são irmãos
de sangue da nossa humanidade
Respeitando a Vida dos Nossos Irmãos Menores
Será justo da nossa parte dar morte violenta a animais pacíficos e
depois comer seus cadáveres? Pode haver, nesse costume, uma forma de crueldade
socialmente aceita e estabelecida? É possível que esta violência com seres mais
fracos, a quem chamamos de “inferiores”, dificulte o desenvolvimento da
humanidade, causando, inconscientemente, violência entre os próprios seres
humanos ?
Estas não são perguntas
fáceis de responder, e não devem ser colocadas no plano meramente emocional.
Nenhum radicalismo primário contribuirá para a compreensão do tema. O sacrifício
dos animais, porém, é uma das características de uma civilização humana em crise
permanente ― ao lado das guerras e de outras formas de
violência.
Durante o processo de
regeneração e recuperação do nosso esquema civilizatório, será natural e sadio
discutir o uso da carne em função de diferentes prioridades, como o respeito às
diferentes formas de vida, a garantia de uma boa alimentação, o
auto-aperfeiçoamento e harmonização interior do homem, além dos processos
econômicos e energéticos envolvidos. Para a economia convencional, por exemplo,
a morte violenta de milhões de animais é apenas “produção de carne”. Mas talvez
seja inevitável, no futuro, encarar o problema do ponto de vista ético. Temos,
afinal, o direito de matar?
Vejamos, para começar, a
opinião de Mohandas Gandhi: “Deveríamos ser capazes de recusar-nos a viver se o
preço da vida é a tortura de seres sensíveis”, disse o líder da libertação da
Índia. E sua opinião não era isolada. Os animais são os irmãos menores da atual
humanidade.
Um dos maiores gênios da
história, Leonardo da Vinci, afirmou: “Tempo virá em que os homens verão o
assassinato de animais como eles vêem hoje o assassinato de homens”.
[1]
Se o pensamento consiste da
associação sequencial de diferentes imagens mentais, alguns animais chegam
próximo a ele. Há exemplos conhecidos. Mas é seu plano emocional que está
amplamente desenvolvido, permitindo grande afinidade com o ser humano. Isto não
é verdade apenas para os animais que são normalmente preferidos pelo homem. Em
certas regiões dos Estados Unidos, por exemplo, já é comum criar um porco com o
mesmo carinho e intimidade que se dá aos cães e gatos. Percebi este fato anos
atrás, quando descansava deitado no gramado da Universidade de Berkeley,
Califórnia. Estava lendo alguma coisa sobre ecologia aquática quando fui
surpreendido por uma voz feminina, docemente autoritária, como se fizesse uma
crítica a alguém muito amado:
“Daisy! Daisy! Daisy! Vem
cá!”
Levantei os olhos: uma
jovem caminhava apressada, com uma cordinha na mão. Atrás dela, atrasada, mas
recuperando o tempo perdido, corria uma grande porca de mais de cem quilos,
limpa, de cor rosada, livre e feliz ao chamado da
dona.
Era Daisy, evidentemente. E
se notava uma profunda confiança mútua entre ela e sua proprietária, enquanto as
duas atravessavam, num passo apertado, o belo campus de
Berkeley.
“Daisy não sabe, mas tem
muita sorte”, pensei. Mesmo com uma inteligência e sensibilidade comparáveis às
do gato, cachorro ou cavalo, em geral, os porcos levam uma vida difícil. A maior
parte deles é criada em total confinamento, em meio ao lixo, sem higiene. Quase
não podem mover-se, são engordados artificialmente, e sofrem de desnutrição.
Criados de modo antinatural, eles recebem antibióticos e hormônios até o dia do
sacrifício. Mas sua morte violenta prejudica também o homem, do modo mais
imediato: sua carne é talvez a menos saudável e a que mais ameaça a saúde do
consumidor.
Daisy e a carne de porco
são apenas um exemplo, porque a situação é basicamente a mesma com a carne de
boi, de aves e de peixes. As galinhas “poedeiras” ficam em gaiolas onde não
podem mover o corpo em nenhuma direção, sob fortes lâmpadas elétricas ligadas
noite e dia. Nunca dormem, nunca relaxam, e a ansiedade lhes dá uma fome
descontrolada. Comem uma ração química que multiplica os ovos, mas os torna
prejudiciais à saúde humana, com seus hormônios e antibióticos. Os frangos
criados para serem mortos têm sorte semelhante.
O peixe, por sua vez, é um
animal mais primitivo que os mamíferos, e seu sofrimento, aparentemente,
poderia ser menor. Mas ― como poderíamos medir a dor alheia? Além disso, o
peixe é o animal que sofre a agonia mais lenta. Pode demorar até várias horas
para morrer depois de retirado da água. Há rios em que os pescadores costumam
deixar peixes amontoados em um "viveiro", ou uma cesta de vime submersa, onde
sua agonia é prolongada para que a carne não se deteriore antes da chegada a um
frigorífico ou freezer.
Nos últimos anos, por
vários motivos, o consumo de carne vem sendo cada vez mais discutido no mundo
todo. Mas o debate é antigo.
“A própria fisiologia
humana não condiz com a alimentação carnívora”, garantia, já em 1903, o Dr.
G.S.Huntington, da Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos. E comprovava,
pela análise dos dentes humanos, que sempre fomos animais herbívoros, com dentes
caninos pequenos e predominância dos molares. Ao mesmo tempo, nossos intestinos
são cheios de divisões, de modo semelhante ao do boi e outros herbívoros, mas
bem ao contrário dos carnívoros tradicionais.
Ao longo dos últimos cem
anos tem sido cada vez maior o número de médicos e cientistas que questionam o
uso da carne na dieta humana, responsabilizando-a por vidas mais curtas, doenças
do coração, câncer no intestino e outras partes do organismo. Hoje já caiu o
dogma, antes intocável, da necessiddade de proteínas animais a partir da carne.
O consumo de leite, queijo, manteiga e ovos parece firmemente estabelecido. A
carne deixa de ser um item considerado indispensável para assumir,
gradualmente, o papel de vilão do cardápio.
[2]
Por que razão se diz que a
carne tem efeitos daninhos ? Entre os muitos fatores, há alguns agravantes
recentes. Antes o homem convivia com os animais de modo mais sadio. Dava-lhes
relativa liberdade.
Com o desenvolvimento
tecnológico, os animais não podem ter mais nada parecido com uma vida normal:
são mantidos em jaulas, sem liberdade de movimentos. Ficam doentios, e para
prevenir doenças, recebem antibióticos em sua ração, assim como hormônios e
anabolizantes cancerígenos, que provocam crescimento e engorda artificiais.
[3]
À medida que estes e outros
fatos ficam cada dia mais conhecidos, até mesmo a ciência convencional
desmistifica o uso da carne. Já em dezembro de 1990, o “New England Journal of
Medicine” revelava o resultado de uma pesquisa de seis anos com 88.750 mulheres
norte-americanas. [4] A conclusão era que o consumo de carne bovina ou
suína aumenta radicalmente o risco de câncer no intestino, e mesmo o consumo
ocasional de carne vermelha eleva as chances de contrair a doença. Tal
advertência vem sendo feita insistentemente por cientistas de vários países e,
como consequência, uma parcela crescente da população altera seus hábitos.
Do ponto de vista
econômico, já se questiona o fato de que o Brasil exporta grandes quantidades de
soja barata para alimentar o gado em outros países, enquanto nem todas as
crianças brasileiras têm alimentação adequada.
Energeticamente, a criação
de gado bovino é um desperdício. Para alimentar o gado de corte, são necessárias
enormes extensões de terra que poderiam alimentar seres humanos com uma dieta
mais leve e mais saudável. E as advertências sobre o perigo da explosão
demográfica perderiam sentido, se os rebanhos parassem de multiplicar-se por
inseminação artificial, dando mais espaço geográfico para o ser
humano.
Tanto o enfoque dietético,
como o econômico, o energético e o demográfico nos levam a questionar o consumo
da carne do ponto de vista antropocêntrico, isto é, pensando apenas no que é
melhor para o homem, como se não tivéssemos dever nenhum para com animais menos
evoluídos do que nós. As outras formas de vida, porém, têm um valor intrínseco,
independentemente da sua utitilidade ou não para o nosso bem-estar particular.
Esta é a questão ética. Mark Twain escreveu:
“Se você cuida de um
cachorro doente até que recupere a saúde, ele não vai mordê-lo mais tarde. Esta
é a principal diferença entre os homens e os animais”.
E Samuel Butler
acrescenta:
“O homem é o único animal
que pode comportar-se amigavelmente com as vítimas que ele pretende devorar, até
o momento em que as devora”.
Há nos olhos dos animais
uma imagem pálida e um vislumbre de humanidade, “um raio de luz através do qual
a vida deles olha para fora e para cima, em direção ao grande poder do nosso
domínio sobre eles, e pede por amizade”, escreveu John Ruskin, um dos
inspiradores de Gandhi.
A morte dos animais, mesmo
os mais sensíveis e inteligentes, é considerada normal em nossa sociedade. Mas,
“se os animais pudessem falar, teríamos coragem de matá-los e comê-los ?”,
perguntou um dia o escritor francês Voltaire. “Como poderíamos justificar tal
fratricídio ?”
Herbert Spencer escreveu
que “o comportamento do homem para com os animais é inseparável do comportamento
dos homens entre si”. A filosofia esotérica afirma que a dor que causamos aos
animais retarda a evolução humana. Há quem diga que “o círculo vicioso do
longo e contínuo massacre de animais só pode culminar em guerras”. O escritor
inglês George Bernard Shaw foi além: “Enquanto o homem assassinar animais e
comer sua carne, vamos continuar tendo guerras”, escreveu ele. E o indiano
T.L.Vaswani advertia que “nenhum país está verdadeiramente livre enquanto o
animal, o irmão mais moço do homem, não estiver livre e feliz”.
[5]
Alguns carnívoros
consideram que questionar eticamente a morte de animais é um exagero. “Afinal, a
maior parte deles já teve seu nascimento provocado, especialmente, para serem
sacrificados mais tarde”, alegam. Outras pessoas, porém, discordam. “Você tem a
opção de dar ou não vida a outros seres”, explicam. “Nada disso o autoriza a
matar, nem a maltratar ninguém”.
De acordo com esse ponto de
vista, atrás do ritual inocente de comer uma chuleta ou bife mal-passado, existe
um verdadeiro holocausto, uma morte violenta em massa, permanente, rotativa, de
milhões de bois e vacas indefesos.
E como se dá esse processo
rotineiro? Vejamos um exemplo.
Os animais viajam centenas
de quilômetros de pé, sem água ou comida, apertados na carreta de um caminhão.
Ao chegar, ficam de dois a quatro dias no pátio do abatedouro ― recebendo
apenas água. Na hora do sacrifício, os animais são forçados a entrar em um longo
corredor estreito. São tomados pelo desespero, e tentam fugir de todas as
formas. No final do corredor, uma das maneiras mais usadas de matar começa com
um golpe de marreta na cabeça. O animal fica tonto, perde as forças e cai com os
olhos abertos, mas é suspenso por um guindaste atado às patas traseiras. Às
vezes já está se recuperando do golpe e debatendo-se pela liberdade quando é
definitivamente degolado. Seus olhos se esvaziam; o olhar ainda está lá, mas a
vida atrás dele retira-se.
As facas não param, o boi
deixa de existir e em poucos minutos é completamente despedaçado. O couro viaja
para o curtume. O sangue vira ração de animais e as fezes, de adubo. Mas haverá
muito sangue e fezes poluindo o curso d'água
próximo.
A experiência de
testemunhar a morte violenta de animais obedientes, humildes, é muito forte.
Muitas pessoas jamais provam carne após uma visita a um matadouro. Enquanto
assistem à morte dos animais, que caem um após outro , alguns precisam reprimir
um impuso não racional que lhes manda gritar ao homem da morte, interpondo-se
entre ele e o animal: “Pare! Pare de matar! Deixe este animal
vivo!”
Se Bernard Shaw tinha
razão, o surgimento de novas teorias alimentares, que nos levam a abandonar o
hábito de matar animais para comer carne, é uma das grandes bênçãos que hoje se
derramam sobre o difícil caminho da humanidade. Pode ser um dos fatores
fundamentais para eliminar a violência de dentro e de fora do indivíduo humano.
Estará sendo aplicado, então, um ensinamento de um sábio que foi conhecido no
mundo grego antigo como Pitágoras:
“A Terra, generosa, oferece
a você uma grande variedade de alimentos puros e de refeições que podem ser
alcançados sem massacre nem derramamento de sangue”, disse o filósofo e
matemático há 2.600 anos atrás.
NOTAS:
[1] “Birthday Autograph Book”, Animal Welfare
Board, Madras ,
Índia.
[2] “Vida e Saúde”, revista, número especial
sobre o vegetarianismo, p. 19 e seguintes. “Tribuna Alemã”, outubro de 1983, nº
343, pp. 14.
[3] “SOS Animal”, publicação da Liga de
Prevenção à Crueldade Contra o Animal, Belo Horizonte, MG, ano VII, nº 32, junho
de 1990.
[4] “Gazeta Mercantil”, 14 de dezembro de
1990.
[5] “Birthday Autograph Book”, obra citada.
Este volume é a fonte dos
pensamentos de vários pensadores citados nos parágrafos anteriores.
Uma versão inicial do texto acima foi publicada no livro “Apontando
Para o Futuro -- responsabilidade ética e preservação ambiental no século
21”, de Aveline. A obra foi publicada em Porto Alegre em 1996, com 106
pp., pelas editoras FEEU e PrajnaParamita, e está esgotada.
Texto Por Carlos Cardoso Aveline
Fonte:http://www.vislumbresdaoutramargem.com/2007/10/tica-da-alimentao-vegetariana.html
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