BUDISMO E AS SENSAÇÕES



Budismo e as Sensações

Os ensinamentos do budismo são um sistema para desenvolver auto-conhecimento como um meio de auto-transformação. Através da obtenção de um entendimento experimental da realidade de nossa própria natureza, podemos eliminar as incompreensões que nos levam a agir mal e a fazer-nos infelizes. Nós aprendemos a agir de acordo com a realidade e, desse modo, a levar vidas produtivas, úteis e felizes.
No Sutta Satipatana, o “discurso do estabelecimento da Atenção Plena”, o Buda apresentou um método prático para desenvolver auto-conhecimento através da auto-observação.
Essa técnica é a meditação Vipassana.
Qualquer tentativa de observar a verdade sobre nós mesmos imediatamente revela que isso que chamamos de “si mesmo” tem dois aspectos: físico e psíquico, corpo e mente. Nós devemos aprender a observar ambos. Mas como podemos realmente experimentar a realidade do corpo e da mente? Aceitar as explicações de outros não é suficiente, nem tampouco é dependendo de mero conhecimento intelectual. Ambos podem guiar-nos no trabalho da auto-exploração, mas cada um de nós deve explorar e experimentar a realidade diretamente dentro de nós mesmos.
Cada um de nós experimenta a realidade do corpo sentindo-o, através das sensações físicas que surgem dentro dele. Com os olhos fechados nós sabemos que temos mãos, ou qualquer outra parte do corpo, porque podemos senti-los. Assim como um livro tem uma forma externa e um conteúdo interno, a estrutura física tem uma realidade externa e objetiva – o corpo (kaya) – e uma realidade interna e subjetiva – a sensação (vedana). Nós usufruimos de um livro lendo as palavras dele, nós experimentamos o corpo tendo sensações. Sem atenção às sensações não pode haver conhecimento direto da estrutura física. Os dois são inseparáveis.
Similarmente, a estrutura física pode ser analisada em forma e conteúdo: a mente (citta) e qualquer coisa que surja na mente (dhamma) – qualquer pensamento, emoção, memória, esperança, medo, qualquer evento mental. Como corpo e sensação não podem ser experimentados separadamente, nós não podemos observar a mente separada do conteúdo da mente. Mas mente e matéria também estão estreitamente interrelacionadas. Qualquer coisa que ocorre em um se reflete no outro. Esse foi um descobrimento-chave do Buda, de importância crucial em seus ensinamentos. Como ele mesmo expressou:
“O que quer que surja na mente é acompanhado por uma sensação“. [1]
Dessa forma, a observação das sensações oferece meios de examinar a totalidade de nosso ser, tanto físico quanto mental.
Essas quatro dimensões da realidade são comuns a todo ser humano: Os aspectos físicos do corpo e sensações; e os aspectos psíquicos da mente e seu conteúdo. Eles provêm as quatro divisões do Sutta Satipatana, os quatro caminhos para o estabelecimento da Atenção Plena, os quatro pontos-de-vista favoráveis para a observação do fenômeno humano. Se essa investigação tem que ser completa, então todas as facetas devem ser experimentadas. E todas as quatro podem ser experimentadas ao observar vedana.
Por essa razão o Buda especialmente insistia na importância da atenção a vedana. No Sutta Brahmajala, um dos discursos mais importantes do budismo, ele disse:
“O iluminado se tornou livre de todos os apegos ao ver que os apegos eram, na verdade, o surgimento e desaparecimento das sensações, o desfrute deles, o perigo deles, o livrar-se deles”
Atenção a vedana, ele afirmava, é um pré-requisito para o entendimento das Quatro Nobres Verdades:
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“Para a pessoa que experimenta as sensações eu mostro o caminho da compreensão do que é o sofrimento, sua origem, seu fim, e o caminho que leva ao fim do sofrimento” [2]
O que é exatamente vedana? O Buda a descreve de várias maneiras. Ele incluiu vedana entre os quatro processos que compõe a mente. No entanto, quando a define mais precisamente, ele fala de vedana como tendo aspectos tanto físicos quanto mentais. A matéria sozinha não consegue sentir nada se a mente não estiver presente. Em um cadáver, por exemplo, não há sensações. É a mente que sente, mas o que ela sente está emaranhado a um elemento físico.
Esse elemento físico tem importância central na prática dos ensinamentos do Buda. O propósito da prática é desenvolver em nós a habilidade para lidar com todas as vicissitudes da vida de forma equilibrada. Nós aprendemos a fazer isso com a meditação ao observar com equanimidade qualquer coisa que aconteça dentro de nós. Com essa equanimidade, podemos quebrar o hábito das reações cegas e, em seu lugar, podemos escolher a melhor atitude em qualquer situação.
O que quer que experimentamos na vida se encontra através dos seis portais da percepção: os cinco sentidos e a mente. E de acordo com a Cadeia das Origens Condicionadas, assim que um contato ocorre com qualquer desses seis portais, assim que encontramos algum fenômeno, físico ou mental, uma sensação é produzida. Se nós não dermos atenção ao que ocorre no corpo, nos manteremos alheios, num nível consciente, à sensação. Nas trevas da ignorância uma reação inconsciente começa seguindo a sensação, um gostar ou desgostar momentâneo que se desenvolve como apego ou aversão. Essa reação se repete e intensifica inúmeras vezes antes de afetar a mente consciente.
Se os meditadores dão importância somente ao que acontece na mente consciente, eles se tornam cientes do processo depois que a reação já aconteceu e ganhou força suficiente para dominá-los. Eles permitem que a faísca de sensação acenda um fogo perigoso antes de tentar extingui-la, trazendo dificuldades desnecessárias para si mesmos. Mas se os meditadores aprendem a observar as sensações dentro do corpo objetivamente, eles permitem que cada faísca se acenda sozinha sem iniciar a combustão. Dando importância ao aspecto físico, tornam-se atentos a vedana assim que ela surge, e podem prevenir-se de qualquer reação.
O aspecto físico de vedana é particularmente importante porque oferece uma experiência vívida e tangível da realidade da impermanência dentro de nós mesmos. Mudanças ocorrem a cada momento dentro de nós, manifestando-se no jogo das sensações. É nesse nível que a impermanência deve ser experimentada. A observação das sensações constantemente mudando permite o conhecimento da nossa própria natureza efêmera. Esse conhecimento torna óbvia a futilidade do apego a algo que é tão transitório. Assim a experiência direta de anicca automaticamente faz surgir o desapego, com o qual nós podemos não só evitar reações novas de desejo e repulsa, mas também eliminar o próprio hábito de reagir. Dessa forma nós gradualmente liberamos a mente do sofrimento. A não ser que o aspecto físico seja incluído, a atenção a vedana permanece parcial e incompleta. Por isso o Buda repetidamente enfatizava a importância da experiência da impermanência através das sensações físicas. Ele disse:
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“Aquele que continuamente se esforça em dirigir sua atenção por todo o corpo, que se abstém de ações indignas, e que procura fazer o que deve ser feito, tal pessoa consciente, com pleno entendimento, está livre de impurezas” [3]
As causas do sofrimento são tanha: desejo e aversão. Normalmente nos parece que geramos reações de desejo e aversão pelos vários objetos que nos deparamos através dos cinco sentidos e a mente. O Buda, no entanto, descobriu que entre o objeto e a reação existe um elo perdido: vedana. Nós reagimos não à realidade exterior, mas às sensações dentro de nós. Quando aprendemos a observar as sensações sem reagir com desejo ou aversão, a causa do sofrimento não surge, e o sofrimento acaba. Portanto, observar vedana é essencial para praticar o que o Buda ensinou. E essa observação deve ser feita no nível das sensações físicas, se quisermos que a consciência de vedana seja completa. Com a consciência das sensações físicas nós podemos penetrar na raiz do problema e removê-lo. Podemos observar nossa própria natureza até as profundezas e nos liberarmos do sofrimento.
Compreendendo a importância central da observação das sensações nos ensinamentos do Buda, nós podemos obter um entendimento fresco do Satipatana Sutta. O discurso começa listando os objetivos de satipatana, de estabelecer a Atenção Plena:
“A purificação dos seres; A transcendência da tristeza e lamentações; A extinção do sofrimento físico e mental; A prática de um caminho para a verdade; A experiência direta da realidade última, o Nibbana [4]
Ele então rapidamente explica como atingir esses objetivos:
“Assim um meditador permanece ardente em completo entendimento e consciência, observando corpo no corpo, observando sensações nas sensações; observando mente na mente, observando os conteúdos da mente nos conteúdos da mente, havendo abandonado o desejo e a aversão pelo mundo” [4]
O que ele quer dizer com “observando o corpo no corpo, sensações nas sensações” e assim por diante? Para um meditador de Vipassana, essas expressões são luminosas em sua claridade. Corpo, sensações, mente e conteúdo mental são as quatro dimensões de um ser humano. Para entender esse fenômeno humano corretamente, cada um de nós deve experimentar a realidade de nós mesmos diretamente. Para atingir essa experiência direta, o meditador deve desenvolver duas qualidades: Atenção Plena (sati) e Entendimento Completo (sampajana). O discurso é chamado “O Estabelecimento da Atenção Plena”, mas a atenção é incompleta sem o entendimento, uma visão profunda da nossa própria natureza, dentro da impermanência desse fenômeno que nós chamamos “eu”.
A prática do satipatana leva os meditadores a perceberem suas naturezas essencialmente efêmeras. Quando eles têm essa percepção pessoal, então a Atenção Plena fica firmemente estabelecida – atenção correta conduzindo à liberação. Então automaticamente o desejo e a aversão desaparecem, não somente em relação ao mundo externo, mas também em relação ao mundo interno, onde o desejo e a aversão estão mais profundamente assentados e mais comumente despercebidos – no apego irracional e visceral ao nosso corpo e à nossa mente. Enquanto esse apego subjacente persistir, nós não poderemos estar livres do sofrimento.
budismoO “Discurso do Estabelecimento da Atenção Plena” primeiramente discute a observação do corpo. Esse é o aspecto mais aparente da estrutura física-mental e, portanto, o ponto apropriado por onde iniciar o trabalho da auto-observação. A partir daqui, a observação das sensações, da mente e dos conteúdos mentais naturalmente se desenvolve. O discurso explica várias maneiras para iniciar a observar o corpo. A primeira e mais comum é a atenção à respiração. Outra maneira de começar é dando atenção aos movimentos corporais. Mas independente de como iniciamos a jornada, há certos estágios que devemos passar no caminho à meta final. Eles são descritos num parágrafo de importância crucial no discurso:
“Dessa forma ele permanece observando corpo no corpo, internamente ou externamente, ou tanto interna quanto externamente. Ele permanece observando o fenômeno dos surgimentos no corpo. Ele permanece observando os fenômenos de desaparecer no corpo. Ele observa os fenômenos de surgir e de desaparecer no corpo. Agora a Atenção se apresenta à ele: “Isto é corpo”. Essa atenção se desenvolve a tal nível que só restam o discernimento e a observação, e ele permanece desapegado sem desejar nada no mundo” [4]
A grande importância dessa passagem se mostra pelo fato de que ela é repetida não somente no final de cada sessão sobre a observação do corpo, mas também dentro das várias e sucessivas divisões do discurso que trata da observação das sensações, da mente e dos conteúdos mentais. (Nessas três últimas sessões a palavra corpo é substituída por sensações, mente e conteúdos mentais, respectivamente) Essa passagem, então, descreve o lugar comum na prática do satipatana. Devido às dificuldades que ele apresenta, sua interpretação variou amplamente. No entanto as dificuldades desaparecem quando a passagem é entendida como referindo-se à atenção às sensações. Na prática do satipatana, os meditadores devem atingir uma compreensão profunda de suas próprias naturezas. A ferramenta para essa visão penetrante é a observação das sensações incluindo automaticamente a observação das outras três dimensões do fenômeno humano. Portanto, apesar de que os primeiros passos possam diferir, a partir de certo ponto a prática deve envolver a atenção às sensações.
Então, o trecho explica, os meditadores começam observando as sensações surgindo no interior do corpo ou no exterior, na superfície do corpo, ou em ambos. Isto é, da atenção a algumas partes e não em outras, eles gradualmente desenvolvem a habilidade de perceber sensações por todo o corpo. Quando eles começam a praticar, podem inicialmente perceber sensações de natureza intensa que surgem e parecem persistir por algum tempo. Os meditadores estão cientes de seu surgimento e, depois de algum tempo, de seu desaparecimento. Neste estágio eles ainda estão experimentando a realidade aparente do corpo e da mente, suas naturezas integradas, aparentemente sólidas e duradouras. Mas conforme continuamos praticando, um estágio é atingido no qual a solidez se dissolve espontaneamente, e a mente e o corpo são experimentados em sua verdadeira natureza como uma massa de vibrações, surgindo e desaparecendo a cada momento. Com essa experiência, finalmente compreendemos o que o corpo, as sensações, a mente e os conteúdos mentais realmente são: um fluxo de fenômenos impessoais constantemente mudando.
A apreensão direta, da realidade última, da mente e da matéria, progressivamente destrói nossas ilusões, confusões e preconceitos. Até mesmo idéias corretas, que antes eram aceitas por fé ou dedução intelectual, adquirem novo significado quando experimentadas. Gradualmente, através da observação da realidade interna, todo o condicionamento que distorcem a percepção é eliminado. Somente a pura atenção e a sabedoria permanecem.
Conforme a ignorância desaparece, as tendências subjacentes de desejo e de aversão são erradicadas, e o meditador se torna livre de todos os apegos – sendo o apego mais profundo aquele voltado ao próprio corpo e mente. Quando esse apego é eliminado, o sofrimento desaparece e nos tornamos liberados.
O Buda costumava dizer:
“O que quer que sintamos está relacionado ao sofrimento”
budismoPortanto, vedana é um meio ideal para explorar a verdade do sofrimento. Sensações desagradáveis são obviamente sofrimento, mas as sensações mais prazerosas são também uma forma de agitação sutil. Toda sensação é impermanente. Se estamos apegados a sensações prazerosas, quando elas vão embora, o sofrimento aparece. Então toda sensação contém uma semente de sofrimento. Por essa razão, enquanto falava do caminho que conduz ao fim do sofrimento, o Buda falava do caminho que conduz o surgimento de vedana e do que conduz ao seu fim. Enquanto estivermos no campo condicionado da mente e da matéria, sensações e sofrimento persistirão. Elas cessam somente quando nós transcendemos esse campo para experimentar a realidade última do nibbana.
O Buda disse:
“Um homem não está aplicando o Dhamma em sua vida só porque fala muito sobre budismo. Mas mesmo que alguém tenha ouvido muito pouco sobre isso, se ele vê a Lei da Natureza através do seu próprio corpo, então realmente vive de acordo com ela, e não pode jamais esquecer do Dhamma.” [5]
Nossos próprios corpos são testemunhos da verdade. Quando os meditadores descobrem a verdade interna, ela se torna real para eles, e eles vivem de acordo com ela. Cada um de nós pode perceber essa verdade aprendendo a observar as sensações dentro de nós mesmos, e fazendo assim podemos atingir a liberação do sofrimento.
fonte: “A Arte de Viver” – Meditação Vipassana conforme S. N. Goenka – de William Hart
tradução: Sebastian Valle
[3] - Titthayatana Sutta (em inglês)
[4] – Satipatana Sutta
[5] – Dhammapada
 
Fonte:http://www.livredesi.com/

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