Krishnamurti e Fritjof Capra - |
Um
dos primeiros contatos diretos que tive com a espiritualidade do Oriente foi meu
encontro com J. Krishnamurti no final de 1968. Quando ele proferiu uma série de
palestras na UC de Santa Cruz, estava com setenta e três anos e a sua aparência
era absolutamente estonteante. Seus traços indianos bem marcados, o contraste
entre a pele escura e os cabelos brancos impecavelmente penteados, a elegância
dos trajes europeus, a dignidade do semblante, o inglês medido e perfeito, e —
acima de tudo — a intensidade da concentração e da presença dele deixaram-me
encantado e perplexo. Os
ensinamentos de Don Juan, de
Carlos Castañeda, acabara de ser publicado, e ao ver Krishnamurti não pude
deixar de comparar sua aparência com a da figura mítica do sábio yaqui.
O impacto do
carisma e da aparência física de Krishnamurti foi intensificado e
aprofundado pelas coisas que
disse. Pensador muito original, rejeitava toda autoridade espiritual e todas as
tradições espirituais. Seus ensinamentos eram muito semelhantes aos do budismo,
mas ele jamais empregava algum termo budista ou de qualquer outro ramo de
pensamento tradicional do Oriente. A tarefa a que se propusera (usar a língua e
o raciocínio racional para levar seus ouvintes além da linguagem e do uso da
razão) era extremamente difícil, mas o modo como ele se desincumbia dela era
impressionante.
Krishnamurti
escolhia algum problema existencial bem conhecido — medo, desejo,
morte, tempo — como
tópico de uma palestra, e principiava a falar usando palavras parecidas
com estas: “Entremos
nisso juntos. Não vou lhes dizer nada; não possuo autoridade alguma; vamos
explorar essa questão juntos”. Em seguida, mostrava a futilidade de todos os
modos convencionais
para se eliminar, por exemplo, o medo, e perguntava, lenta e intensamente, com
um senso acurado do impacto dramático de suas palavras: “É possível que vocês,
neste exato momento, aqui neste lugar, possam se livrar do medo? Não suprimi-lo,
não negá-lo, nem opor resistência a ele, mas sim eliminá-lo de uma vez por
todas? Esta será a nossa tarefa hoje à noite: eliminarmos o medo por completo,
de uma vez por todas. Se não conseguirmos isso, minha palestra terá sido em
vão”.
A cena já estava
armada; a platéia, arrebatada, dominada pelo enlevo, e absolutamente atenta.
“Examinemos então a questão”, prosseguia Knshnamurti, “sem julgarmos, sem
condenarmos, sem justificarmos. O que é o medo? Examinemos isso juntos, vocês e
eu. Vejamos se conseguimos realmente nos comunicar, estar no mesmo plano, na
mesma intensidade, no mesmo momento. Usando-me como espelho, será que vocês
conseguirão encontrar a resposta a esta pergunta extraordinariamente importante:
o que é o medo?”
E Krishnamurti
passava então a tecer uma teia imaculada de conceitos. Mostrava
que, para
compreendermos o medo, temos de compreender o desejo; que para compreendermos
o desejo, temos de
compreender o pensamento; e, consecutivamente com o tempo, o conhecimento, o
ser, e assim por diante. Apresentava uma análise brilhante de como
tais problemas
existenciais básicos estão interrelacionados — não na teoria, mas na
prática. Krishnamurti não
só confrontava cada membro da platéia com os resultados da sua
análise, como também
instava e convencia cada um a se envolver no processo de análise. No
final, ficava uma
sensação nítida e forte de que o único meio para se resolver qualquer um de
nossos problemas existenciais é ir além do pensamento, além da linguagem, além
do tempo — é “libertar-se do conhecido”, como diz no título de um de seus
melhores livros, Freedom from the known.
Lembro-me de que
fiquei fascinado, mas também profundamente perturbado, com as palestras de
Krishnamurti. Após cada uma delas, Jacqueline e eu permanecíamos acordados
durante várias horas, sentados junto à nossa lareira, discutindo o que
Krishnamurti dissera. Esse foi meu primeiro encontro direto com um mestre
espiritual radical, e logo me vi em face de um grave problema. Eu mal iniciara
uma promissora carreira científica, com que estava bastante envolvido
emocionalmente, e então vinha Krishnamurti, com todo o seu carisma e persuasão,
dizendo para eu parar de pensar, para eu me libertar de todo o conhecimento,
para eu deixar o raciocínio lógico para trás. O que isso significava no meu
caso? Deveria desistir da carreira científica nesse estágio inicial, ou deveria
continuá-la, abandonando toda esperança de alcançar a auto-realização
espiritual?
Eu ansiava por
me aconselhar com Krishnamurti, porém ele não permitia nenhuma pergunta em suas
palestras e recusava-se a receber quem quer que fosse depois delas. Fizemos
diversas tentativas para vê-lo, mas foi-nos dito, com firmeza, que Krishnamurti
não queria ser perturbado. Foi uma feliz coincidência — ou não? — que finalmente
nos propiciou um encontro com ele. Krishnamurti tinha um secretário francês e,
após a última palestra, Jacqueline, que nasceu emParis, conseguiu estabelecer um
diálogo com esse homem. Eles se entenderam bem e, como resultado, terminamos por
nos encontrar com Krishnamurti em seu apartamento na manhã
seguinte.
Senti-me um
tanto intimidado quando finalmente vi o mestre cara a cara, mas não quis perder
tempo. Eu sabia por que estava ali. “Como posso ser um cientista”,
perguntei-lhe, “e ainda assim seguir seu conselho para interromper o pensamento
e libertar-me do conhecido?”
Krishnamurti não
hesitou sequer um instante. Ele respondeu a minha pergunta em dez segundos, e de
um modo que resolveu completamente o meu problema. “Primeiro você é um
ser humano”, disse ele, “e depois um cientista. Antes você tem de
setornar livre, e
essa liberdade não pode ser atingida por meio do pensamento. Ela é atingida pela
meditação — a compreensão da totalidade da vida, em que cessam todas as formas
de fragmentação.”
Uma vez que eu alcançar tal compreensão da vida como um todo,
explicou,poderia me
especializar e trabalhar como cientista sem problema algum. E evidentemente nem
se cogitava na abolição da ciência. Passando para o francês, Krishnamurti
acrescentou: “J'adore la science. C'est merveilleux!”
Após esse rápido
mas decisivo encontro, só vi Krishnamurti de novo seis anos depois, ao
ser convidado,
juntamente com vários outros cientistas, a participar de uma semana de
discussões com ele em seu centro educacional no Brockwood Park, ao sul de
Londres. Sua aparência ainda era extremamente marcante, embora houvesse perdido
um pouco da intensidade. No decorrer daquela semana fiquei conhecendo
Krishnamurti muito melhor, inclusive alguns de seus defeitos. Quando falava, ele
ainda era muito poderoso e carismático, mas fiquei desapontado pelo fato de
jamais podermos realmente incluí-lo numa discussão. Ele falaria, mas não se
disporia a ouvir. Por outro ladq, mantive muitas discussões excitantes com meus
colegas cientistas — David Böhm, Karl Pribram e George Sudarshan, entre
outros.
Depois disso
praticamente perdi contato com Krishnamurti. Nunca deixei de reconhecer
sua influência
decisiva sobre mim, e com freqüência ouvia falar dele por meio de várias
pessoas; porém, não compareci a nenhuma outra palestra sua, nem li qualquer um
de seus outros livros. Então, em janeiro
de 1983, me vi em Madrasta, no sul da Índia, participando de uma conferência da
Sociedade Teosófica Mundial, que ficava em frente à propriedade de Krishnamurti.
Como ele estava lá e ia dar uma palestra naquela noite, resolvi aparecer
para apresentar-lhe
meus cumprimentos. O belíssimo parque, com suas gigantescas árvores seculares, estava
repleto de gente, quase todos indianos, sentados em silêncio no
chão, aguardando o
início de um ritual de que a maioria já participara muitas vezes antes. Às
oito horas
Krishnamurti apareceu, vestido com trajes indianos, e caminhou lentamente mas
com enorme segurança
até uma plataforma que fora erguida. Foi maravilhoso vê-lo, aos oitenta
e oito anos de
idade, fazendo sua entrada como durante mais de meio século, subindo
as escadas da
plataforma sem ajuda de ninguém, sentando-se numa almofada, e unindo as mãos no
tradicional cumprimento indiano para iniciar sua palestra.
Krishnamurti
falou durante setenta e cinco minutos sem nenhuma hesitação, e quase com
a mesma intensidade
que eu presenciara quinze anos antes. O tópico dessa noite era o desejo,
e ele teceu sua
teia com a clareza e habilidade de sempre. Foi uma oportunidade única para
eu avaliar a
evolução de meu próprio entendimento desde a época em que o conhecera, e
senti pela primeira vez
que eu realmente compreendia seu método e sua personalidade. A sua análise do desejo
foi bela e cristalina. A percepção causa uma reação sensorial, disse ele;
o pensamento então
intervém — “Eu quero...“, “Eu não quero...“, “Eu desejo...“ —, e assim
é gerado o desejo.
O desejo não é causado pelo objeto de desejo, mas persistirá com
diversos objetos enquanto
intervier o pensamento. Portanto, não nos libertaremos do desejo suprimindo ou
evitando a experiênciasensorial (o modo do asceta). O único meio para nos
libertarmos do desejo é libertando-nos do pensar.
O que
Krishnamurti não disse é como podemos nos libertar do pensamento. Como
Buda, ele ofereceu uma
análise brilhante do problema, mas, à diferença dele, não mostrou um caminho
claro para a libertação. Talvez, pensei, o próprio Krishnamurti não houvesse
avançado o suficiente por esse caminho... Talvez não houvesse se libertado o
suficiente de todo o condicionamento para poder levar seus discípulos à plena
auto-realização...
Depois da
palestra, fui convidado para jantar com Krishnamurti e várias outras
pessoas. Compreensivelmente
ele estava bastante exausto devido a seu esforço e sem ânimo para qualquer
discussão. Nem eu pretendia algo assim. Fora ali apenas para mostrar-lhe a
minha gratidão, sendo
ricamente recompensado. Contei a Krishnamurti a história de nosso primeiro
encontro, e agradeci-lhe mais uma vez por sua influência e ajuda decisivas,
estando consciente de que esse talvez fosse o nosso último encontro, como de
fato acabou sendo.
O problema que
Krishnamurti resolvera para mim, à maneira zen, de um só golpe, é o problema com
que a maioria dos físicos se deparam quando confrontados com as idéias das
tradições místicas — como é possível transcender o pensamento sem abandonar um
compromisso com a ciência? Esse é, acredito, o motivo pelo qual tantos de meus
colegas sentiram-se ameaçados por minhas comparações entre a física e o
misticismo. Talvez lhes seja proveitoso saber que eu também já senti a mesma
ameaça. E a senti com todo o meu ser. No entanto, isso foi no início de minha
carreira, e tive uma enorme felicidade: a mesma pessoa que me fez perceber a
ameaça foi também a que me ajudou a transcendê-la.
Extraído do
livro “ Sabedoria Incomum” de Fritjof Capra- Cultrix- São Paulo- 1995
Fonte:http://alsibar.blogspot.com.br/2013/03/
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