O DESPERTAR DA DEUSA - CÁBOR PAÁL

 

28davinci29-mona-lisa
‘Mona Lisa‘ por Leonardo Davinci

O Despertar da Deusa
Filósofos relacionam a beleza com a arte; psicólogos consideram a sensação de prazer que desperta. Para o espectador comum trata-se apenas de uma questão de gosto. Quem está com a razão?
Um menino dá um torrão de açúcar a um pônei e sente na palma da mão a maciez e o calor dos lábios do animal. Um escultor contempla a estátua recém-concluída que corresponde exatamente ao que desejava expressar. Um malabarista executa um novo número que, depois de um longo treinamento, está pronto para ser apresentado ao público. O que há em comum entre essas pessoas? Todas elas tiveram uma experiência que se poderia denominar ‘bela’, em diferentes sentidos.
A questão sobre o que é ou não belo acaba in­fluenciando muitos aspectos de nossa vida. Por quem vamos nos apaixonar, como decorar nossa casa, que roupa comprar – em todos esses casos considerações estéticas desempenham papel muito importante. O mesmo acontece com os assuntos discutidos com ou­tras pessoas: filmes, viagens, livros, bebidas, homens, mulheres, partidos políticos. Em todas essas conversas as opiniões variam entre os extremos ‘Adoro!’ e ‘Acho insuportável!’. Qualquer coisa pode ser bela.-a modelo mais requisitada do mundo, um jantar com amigos, o gol da vitória do time preferido no fim do campeonato ou uma conferência científica sobre a origem do Universo.
Muitos poderiam objetar contra o uso inflacionado da palavra ‘belo’ nesses contextos profanos, dizendo que se trata aqui de um tipo de beleza diferente do de uma cantata de Bach, um poema de Rilke ou ainda um quadro de Da Vinci. Essa opinião corresponde à teoria de uma ‘estética a partir do alto’ – defendida por filó­sofos e críticos literários -, que confina a beleza quase exclusivamente no contexto das produções artísticas, não admitindo o sublime de paisagens, pessoas, objetos de uso diário e teorias científicas. Entretanto, pela falta de comprovação empírica, os princípios dessa estética ficavam limitados ao domínio teórico-especulativo, não sendo possível convencer ninguém de sua validade.
Mas os cientistas que inves­tigam os processos cognitivos encontraram pistas indicando que faz sentido empregar o conceito de beleza na concepção mais am­pla utilizadada na linguagem co­tidiana. Estudos realizados com o auxílio de modernos métodos de imageamento cerebral mostram que o cérebro reage de forma semelhante diante de uma obra de arte, de uma boa conversa ou do rosto de uma supermodelo. A música – como as já mencionadas cantatas de Bach, por exemplo - ativa em parte as mesmas áreas cerebrais que uma boa relação se­xual, a saber, o centro de recom­pensa que produz o sentimento de bem-estar. Isso é no mínimo um sinal de que a experiência do belo não se reduz apenas à arte. Mas o que é, afinal, a be­leza? Um sentimento? E como se poderiam conciliar as novas descobertas de neurologistas e psicólogos com toda a sabedoria acumulada por filósofos sobre as percepções estéticas?
Um fundamento empírico já estava sendo buscado desde o século XIX pela chamada ‘estética a partir de baixo’. Essa estética considerava a experiência do belo do mesmo modo como ela é concebida hoje por muitos psicó­logos cognitivos: umfenômeno corriqueiro que pode ser inves­tigado experimentalmente, por meio do prazer que um indivíduo sente em determinada situação. Com esse método, a pesquisa psicológica descobriu muitas coisas sobre o efeito de deter­minadas cores ou motivos musi­cais, e pôde sondar quais figuras geométricas, rostos e paisagens nos agradam particularmente.

A biologia evolutiva também permite explicar a atratividade. É fato comprovado que pes­soas no mundo inteiro acham mais agradáveis regiões fluviais e lugares com vegetação verde e exuberante que desertos e mon­tanhas escarpadas. Para nossos antepassados, viver naquelas áreas representava uma vanta­gem, de um lado pela facilidade de conseguir alimento e água, de outro porque ofereciam defesa contra seus inimigos. Esse ‘ideal de beleza’, pela vantagem seletiva proporcionada, ficou programado de algum modo em nosso patri­mônio genético.
A explicação é plausível, mas, como a maioria das interpreta­ções evolutivas do comporta­mento humano, não está cienti­ficamente comprovada. Mesmo que a biologia molecular chegue algum dia a descobrir o gene da predileção pelos rios ou pelos rostos simétricos, será muito difícil esclarecer quando e como esses genes se estabeleceram em nossa herança genética.
Figuras atraentes

A psicologia experimental deu origem também à chamada es­tética informacional, campo que adquiriu grande popularidade nas décadas de 60 e 70. Com auxílio de gráficos gerados por computador, pesquisadores ave­riguaram quais formas e padrões nos proporcionam maior prazer. E demonstraram serem os padrões gráficos que estimulam a capaci­dade investigativa do observador, isto é, aqueles capazes de despertar sua curiosidade. Figuras muito simples nos parecem monótonas,-as muito complexas surgem como uma massa confusa e tampouco despertam interesse. As figuras consideradas mais atraentes pela maioria das pessoas têm exatamen­te o nível de complexidade capaz de produzir no aparelho perceptivo estruturas de ordem superior, chamadas ‘supersignos’. Ou seja, um padrão dotado de beleza é caracterizado por um grau ótimo de densidade informacional.
É possível explicar, segundo esse modelo, por que achamos belos os rostos simétricos. Mas a tentativa revela também a fragi­lidade da estética experimental. Para descobrir qual proporção e qual medida de ordem e comple­xidade são especialmente agradá­veis, os pesquisadores da estética informacional apresentaram aos participantes da experiência figuras geométricas simples. Mas círculos, ângulos retos e outros padrões elementares pouco têm a ver com os objetos da vida co­tidiana. É claro que a ordenação interna de um quadro pode ser levada em conta para avaliá-lo esteticamente, mas papel muito mais relevante desempenhado pelo que acrescemos a uma obra, o significado que ela assume para nós, os sentimentos e associações que desperta. E esses critérios, que tanto influem no julgamento estético, não são apreendidos em experiências de laboratório.
Além disso, muitas tentativas de fundamentar a estética partem de forma mais ou menos tácita de um pressuposto superado, ori­ginado com o filósofo alemão Alexander Baumgarten, o fundador da estética moderna. Ele definiu, já no século XVIII, a experiência estética como a forma ‘sensível’ do conhecimento — em oposição à forma ‘racional-conceitual’. O belo, portanto, representaria o pólo oposto da razão,- a produção intelectual e a sensibilidade estética estariam divididas em duas esferas separadas por completo. No en­tanto, todo matemático confirmará que o pensamento racional possui qualidades marcadamente estéticas: a elegância das fórmulas, a simetria dos teoremas, o rigor das provas. ‘Sem estética a ciência não fun­ciona’, afirmou Roger Penrose, da Universidade de Oxford junto com o físico Stephen Hawking, um dos pais da teoria dos buracos negros.

Mona Lisa
“Mona Lisa” por Andy Warhol

Eficiência e elegância
Há 35 anos, o filósofo americano Nelson Goodman, em seu livro Languages of  art, censurava essa se­paração estrita entre as esferas cog­nitiva e emocional,  afirmando que ela está na origem da maior parte das dificuldades na busca de uma teoria da estética: ‘Colocamos, de um lado, impressões dos sentidos, percepções, deduções, hipóteses, fatos e verdade,- de outro, prazer, dor, interesse, satisfação, reações emocionais, simpatia e aversão. Com isso tornamo-nos incapa­zes de perceber que as emoções rancionam cognitivamente na experiência estética‘.
Uma confirmação disso é dada pela neurociência. Diversos experimentos revelam que os sentimentos acompanham quase todas as tarefas cognitivas. Mais ainda: sem essas marcas emocio­nais o cérebro não seria capaz de concluir um grande número de tarefas. Assim, pessoas com danos em áreas cerebrais responsáveis pela avaliação emocional ficam quase incapazes de julgar adequa­damente novas informações.
Se a cognição e a emoção estão tão unidas, não faz sentido separá-las na  experiência estética. Aquilo que nós consideramos belo não é sempre racional, embora a pura racionalidade, enquanto tal, possa ser muito bela. A eficiência e a elegância estão estreitamente ligadas, como mostram não ape­nas um escultor mas também um pizzaiolo iniciante aprendendo a dar forma perfeitamente circular a um pedaço de massa com um rápido movimento das mãos.
As duas estéticas – tanto a partir do alto quanto a partir de baixo – interromperam seu movimento no meio do caminho.Não seria possível prosseguirem em direção uma à outra e chegarem finalmente a um consenso?
Assim como em muitas outras questões de fronteira entre psicolo­gia e filosofia, a neurociência talvez signifique um novo impulso. Ela inicialmente se opõe à idéia da be­leza como pura sensação de prazer ou alegria. Por exemplo, quando são mostradas fotos de rostos fe­mininos atraentes a participantes de um experimento, o centro de recompensa no núcleo accumbens só é ativado se a beldade represen­tada estiver com os olhos fixos no observador. Quando não há o con­tato visual, aquela região cerebral permanece relativamente calma, mas ainda assim os indivíduos tes­tados acham os rostos bonitos. A beleza pode, portanto, prover um sentimento de prazer por meio da ativação do centro de recompensa, mas a decisão sobre se um rosto é atraente ou não independe disso.Outro ponto a favor de um componente racional do senti­mento de beleza é fornecido pelo chamado ‘paradoxo da feiúra’. Muitas coisas que à primeira vista parecem disformes, feias ou até repulsivas ganham, num plano mais elevado,qualidade estética. Dramas ou filmes trágicos entris­tecem o espectador, mas podem, apesar disso, ser belos e irresistíveis. Essas experiências costumeiras não se afinam com a idéia da beleza como simples sentimento de pra­zer. É possível que, na experiência estética, não esteja envolvido um sentimento na acepção clássica, mas um tipo de metaemoção: um sentimento contextualizado que se sobrepõe a outros sentimentos, incluindo os negativos, e adquire qualidade adicional.Experiência difusa.
Além disso, as emoções ‘comuns’ desencadeiam automaticamente, em maior ou menor grau, certas reações corporais características: a cólera é sentida no estômago e perturba o sono, a alegria acelera a pulsação e os músculos da face puxam os cantos da boca para cima em um sorriso. Mas isso não ocorre na experiência estética. Embora ela esteja sem dúvida alguma ligada a certo estado físico, a correlação não é clara. Podemos experimentar a beleza com lágri­mas nos olhos, êxtase incontido ou silêncio contemplativo.
Há ainda outra diferença mar­cante: alegria é um sentimento nebuloso, em parte inconsciente, de natureza visceral e não refletida. Já a experiência estética é mais consciente. Em geral, podemos identificar muito claramente o objeto que consideramos belo, e dizer isso – algo que não ocorre com o sentimento de bem-estar, cujo objeto apreendemos apenas de forma difusa.

A consciência emerge em espe­cial na camada exterior do cérebro (o córtex), ou seja, na parte desse órgão que se desenvolveu mais recentemente e exibiu o maior crescimento no decorrer da evolu­ção humana. Isso nos leva a supor que a experiência da beleza, por ser um processo tão consciente, deve estar também ligada à estrutura cortical do cérebro, ao contrário de outros sentimentos que provêm do sistema límbico, muito mais antigo do ponto de vista da história do de­senvolvimento cerebral. O córtex orbitofrontal, em particular, parece desempenhar um importante papel em nossas percepções de beleza. Nessa porção do lobo frontal, situada acima das órbitas oculares, são realizadas as avaliações das experiências vividas, para definir se algo é bom ou ruim, agradável ou desagradável. Essa área reage, por exemplo, a sabores e cheiros, mas também à música.

Retratos cubistas
Além disso, o córtex frontal ela­bora as representações contextuais que determinam nossos atos, e em relação aos quais ordenamos nossas experiências e ações. É exatamente o que fazemos na experiência estética. A própria palavra ‘estética’ caracteriza não determinada propriedade de um objeto, mas o modo pelo qual o percebemos. Em outras palavras, a mera visão de uma paisagem, de um revestimento de parede ou de um sofá não nos força em absoluto a perguntar se tais objetos são ou não belos. Essa questão envolve muito mais uma atitude consciente que assumimos ao situar esses obje­tos num contexto estético.Como desenvolver uma teoria estética universalmente válida para toda essa multiplicidade de belezas, especialmente quando se observa que, para quase todo valor estético até agora definido, existem casos contrários? A sime­tria, por exemplo, é tomada desde a Antigüidade como o critério de beleza por excelência e, no entanto, que dizer dos retratos cubistas de Picasso? E como conciliar o fato de que as pessoas preferem estru­turas simples e ordenadas com a constatação de que muitas vezes achamos belos certos padrões modernos complexos? Quer se trate de uma equação matemática, de um quadro de Bosch ou de um concerto de Rachmaninoff, os valores estéticos que influenciam o julgamento sempre dependem das preferências do observador. E é essa subjetividade que faz com que haja tantas disputas quanto à beleza.

CÁBOR PAÁL***

*** CÁBOR PAÁL é autor de textos científicos e jornalista da TV alemã. TRADUÇÃO: José Oscar de Almeida Marques.

Fonte: Edição especial da revista Mente&Cérebro


 

Comentários