
Há quem pense que alegria, felicidade e contentamento dependem de roupas, objetos, lugares, conhecimentos. Alguns acreditam que podem encontrá-los nos cargos, no status. Outros depositam suas esperanças de felicidade em amores, relacionamentos.

Entretanto, a capacidade de ficar satisfeito é interna e profunda. É estar contente pela existência em si. Tudo o que pode acontecer faz parte de nossa vida. Nada temos a excluir, nada temos a desejar.

Buda, em seu último sermão, pouco antes de morrer, disse a seus discípulos que quem conhece a satisfação penetra a grande sabedoria suprema.
Estar contente e satisfeito não é apenas ficar rindo à toa. É uma sensação profunda que vem do encontro com si mesmo. Sofrimentos e alegrias, dores e prazeres, falta e abundância, reconhecimento e injustiças, tudo isso existe em dualidade.
Ao encontrar a unidade, o sábio sente piedade por quem ainda se encontra fragmentado e partido, triste e desenxabido.

Monja Coen

Desperdiçar a vida

Quando não abandonamos as buscas mundanas, desperdiçamos esta vida. Às vezes as pessoas dizem: “não tenho tempo para praticar”. Qual é o motivo principal para dizer isso? É porque elas estão muito preocupadas com as preparações para uma vida confortável. Às vezes as pessoas não acham tempo nem para fazer suas refeições ou dormir adequadamente por estarem tão ocupadas trabalhando, arranjando coisas ou lutando por algum objetivo.

Meus professores sempre diziam: “a vida humana é gasta com preparativos. Ao se preparar para o futuro, a vida se vai. A pessoa morre cheia de preparações não concluídas”. As pessoas perseguem coisas materiais, compram o que querem possuir e desfrutar. Mas, frequentemente, acontece que elas morrem antes de encontrar tempo de vestir todas as roupas, gastar todas as economias e usar todos os eletrônicos.

Chokyi Nyima Rinpoche (Tibete, 1951~)
“Bardo Guidebook”

Mente da Renúncia

Dzongsar Khyentse Rinpoche (Butão, 1961 ~):

Por eu facilmente ficar chateado e agitado, isso mostra que não tenho a mente de renúncia. A mente de renúncia de certo modo é bem simples. Temos mente de renúncia quando compreendemos que tudo isso não é grande coisa. Alguém pisa em seu dedão, qual a grande coisa aí? Quanto mais nos acostumarmos com essa ideia, mais temos mente de renúncia. Pelo menos, tento ver por que transformo tudo em uma coisa tão grande. Estou meramente dando a você um modelo de como invocar a mente de renúncia.

É um pouco como esse exemplo. Estamos andando nesse deserto por tanto tempo, e tudo que jorra, que é aquoso, é tão importante para nós. Mesmo se vemos uma miragem, nosso único desejo é se aproximar da água sem jamais compreender que é só uma miragem. Se você não sabe que é uma miragem e vai até lá, tudo que você obtém é um grande desapontamento. Então, saber que é só uma miragem é a mente de renúncia. [...]

A renúncia de algum modo tem essa conotação de abrir mão de algo. Mas é como o exemplo da miragem. Você não pode abrir mão da água porque não há nenhuma água; é só uma miragem. Além disso, você não precisa abrir mão de uma miragem porque qual é o sentido de abrir mão de uma miragem? A pessoa simplesmente só precisa saber que é uma miragem. Tal compreensão é uma grande renúncia. No momento que você sabe que é uma miragem, o mais provável é que você nem vá até lá porque sabe que é falso; ou mesmo que vá, não há desapontamento, porque você já sabia o que havia ali. No mínimo, você terá só um pequeno desapontamento. É por isso que Jamgon Kongtrul disse que a mente de renúncia é como uma fundação. [...]

A mente de renúncia não tem nada a ver com sacrifício. Como já mencionei, quando falamos sobre renúncia, de algum modo ficamos todos assustados porque pensamos que temos que abrir mão de alguns bens, algo valioso, algumas coisas importantes. Mas não há nada que é importante; não há nada que solidamente exista. Tudo que você está abrindo mão é, na verdade, uma vaga identidade. Você compreende que isso não é verdadeiro, não é absoluto; é esse o modo e o porquê de desenvolver renúncia.

“Dzogchen Primer”, 45-53
(citado por Marcia Dechen Wangmo, em “Confessions of a Gipsy Dakini“)

E o Amanhecer da Sabedoria...

O vajrayana nos diz para, sempre que uma emoção como o desejo surgir, apenas observar e não fazer nada, “não fabricar”. Mas essa é uma instrução facilmente mal compreendida. Quando a emoção surge, “não fabricar” significa simplesmente parar de fazer qualquer coisa.

O que isso não significa é que, se você está caminhando na rua, deve parar, achar um banco, sentar de pernas cruzadas e tentar “observar” a emoção. O ponto aqui é que, tendo notado a emoção, a maioria de nós tende não a “observar”, mas sim seguir. Sentimos desejo, então seguimos nossos desejos; sentimos raiva, então seguimos a raiva — ou, no máximo, apenas a suprimimos.

Então, como devemos lidar com as emoções? Sem fabricar nada, apenas observe. E no momento que você olha a emoção, ela desaparece. Iniciantes vão descobrir que a emoção reaparece bem rápido, mas isso não importa. O importante é que no momento em que você começa a observar a emoção, ela imediatamente desaparece. E, mesmo que só desapareça por uma fração de segundo, o fato de que uma emoção desapareceu também significa que a sabedoria, momentaneamente, amanheceu. O reconhecimento dessa atenção nua: é a isso que a palavra “conhecer” se refere.

“Conhecer” a emoção é compreender que, já que ela não tem nenhuma raiz, não há e nunca houve nenhuma emoção. Algumas pessoas falam sobre emoções, particularmente as emoções negativas, como se elas fossem algum tipo de força demoníaca horrível que intencionalmente invade nosso ser, mas elas não são nada disso.

Quando sentir raiva, apenas observe a raiva. Não a causa da raiva ou seu resultado, apenas a emoção da raiva. Ao encarar sua raiva, você descobrirá que não há nada que você possa apontar e dizer: “Aqui está minha raiva”. E a compreensão de que não há absolutamente nada ali é o que é chamado de “amanhecer da sabedoria”.

“Not For Happiness”, loc. 3167

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