A ESTRATÉGIA DO NÃO-EU E A INTEGRIDADE DA VACUIDADE - AJAAN THANISSARO




A Estratégia do Não-Eu
Por
Ajaan Thanissaro
 
Os livros sobre o Budismo com freqüência afirmam que um dos dogmas metafísicos mais básicos do Buda é que não existe uma alma ou um eu. No entanto, uma pesquisa nos discursos do Cânone em Pali - o registro existente mais antigo dos ensinamentos do Buda - sugere que o Buda ensinou a doutrina de anatta ou não-eu, não como uma afirmação metafísica, mas como uma estratégia para obter a libertação do sofrimento. Se alguém usar o conceito de não-eu para não se identificar com os fenômenos, irá ficar além do alcance de todo o sofrimento e estresse. Quanto àquilo que se encontra além do sofrimento e estresse, o Cânone menciona que embora possa ser experimentado, está além do alcance de uma descrição e por isso tais descrições como "eu" ou "não-eu" não são aplicáveis.

A evidência para esta leitura do Cânone está concentrada em quatro pontos:

1. Numa ocasião em que é feito um pedido direto ao Buda para que tome uma posição em relação à questão ontológica, se existe ou não um eu, ele se recusa a responder.

2. Os trechos que afirmam de forma mais categórica que não existe um eu estão qualificados de tal maneira que eles cobrem toda a realidade que pode ser descrita, mas não toda a realidade que pode ser experimentada.

3. As idéias de que não existe um eu estão niveladas com as idéias de que existe um eu como uma "cativeiro de idéias" as quais uma pessoa que tem como objetivo a libertação do sofrimento faria bem em evitar.

4. A pessoa que alcançou o objetivo da libertação vê a realidade de tal maneira que todas as idéias - mesmo aquelas noções mais básicas como eu e não-eu, verdadeiro e falso - não têm mais poder de influenciar a mente.

O que segue é uma seleção de trechos relevantes do Cânone. Eles são oferecidos com a advertência de que em última análise nada conclusivo pode ser provado através da citação de textos. Estudiosos têm apresentado argumentos para colocar em dúvida praticamente tudo no Cânone - quer seja apresentando novas traduções para termos cruciais ou questionando a autenticidade de praticamente cada trecho contido nele - e dessa forma o único teste verdadeiro para qualquer interpretação é colocá-la em prática e verificar aonde ela conduz em relação a obter a libertação da mente.

* * *

1. Compare os dois diálogos a seguir.

Tendo sentado a um lado, o errante Vacchagotta disse ao Abençoado, 'Então, Venerável Gotama, existe um eu?' Quando isso foi dito, o Abençoado ficou em silêncio. 'Então, não existe um eu?' Uma segunda vez o Abençoado ficou em silêncio.

Então o errante Vacchagotta levantou-se do seu assento e partiu.

Em seguida, não muito tempo após o errante Vacchagotta ter partido o Venerável Ananda disse ao Abençoado, 'Porque, senhor, o Abençoado não respondeu quando foi perguntado pelo errante Vacchagotta?' - 'Ananda, se eu, tendo sido perguntado pelo errante Vacchagotta se existe um eu, tivesse respondido que existe um eu, isso estaria conforme com aqueles brâmanes e contemplativos que são os expoentes da doutrina eternalista (isto é, a idéia de que existe uma alma eterna). E se eu…tivesse respondido que não existe um eu, isso estaria conforme com aqueles brâmanes e contemplativos que são os expoentes do niilismo (isto é de que a morte é a aniquilação da experiência). Se eu…tivesse respondido que existe um eu, isso seria compatível com o surgimento do conhecimento de que todos os fenômenos são não-eu?

'Não, Senhor.'

'E se eu…tivesse respondido que não existe um eu, o confuso Vacchagotta ficaria ainda mais confuso: "Aquele eu que eu costumava ter, agora não existe?"' [SN XLIV.10]


Mogharaja:
"Como alguém deve ver o mundo de modo a não ser visto pelo Senhor da Morte?”

O Buda:
“Mogaraja, sempre com atenção plena, desenraizando a idéia de uma identidade, veja o mundo como vazio, assim você terá superado a morte. O Senhor da morte não verá aquele que vê o mundo dessa forma.”
[Snp V.15]

O primeiro trecho é um dos mais controversos no Cânone. Aqueles que acreditam que o Buda tomou uma posição ou outra na questão sobre se existe ou não um eu têm que explicar o silêncio do Buda e normalmente o fazem focando na sua declaração final para Ananda. Se uma outra pessoa mais madura espiritualmente que Vacchagotta tivesse feito a pergunta, eles dizem, o Buda teria revelado a sua verdadeira posição.

Esta interpretação, no entanto, ignora as duas primeiras sentenças do Buda para Ananda. Não importa quem faça a pergunta, dizer que existe ou não existe um eu seria cair numa das duas posições filosóficas que o Buda evitou durante toda a sua carreira. Quanto à terceira sentença, ele estava preocupado em não contradizer "o surgimento do conhecimento de que todos os fenômenos são não-eu" não porque ele sentia que esse conhecimento em si era correto sob o ponto de vista metafísico, mas porque ele viu que o seu surgimento poderia conduzir à libertação. (Trataremos do conteúdo desse conhecimento no ponto 2 abaixo)

Esse ponto é confirmado quando fazemos uma comparação com o segundo discurso. A diferença fundamental entre os dois diálogos está nas perguntas feitas: No primeiro, Vacchagotta pede ao Buda que tome uma posição sobre a questão, se existe ou não um eu, e o Buda fica em silêncio. Na segunda, Mogharaja pergunta sobre uma forma de ver o mundo para que se possa superar a morte e o Buda responde ensinando-o a ver o mundo sem relacioná-lo à noção de um eu. Isso sugere que, ao invés de ser uma afirmação de que não existe um eu, o ensinamento sobre não-eu é mais uma técnica de percepção que tem como objetivo conduzir para além da morte, Nibbana - uma forma de perceber as coisas sem a iidentificação de um eu, nenhuma noção de que 'eu sou', nenhum apego a 'eu' ou 'meu'.

Portanto, parece mais honesto tomar o primeiro diálogo pelo que aparenta ser e dizer que a questão, se existe ou não um eu, é algo sobre o qual o Buda não tomou uma posição, sem levar em consideração se ele estava falando para uma pessoa confusa espiritualmente como Vacchagotta ou uma pessoa mais avançada como Ananda. Para ele, a doutrina do não-eu é uma técnica ou estratégia para a libertação e não uma posição metafísica ou ontológica.

* * *

2. Os dois trechos a seguir, tomados em conjunto, são com freqüência usados como a prova mais forte de que o Buda negava a existência de um eu de forma muito ambígua. Note, no entanto, como os termos "mundo" e "Todo" são definidos.

Ananda:

“Venerável senhor, dizem ‘o mundo está vazio, o mundo está vazio.’ Em relação a que dizem que ‘o mundo está vazio’?”

“Ananda, porque está vazio de um eu ou algo que pertença a um eu é que dizem, ‘O mundo está vazio.’ E o que é que está vazio de um eu ou algo que pertença a um eu? O olho, Ananda, está vazio de um eu ou algo que pertença a um eu. Formas...consciência no olho...Contato no olho ...Qualquer sensação que surja tendo o contato na mente como condição - experimentada como prazer, dor ou nem prazer, nem dor - está vazio de um eu ou algo que pertença a um eu.

“Ananda, é porque está vazio de um eu ou algo que pertença a um eu que dizem, ‘O mundo está vazio.’” [SN XXXV.85]


“O que é o todo? Simplesmente, o olho e as formas, o ouvido e os sons, o nariz e os aromas, a língua e os sabores, o corpo e os tangíveis, a mente e os objetos mentais. Isso, bhikkhus é chamado o Todo. Qualquer um que diga, ‘Rejeitando esse todo, eu descreverei um outro,’ isso seria mera jactância por parte dele. Se ele fosse questionado, seria incapaz de responder e além disso ficaria aflito. Porque? Porque, bhikkhus, isso não estaria dentro do domínio dele.” [SN XXXV.23]

Agora, se os seis sentidos e os seus objetos - algumas vezes denominados as seis bases do contato - constituem o mundo ou o Todo, existe algo que esteja além deles?

MahaKotthita:
"Com a cessação e desaparecimento sem deixar vestígios das seis bases do contato (visão, audição, olfato, sabor, corpo e mente) é o caso de que existe algo mais?

Sariputta:
"Não diga isso, meu amigo.

MahaKotthita:
Com a cessação e desaparecimento sem deixar vestígios das seis bases do contato, é o caso de que não existe algo mais?

Sariputta:
Não diga isso, meu amigo.

MahaKotthita:
... é o caso de ambos, existe e não existe algo mais?

Sariputta:
Não diga isso, meu amigo.

MahaKotthita:
... é o caso de que nem existe, nem não existe algo mais?

Sariputta:
Não diga isso, meu amigo.

MahaKotthita:
Sendo perguntado ... se existe algo mais, você diz 'Não diga isso, meu amigo'. Sendo perguntado ... se não existe algo mais ... se ambos, existe e não existe algo mais ... se nem existe, nem não existe, você diz, 'Não diga isso, meu amigo'. Agora, como deve ser entendido o significado dessa afirmação?

Sariputta:
Dizendo ... é o caso de que existe algo mais…é o caso de que não existe algo mais…é o caso de ambos, existe e não existe algo mais ... é o caso de que nem existe, nem não existe algo mais, está-se diferenciando a não diferenciação. Até onde alcancem as seis bases do contato é até onde alcança a diferenciação. Até onde alcance a diferenciação é até onde alcançam as seis bases do contato. Com a cessação e desaparecimento sem deixar vestígio das seis bases do contato, ocorre a cessação, o alívio da diferenciação. [AN IV.174]

A esfera da não diferenciação, embora não possa ser descrita, pode ser compreendida através da experiência direta.

"Bhikkhus, essa esfera é para ser compreendida aonde o olho (visão) cessa e a percepção (notação mental) da forma desaparece. Essa esfera é para ser compreendida, aonde o ouvido cessa e a percepção do som desaparece… aonde o nariz cessa e a percepção do aroma desaparece… aonde a língua cessa e a percepção do sabor desaparece… aonde o corpo cessa e a percepção dos tangíveis desaparece…aonde a mente cessa e a percepção dos objetos mentais desaparece: essa esfera é para ser compreendida. [SN XXXV.116]

Embora este último trecho indique que existe uma esfera para ser experimentada além das seis esferas sensuais, ela não deve ser tomada como um "eu mais elevado". Este ponto é colocado no Grande Discurso da Causação, em que o Buda classifica todas as teorias do eu em quatro grandes categorias: aquelas que descrevem um eu que é ou (a) dotado de forma (um corpo) e finito, ou (b) dotado de forma e infinito; (c) sem forma e finito; (d) sem forma e infinito. O texto não exemplifica as várias categorias, mas podemos citar as seguintes como ilustração: (a) teorias que negam a existência de uma alma e identificam o eu com o corpo; (b) teorias que identificam o eu com todos os seres ou com o universo; (c) teorias de almas discretas, individuais; (d) teorias de uma alma unitária ou identidade imanente em todas as coisas. Ele a seguir rejeita todas essas quatro categorias.

Um outro trecho mencionado com freqüência para mostrar que o Buda ensinou que não existe um eu é um verso do Dhammapada, especialmente a terceira estrofe, em que a palavra dhamma se refere tanto às coisas condicionadas como não condicionadas. Observe, no entanto, o que o verso diz como um todo: esses insights são parte do caminho e não o objetivo no final do caminho.

'Todas as coisas condicionadas são impermanentes' --
Quando a pessoa vê isso com discernimento
e se desencanta com o sofrimento,
Esse é o caminho para a purificação.

'Todas as coisas condicionadas são insatisfatórias' --
Quando a pessoa vê isso com discernimento
e se desencanta com o sofrimento,
Esse é o caminho para a purificação.

'Todos os dhammas são não-eu' --
Quando a pessoa vê isso com discernimento
e se desencanta com o sofrimento,
Esse é o caminho para a purificação. [Dhp 277-79]

Como veremos no trecho abaixo, o Buda afirma que o meditador alcança a iluminação ao ver os limites de todas as coisas condicionadas, ao ver o que está além delas e ao não se apegar a nenhuma delas. No verso seguinte, o inquiridor do Buda se refere ao objetivo como um dhamma, (fenômeno), enquanto o Buda o descreve como a remoção ou eliminação de todos os dhammas - e dessa forma ele vai além de "todos os dhammas" e qualquer afirmação possível que possa ser feita a seu respeito. Uma vez que o meditador tenha realizado isso, nenhuma palavra - ser, não ser, eu , não-eu – se aplica.

Upasiva:

"Aquele que chegou ao fim: ele é aniquilado, ou permanece eternamente intacto? Por favor, sábio, explique isso para mim pois esse fenômeno é do seu conhecimento.

O Buda:

"Não há nada através do qual se possa medir aquele que chegou ao fim. Aquilo através do qual alguém poderia defini-lo - não se aplica no caso dele. Quando todos os fenômenos são eliminados, todos os meios de definição também são eliminados. [Snp V.6]

* * *

3. Embora o conceito "não-eu" seja uma maneira útil de se desvencilhar das ligações e apegos que conduzem ao sofrimento, a idéia de que não existe um eu é simplesmente uma entre muitas idéias metafísicas ou ontológicas que atam as pessoas ao sofrimento.

"Neste caso, bhikkhus, uma pessoa comum sem instrução...não entende o tipo de coisas que merecem atenção e que tipo de coisas não merecem atenção. Assim sendo, ela se ocupa com aquelas coisas que não merecem atenção e não se ocupa com as coisas que merecem atenção. É desta forma que ela se ocupa sem sabedoria: ‘Eu existi no passado? Não existi no passado? O que fui no passado? Como eu era no passado? Tendo sido que, no que me tornei no passado? Existirei no futuro? Não existirei no futuro? O que serei no futuro? Como serei no futuro? Tendo sido que, no que me tornarei no futuro?’ Ou então ela está no seu íntimo perplexa acerca do presente: ‘Eu sou? Eu não sou? O que sou? Como sou? De onde veio este ser? Para onde irá?’

Quando ela se ocupa dessa forma, sem sabedoria, uma entre seis idéias surgem nela. A idéia de que ‘o eu existe para mim’ surge como verdadeira e consagrada;
ou a idéia de que ‘o eu não existe para mim’

ou a idéia de que ‘eu percebo o eu através do eu’
ou a idéia de que ‘eu percebo o não-eu através do eu’
ou a idéia de que ‘eu percebo o eu através do não-eu’
ou então ela tem uma idéia como esta: ‘É esse meu eu que fala e sente e experimenta aqui e ali o resultado de boas e más ações; e esse meu eu é permanente, interminável, eterno, não sujeito à mudança e irá durar tanto tempo quanto a eternidade.

A essa idéia especulativa, bhikkhus, se denomina um emaranhado de idéias, uma confusão de idéias, idéias contorcidas, idéias vacilantes, idéias que aprisionam. Presa por idéias que aprisionam, a pessoa comum sem instrução não se vê livre do nascimento, envelhecimento e morte, da tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero; ela não se vê livre do sofrimento, eu digo.

Um nobre discípulo bem instruído...entende quais são as coisas que merecem atenção e quais coisas não merecem atenção. Sendo assim, ele não se ocupa com as coisas que não merecem atenção, ele se ocupa com as coisas que merecem atenção... Ele aplica sua atenção com sabedoria: ‘Isto é sofrimento’...Esta é a origem do sofrimento’...Esta é a cessação do sofrimento’...Este é o caminho que conduz à cessação do sofrimento’. Quando ele aplica a sua atenção com sabedoria desta forma, três grilhões são abandonados: a idéia da existência de um eu, a dúvida e o apego a preceitos e rituais. [MN 2]

* * *

4. Portanto, embora a pessoa que esteja no caminho precise fazer uso do Entendimento Correto, ele ou ela transcendem todos os entendimentos ao alcançar o objetivo da libertação. Para uma pessoa que atingiu o objetivo, a experiência ocorre sem que um 'sujeito' ou 'objeto' esteja sobreposto a esta, sem a interpretação da experiência ou daquilo que é experimentado. O que existe é a experiência em si mesma.

"Bhikkhus, tudo aquilo que no mundo, incluindo os seus devas, maras e brahmas, esta população com seus contemplativos e brâmanes, seus príncipes e povo é visto, ouvido, sentido, conscientizado, buscado, procurado, ponderado pela mente: tudo isso eu entendo. Tudo aquilo que no mundo, incluindo os seus devas, maras e brahmas, esta população com seus contemplativos e brâmanes, seus príncipes e o povo é visto, ouvido, sentido, conscientizado, buscado, procurado, ponderado pela mente: tudo isso eu compreendi completamente; tudo isso é do conhecimento do Tathagata, mas o Tathagata não se estabelece nisso

Portanto, bhikkhus, ao ver aquilo que é para ser visto, o Tathagata não concebe algo visível separado do objeto visto. Ele não concebe o não visto. Ele não concebe um objeto digno de ser visto. Ele não concebe aquele que vê.

Ao ouvir … Ao sentir … Ao conscientizar aquilo que é para ser conscientizado, o Tathagata não concebe algo conscientizável separado do objeto conscientizado. Ele não concebe o não conscientizado. Ele não concebe um objeto digno de se conscientizado. Ele não concebe aquele que conscientiza.

Portanto, bhikkhus, o Tathagata, sendo o mesmo com relação a todos os fenômenos que podem ser vistos, ouvidos, sentidos e conscientizados, é ‘Assim.’ E eu lhes digo: Não há nenhum outro ‘Assim’ mais elevado ou mais sublime.

“Tudo aquilo que é visto, ouvido, sentido ou apegado,
É estimado como verdadeiro pelos outros,
Entre aqueles entricheirados nas suas próprias idéias,
Sendo ‘Assim’ eu não tomo nenhuma como verdadeira ou falsa.

Tendo visto esse gancho muito antes,
No qual gerações estão fisgadas, empaladas.
‘Eu entendo, eu vejo, de fato é assim!’
Não há nada que sujeite os Tathagatas.”
[AN IV.24]

Uma idéia é verdadeira ou falsa apenas quando alguém julga com que precisão ela se refere a outra coisa. Se alguém a considera simplesmente como uma afirmação, um evento em si mesmo, verdadeiro ou falso já não se aplica. Portanto para o Tathagata que nas experiências não impõe noções de sujeito e objeto e considera visões, sons, sensações e pensamentos exclusivamente em si mesmos, as idéias não são nem verdadeiras nem falsas, mas apenas fenômenos a serem experimentados. Sem a noção de sujeito, não existe base para "Eu sei, eu vejo", sem a noção de objeto, não existe base para, "Isto é exatamente como é". Idéias sobre o verdadeiro, falso, eu, não-eu, etc., perdem dessa forma todo o seu poder de controle e a mente fica livre para ser Tathata: intacta, sem estar influenciada por nada de nenhuma forma.

"Aqueles habilidosos (em julgar) dizem que (uma idéia se torna) um grilhão se, apoiando-se nela, alguém considera todo o demais como inferior. [Snp IV.5]


"Aquele que pensa de si mesmo
‘igual,’
‘superior,’ ou
‘inferior,’
com base nisso ele disputa;
enquanto que aquele que não é afetado
por essas medidas,
‘igual,’
‘superior,’ ou
‘inferior,’
não ocorrem.

De que o brâmane diria ‘verdadeiro’
ou ‘falso,’
disputando com quem:
nele em quem ‘igual,’ ‘desigual’ não existe..

Tal como o lótus
não é maculado pela água e lama,
assim também o sábio.
um expoente da paz,
sem cobiça,
não é maculado pela sensualidade
e pelo mundo.

Quem conquistou a sabedoria não é medido,
Não tem orgulho,
das idéias ou
por aquilo que é pensado
pois ele não tem apego por isso.
Ele não é seduzido
pela ação, nem aprendizado,
desapegado em todas as circunstâncias.

Não há vínculos naquele que está livre das idéias,
Não há delusões naquele que está libertado através da sabedoria..
Aqueles que se agarram a percepções e idéias
seguem batendo cabeça
no mundo.
[Snp IV.9]


“Então o Mestre Gotama não apóia nenhuma opinião especulativa?”

“ Vaccha, ‘opinião especulativa’ é algo que o Tathagata colocou de lado. Pois o Tathagata, Vaccha, viu isso: ‘Assim é a forma material, essa é a sua origem, essa é a sua cessação; assim é a sensação, essa é a sua origem, essa é a sua cessação; assim é a percepção ... assim são as formações ... assim é a consciência, essa é a sua origem, essa é a sua cessação’. Então, eu digo, com a destruição, desaparecimento, cessação, desistência e abandono de toda a concepção de idéias, de todas as invenções, de todas as fabricações de um eu, de todas as fabricações de um meu e da tendência subjacente para a presunção, o Tathagata está libertado através do desapego.” [MN 72]


Isto, bhikkhus, o Tathagata sabe: esses pontos de vista assim formulados e agarrados irão conduzir a tal e qual destino num outro mundo. Isso o Tathagata sabe, e ele sabe muito mais além disso, mas ele não tem apego por esse conhecimento. E estando assim desatado ele experimenta a perfeita paz, e tendo compreendido como na verdade é, a origem e a cessação das sensações, a gratificação, o perigo e a escapatória das sensações, o Tathagata está libertado sem restar nenhum resíduo. [DN 1]

Quer estes quatro argumentos sejam ou não fiéis aos ensinamentos do Buda, é importante lembrar o seu objetivo principal ao apresentar a doutrina do não-eu: para que aqueles que a utilizam possam obter a libertação do sofrimento e estresse.

“Bhikkhus, vocês até podem se agarrar a essa doutrina do eu que não faça surgir a tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero naquele que nela se agarre. Mas vocês conseguem ver alguma doutrina do eu como essa bhikkhus?”

“Não venerável senhor”

“...Eu também não consigo...Bhikkhus, o que vocês pensam? Se as pessoas levassem embora a grama, gravetos, galhos e folhas deste bosque de Jeta ou se os queimassem, ou fizessem com eles o que desejassem, vocês pensariam: ‘As pessoas estão nos levando ou estão nos queimando, ou estão fazendo conosco o que desejam?’

“Não, venerável senhor. Porque não? Porque isso não é nem nosso eu, nem pertence ao nosso eu”.

“Da mesma forma, bhikkhus, tudo aquilo que não é seu, abandonem-lo. Ao abandoná-lo, isso irá conduzir ao seu bem-estar e felicidade por muito tempo. E o que, bhikkhus, não é seu? A forma material não é sua ... A sensação não é sua ... A percepção não é sua ... As formações não são suas ... A consciência não é sua, abandonem-la. Ao abandoná-la, isso irá conduzir ao seu bem-estar e felicidade por muito tempo. [MN 22]


O Ven. Sariputta disse: “ Amigos, em terras estrangeiras existem nobres e brâmanes, chefes de família e contemplativos que são sábios e que sabem diferenciar e que questionarão um bhikkhu: ‘Qual é a doutrina do seu mestre? O que ele ensina?Assim perguntados vocês devem responder, ‘Nosso mestre ensina a remoção do desejo e cobiça.’

"...desejo e cobiça pelo que?"

"...desejo e cobiça pela forma, sensação, percepção, fabricações e consciência."

"...vendo qual perigo que o seu mestre ensina a remoção do desejo e cobiça pela forma ... pelas sensações ... pelas percepções ... pelas formações ... pela consciência?

"...Quando alguém não está livre da paixão, desejo, afeição, sede, cobiça e ambição pela forma ... pelas sensações ... pelas percepções ... pelas formações ... pela consciência, então por qualquer mudança e alteração nessa consciência, surge a tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero."

"...E vendo qual beneficio o seu mestre ensina a remoção do desejo e cobiça pela forma ... pelas sensações ... pelas percepções ... pelas formações ... pela consciência?"

"...Quando alguém está livre da paixão, desejo, afeição, sede, cobiça e ambição pela forma ... pelas sensações ... pelas percepções ... pelas formações ... pela consciência, não surge nenhuma tristeza, lamentação, dor, angústia, ou desespero." [SN XXII.2]


“Muito bem, Anuradha. Tanto antes, como agora, eu declaro somente o sofrimento e a cessação do sofrimento.” [SN XXII.86]
 
 
Fonte:http://www.acessoaoinsight.net/arquivo_textos_theravada/estrategia_naoeu.php


A Integridade da Vacuidade
Por
Ajaan Thanissaro
 
 
Apesar da sutileza dos seus ensinamentos, o Buda tinha um teste simples para medir a sabedoria. Você é sábio, ele dizia, quando consegue fazer coisas que não gosta de fazer, mas que sabe irão resultar em felicidade, e de evitar fazer coisas que você gosta de fazer, mas que sabe irão resultar em dor e prejuízo.

Ele deduziu esse padrão de sabedoria do seu insight sobre a radical importância da ação intencional em moldar a nossa experiência de felicidade e tristeza, prazer e dor. Dada a importância das ações que, no entanto, são com freqüência mal direcionadas, a sabedoria tem de ser tática, estratégica, ao fomentar ações que sejam realmente benéficas. Tem de ser mais astuta que as preferências míopes, para produzir uma felicidade duradoura.

Porque o Buda observou todos os aspectos da experiência, do grosseiro ao sutil, em relação às ações intencionais e os seus resultados, o seu padrão tático para a sabedoria também se aplica a todos os níveis, da sabedoria simples da generosidade até a sabedoria da vacuidade e da perfeita iluminação. A sabedoria em todos os níveis é sábia, porque ela funciona. Ela influencia aquilo que você faz e a felicidade resultante. E para que funcione, ela requer integridade: a disposição para olhar com honestidade para os resultados das suas ações, admitir quando você tiver causado dano e mudar o seu modo de agir para não repetir o mesmo erro outra vez.

O que impressiona em relação a esse padrão de sabedoria é a sua objetividade e praticidade. Isso pode ser uma surpresa, pois a maioria das pessoas não pensa na sabedoria Budista como bom senso e descomplicação. Ao invés, a frase “Sabedoria Budista” invoca ensinamentos mais abstratos e paradoxais que desafiam o bom senso – sendo a vacuidade o principal exemplo. A vacuidade, nos disseram, significa que nada possui existência inerente. Em outras palavras, num nível básico, as coisas não são aquilo que por convenção tomamos por “coisas.” Elas são processos que de forma nenhuma estão separadas de outros processos dos quais elas dependem. Essa é uma idéia filosófica sofisticada que fascina o filosofante, mas que não oferece um apoio muito claro para ajudá-lo a levantar mais cedo para meditar numa manhã fria e tampouco para convencê-lo a abandonar um vício destrutivo.

Por exemplo, se você é alcoólatra, não é porque você sente que o álcool tem algum tipo de existência inerente. É porque, de acordo com os seus cálculos, o prazer imediato derivado do álcool tem mais peso que o dano a longo prazo que ele causa na sua vida. Esse é um princípio geral: o apego a um vício não é um problema metafísico. Ele é um problema tático. Temos apego às coisas e às nossas ações, não devido ao que pensamos que elas sejam, mas devido ao que acreditamos que elas possam fazer pela nossa felicidade. Se prosseguirmos superestimando o prazer e subestimando a dor que elas causam, continuaremos apegados a elas independentemente do que, em última análise, acreditamos que elas sejam.

Como o problema é tático, a solução tem de ser tática também. A cura para o vício e para o apego encontra-se na reeducação do seu pensamento e das suas intenções através do desenvolvimento da noção do poder das suas ações e da possível felicidade que você poderá alcançar. Isso significa aprender a ser mais honesto e sensível para com as suas ações e as suas conseqüências, e ao mesmo tempo permitir-se imaginar e dominar rotas alternativas para uma felicidade mais completa, com menos desvantagens. Idéias metafísicas podem algumas vezes participar da equação, mas elas, no máximo, desempenham um papel secundário. Muitas vezes são irrelevantes. Mesmo se você visse o álcool e o seu prazer como desprovidos de existência inerente, ainda assim você buscaria esse prazer enquanto o visse valendo mais que o dano causado. Algumas vezes, as idéias metafísicas da vacuidade podem na verdade ser prejudiciais. Se você começar a focar em como o dano causado pela bebida – e as pessoas prejudicadas pelo seu vício – são vazios de existência inerente, você poderá desenvolver uma justificativa racional para continuar a beber. Portanto, o ensinamento da vacuidade metafísica não parece que passaria no teste do próprio Buda para a sabedoria.

A ironia é que a idéia da vacuidade como ausência de existência inerente tem muito pouco a ver com aquilo que o próprio Buda falou sobre a vacuidade. Os seus ensinamentos sobre a vacuidade – tal qual relatado nos textos Budistas mais antigos, o Cânone em Pali – tratam diretamente das ações e dos seus resultados, com as questões do prazer e da dor. Para compreender e experimentar a vacuidade, conforme esses ensinamentos, não requer sofisticação filosófica, mas a integridade pessoal disposta a admitir as reais motivações que se encontram por detrás das suas ações e os reais benefícios e danos que elas causam. Por essas razões, essa versão da vacuidade é mais relevante no desenvolvimento do tipo de sabedoria que passaria no teste do Buda, baseado no bom senso, para medir o quão sábio você é.

Os ensinamentos do Buda, sobre a vacuidade - apresentados em dois discursos mais longos e vários outros menores – definem-na de três modos distintos: como um método de meditação, como um atributo dos sentidos e dos seus objetos e como um estado de concentração. Embora essas formas de vacuidade difiram nas suas definições, em última instância elas convergem para o mesmo caminho da libertação do sofrimento. Para ver como isso acontece, precisaremos examinar os três significados da vacuidade um a um. Ao fazer isso, iremos descobrir que cada um aplica o teste de sabedoria do Buda, baseado no bom senso em relação às ações sutis da mente. Mas para compreender como esse teste se aplica nesse nível sutil, primeiro precisamos ver como ele se aplica a ações num nível mais óbvio. Nesse sentido, não há melhor introdução que o conselho do Buda para o seu filho Rahula, sobre como cultivar a sabedoria ao realizar as atividades rotineiras do dia a dia.

Observando as Ações Diárias

O Buda disse para o seu filho Rahula, que tinha sete anos na época, para usar os seus pensamentos, palavras e ações como se fossem um espelho. Em outras palavras, da mesma forma que você usa um espelho para verificar se o seu rosto está limpo, Rahula deveria usar as suas ações como um meio para descobrir se ainda havia algo impuro na sua mente. Antes de agir, ele deveria tentar antecipar os resultados da ação. Se ele visse que ela seria prejudicial para ele mesmo ou para os outros, ele não deveria dar seguimento à ação. Se ele não antecipasse nenhum dano, ele poderia seguir adiante com a ação. Se, enquanto estivesse praticando a ação, ele percebesse que ela estaria causando um dano inesperado, ele deveria parar o que estava fazendo. Se ele não visse nenhum dano, ele poderia seguir adiante com a ação.

Se, depois de ter praticado a ação, ele visse algum dano que tivesse sido causado, ele deveria consultar algum companheiro na vida santa para entender melhor o que ele havia feito e como evitar fazer aquilo novamente e depois determinar-se a não mais repetir o mesmo erro. Em outras palavras, ele não deveria se sentir apreensivo ou envergonhado de revelar os seus erros para pessoas que ele respeitava, pois, se ele começasse a esconder deles os seus erros, em pouco tempo ele passaria a escondê-los de si mesmo. Se, por outro lado, ele não visse nenhum dano resultando da ação, ele deveria se alegrar com o seu progresso na prática e continuar com o seu treinamento.

O nome correto para esse tipo de reflexão não é “auto-purificação.” É “purificação da ação.” Você desvia os julgamentos de bom e mau da sua noção de eu, onde eles podem atá-lo com a presunção e a culpa. Ao invés disso, você foca diretamente nas ações em si mesmas, onde os julgamentos permitirão que você aprenda com os seus erros e encontre uma alegria saudável naquilo que você fez corretamente.

Continuando a refletir dessa forma, servirá vários propósitos. Primeiro e mais importante de tudo, obriga-o a ser honesto com relação às suas intenções e com relação aos efeitos das suas ações. A honestidade neste caso é um princípio simples: você não acrescenta nenhum tipo de racionalização a posteriori para encobrir aquilo que você na verdade fez e tampouco tenta subtrair da verdade através da recusa em aceitar os fatos. Porque você está empregando essa honestidade em áreas onde a reação normal é sentir-se envergonhado ou com medo da verdade, trata-se de mais do que um simples registro dos fatos. Requer também integridade moral. É por isso que o Buda enfatizava a virtude como pré-condição para a sabedoria e declarou que o princípio de virtude mais elevado é o preceito contra a mentira. Se você não adquirir o hábito de admitir as verdades desconfortáveis, a verdade como um todo evadir-se-á.

O segundo propósito dessa reflexão é enfatizar o poder das suas ações. Você vê que as suas ações representam a diferença entre o prazer e a dor. Terceiro, você exercita a prática de aprender com os seus erros sem sentir vergonha ou remorso. Quarto, você compreende que quanto mais honesto você for na avaliação das suas ações, mais poder você terá para mudar o seu modo de agir numa direção positiva. E por fim, você desenvolve boa vontade e compaixão, considerando que você decidirá agir apenas com base em intenções que não causem dano a ninguém e focar continuamente no desenvolvimento da habilidade de ser inofensivo como a sua principal prioridade.

Todas essas lições são necessárias para desenvolver o tipo de sabedoria avaliadas no teste do Buda para a sabedoria; e, no fim das contas, elas estão diretamente relacionadas com o primeiro significado da vacuidade, como um método de meditação. Na verdade, esse tipo de vacuidade toma simplesmente as instruções que Rahula recebeu para observar as suas ações diárias e as amplia para a ação da percepção da mente.

A Vacuidade como um Método de Meditação

A vacuidade como um método de meditação é o mais básico dos três tipos de vacuidade. No contexto deste método, a vacuidade significa “vazio de perturbações” – ou para colocar isso em outras palavras, vazio de sofrimento. Você traz a mente para a concentração e depois examina esse estado de concentração para detectar a presença ou ausência de perturbações sutis, ou sofrimento, ainda presentes naquele estado. Ao encontrar uma perturbação, você a segue até a percepção – o rótulo mental ou ato de identificação – na qual a concentração está baseada. Então, você abandona aquela percepção por uma outra mais refinada, uma que conduza a um estado de concentração com menos perturbação presente.

No discurso em que explica este significado de vacuidade (MN 121), o Buda ilustra a sua explicação com um símile. Ele e Ananda estão num palácio abandonado que agora é um silencioso monastério. O Buda diz para Ananda observar e apreciar que o monastério está vazio das perturbações que continha quando era usado como palácio – as perturbações causadas pelo ouro e prata, elefantes e cavalos, assembléias de mulheres e homens. A única perturbação restante é aquela causada pela presença dos bhikkhus meditando em conjunto.

Tomando esse símile, o Buda deu início à descrição da vacuidade como um método de meditação. (O símile é reforçado pelo fato de que a palavra em Pali para “monastério” ou “residência” – vihara – também significa “atitude” ou “método”). Ele descreve um bhikkhu meditando na floresta que está simplesmente notando para si mesmo que ele agora está na floresta. O bhikkhu permite que a sua mente se concentre e desfrute dessa percepção, “floresta.” Ele então retrocede mentalmente, observando e avaliando que esse modo de percepção está vazio das perturbações que acompanham as percepções da vida no vilarejo que ele deixou para trás. As únicas perturbações restantes são aquelas associadas à percepção, “floresta” – por exemplo, quaisquer reações emocionais em relação aos perigos que a floresta possa conter. Como referido pelo Buda, o bhikkhu vê com precisão quais perturbações não estão presentes nesse modo de percepção; quanto às perturbações que restam, ele as vê com precisão, “Isto está presente.” Em outras palavras, ele não adiciona e não elimina nada do que ali está. Assim é como ele entra na vacuidade meditativa que é pura e não distorcida.

Depois, notando as perturbações presentes no ato de focar na “floresta,” o bhikkhu abandona essa percepção e a substitui por uma percepção mais refinada, uma com menos potencial de despertar perturbações. Ele escolhe o elemento terra, expelindo da sua mente todos os detalhes das colinas e ravinas da terra, simplesmente tomando nota da sua qualidade terral. Ele repete o processo aplicado na percepção da floresta – estabelecendo-se na percepção da “terra,” desfrutando plenamente dela e depois retrocedendo para observar que as perturbações associadas com a “floresta” desapareceram, enquanto que as únicas perturbações presentes são aquelas associadas à unicidade da mente baseada na percepção, “terra.”

Ele depois repete o mesmo processo com percepções ainda mais refinadas, estabelecendo-se nos jhanas imateriais ou absorções meditativas: espaço infinito, consciência infinita, nada, nem percepção, nem não percepção, e a concentração desprovida de objeto.

Por fim, vendo que mesmo essa concentração desprovida de objeto é fabricada e fruto da vontade, ele abandona o seu desejo de continuar fabricando mentalmente alguma coisa. Desse modo ele é libertado das impurezas mentais – desejo sensual, ser/existir, idéias e ignorância – que poderiam fermentar num contínuo vir a ser. Ele observa que essa libertação ainda contém as perturbações associadas ao funcionamento das seis bases sensuais, mas que está vazia de todas as impurezas, de todo o potencial de mais sofrimento. Isto, conclui o Buda, é a entrada na vacuidade pura e não distorcida, que é suprema e insuperável. É a vacuidade na qual ele mesmo permanece e que, durante todo o tempo, nunca foi nem nunca será superada.

Em cada ponto dessa descrição, a vacuidade significa uma coisa: vazio de perturbação ou sofrimento. O meditador é ensinado a observar a ausência de perturbação como uma realização positiva e de ver qualquer perturbação criada pela mente, não importando quão sutil ela seja, como um problema para ser solucionado.

Quando você compreender a perturbação como uma forma sutil de dano, você verá as conexões entre esta descrição da vacuidade e as instruções do Buda para Rahula. Ao invés de tomar os seus estados meditativos como uma avaliação da sua identidade ou do seu valor próprio – por ter desenvolvido um eu que é mais puro, mais expansivo, mais em harmonia com o fundamento da existência – o bhikkhu encara aquilo simplesmente como ações e suas conseqüências. E os princípios que aqui se aplicam, no nível meditativo, são os mesmos que se aplicam aos conselhos do Buda para Rahula com relação à ação em geral.

Aqui, a ação é a percepção que suporta o seu estado de concentração meditativa. Você se estabelece nesse estado ao repetir a ação de percepção continuamente até que esteja perfeitamente familiarizado com ela. Assim como Rahula descobriu as conseqüências das suas ações ao observar o dano óbvio causado para si mesmo e para os outros, aqui você descobre as conseqüências da concentração naquela percepção, ao ver quanta perturbação surge da ação mental. Ao perceber a perturbação, você pode mudar a sua ação mental, movendo a sua concentração para uma percepção mais refinada, até que por fim você pode parar por completo a fabricação de estados mentais.

No núcleo dessa prática meditativa encontram-se dois princípios importantes derivados das instruções para Rahula. O primeiro é a honestidade: a habilidade para se libertar do embelezamento ou negação que, sem adicionar nenhuma interpretação à perturbação presente no momento, tampouco tenta negar o que está ali presente. Uma parte integral dessa honestidade é a habilidade de ver as coisas simplesmente como ação e resultado, sem lhes adicionar a presunção “Eu sou.”

O segundo princípio é a compaixão – o desejo de dar um fim ao sofrimento - considerando que você continuará tentando abandonar as causas do sofrimento e das perturbações sempre que você as encontrar. Os efeitos dessa compaixão se estendem não só até você, mas até os outros também. Quando você não se sobrecarrega com o sofrimento, é menos provável que você seja um fardo para os outros; você também estará em melhor posição para ajudá-los a carregar os seus fardos quando for necessário. Dessa forma, os princípios de integridade e compaixão estão na base até mesmo das expressões mais sutis da sabedoria que conduz à libertação.

Esse processo de desenvolvimento do vazio das perturbações não é necessariamente isento de problemas e direto. Ele requer a força de vontade necessária para abrir mão de todos os apegos. Porque um passo essencial para conhecer a percepção meditativa como uma ação é aprender a se estabelecer nela, desfrutar dela – em outras palavras, apreciá-la por inteiro, até o extremo do apego. Esse é um dos papéis da tranqüilidade na meditação. Se você não aprender a desfrutar da meditação o suficiente para mantê-la com regularidade, você não se familiarizará com ela. Se você não tiver familiaridade, o insight dos seus efeitos não irá surgir.

No entanto, a menos que você já tenha praticado usando as instruções para o Rahula, para superar os apegos mais grosseiros, então, mesmo que você experimente o insight das perturbações causadas pelo seu apego à concentração, faltará integridade ao seu insight. Como você não teve nenhuma prática em relação aos apegos mais óbvios, você não será capaz de se libertar dos apegos mais sutis de uma forma confiável. Você primeiro precisa desenvolver o hábito de observar as suas ações e as suas conseqüências, acreditando com firmeza, com base na experiência, no valor de abster-se do mal ainda que sutil. Só então você terá a habilidade necessária para desenvolver a vacuidade como um método de meditação de um modo puro e não distorcido, que irá conduzi-lo por todo o caminho até o objetivo almejado.

A Vacuidade como um Atributo dos Sentidos e dos seus Objetos

A vacuidade como um atributo, quando usado como um ponto de partida para a prática, conduz a um processo similar mas por uma rota diferente. Enquanto a vacuidade, como um método de meditação, foca nas questões de perturbações e sofrimento, a vacuidade como um atributo foca nas questões de eu e não-eu. E enquanto a vacuidade, como um método de meditação, começa com a tranqüilidade, a vacuidade como um atributo começa com o insight.

O Buda descreveu este tipo de vacuidade num discurso breve (SN XXXV.85). Novamente, Ananda é o interlocutor, abrindo o discurso com uma pergunta: De que modo o mundo está vazio? O Buda responde que cada um dos seis sentidos e os seus objetos estão vazios de um eu ou algo que pertença a um eu.

O discurso não oferece explicações adicionais, mas discursos afins mostram que esse insight pode ser colocado em prática de duas formas. A primeira é refletir sobre o que o Buda falou sobre o “eu” e como as idéias de um eu podem ser compreendidas como formas de elaboração mental. A segunda, que discutiremos na seção seguinte, é desenvolver a percepção de que todas as coisas estão vazias de um eu como base para um estado de concentração refinada. No entanto, como veremos, ambas as abordagens acabam no final conduzindo de volta ao uso da primeira forma de vacuidade como um método de meditação para completar o caminho para a iluminação.

Quando falava sobre o “eu,” o Buda se recusava a dizer se este existe ou não, mas dava uma detalhada descrição de como a mente desenvolve a idéia de um eu como uma estratégia apoiada sobre o desejo. Na busca pela felicidade, nós repetidamente agimos de um modo que o Buda chamava de “fabricação de um eu” e “fabricação do meu” como formas de tentar exercer controle sobre o prazer e a dor. Como a fabricação de um eu e a fabricação de um meu são ações, elas se encaixam dentro do alcance das instruções do Buda para Rahula. Sempre que agirmos dessa maneira, deveremos verificar se isso conduz à aflição; se assim for, então deveremos abandoná-las.

Essa é uma lição que, num nível mais óbvio, aprendemos quando ainda criança. Se você disser que é seu um doce que pertence à sua irmã, você irá se meter numa briga. Se ela for maior que você, melhor você não dizer que o doce é seu. À medida que crescemos, muito da nossa educação prática está situada no descobrimento de onde é benéfico criar um senso do “eu” em torno de algo e onde não é.

Se você aprender a encarar a sua fabricação de um eu e fabricação do meu, sob a perspectiva das instruções para Rahula, você irá em grande parte refinar esse aspecto da sua educação e ao mesmo tempo se verá forçado a ser mais honesto, sábio e compassivo, vendo onde um “eu” é um passivo e onde ele é um ativo. Num nível mais grosseiro, você irá descobrir que enquanto há muitas áreas nas quais o “eu” e “meu” conduzem apenas a conflitos inúteis, há muitas outras nas quais eles podem ser benéficos. A noção de “eu” que faz com que você seja generoso e íntegro nas suas ações é um “eu” que vale a pena ser fabricado, digno de ser dominado como uma técnica. Assim também é a noção de “eu” que pode assumir a responsabilidade pelas suas ações e que está disposta a sacrificar um pequeno prazer no presente por uma felicidade maior no futuro. Esse tipo de “eu,”com a prática, irá afastá-lo da aflição e conduzi-lo a níveis crescentes de felicidade. Esse é o “eu” que em algum momento o levará a praticar a meditação, pois você vê os benefícios a longo prazo, que provêm do treinamento do seu poder de atenção plena, concentração e sabedoria.

No entanto, enquanto a meditação refina a sua sensibilidade, você começa a notar os níveis sutis de aflição e perturbação que a fabricação de um eu e a fabricação do meu são capazes de criar na mente. Eles podem fazer com que você se apegue a um estado de tranqüilidade, de tal modo que você ressinta quaisquer intrusões na “minha” tranqüilidade. Eles podem fazer com que você se apegue aos seus insights, de tal modo que você desenvolva orgulho pelos “meus” insights. Isso pode ser um obstáculo para o progresso, pois a noção de “eu” e “meu” podem impedi-lo de ver o sofrimento sutil sobre o qual estão baseadas a tranqüilidade e o insight. No entanto, se você se tivesse treinado nas instruções para Rahula, você valorizaria as vantagens de aprender a ver até mesmo a tranqüilidade e insight como vazios de qualquer coisa que pertença ao eu. Essa é a essência do segundo tipo de vacuidade. Quando você remove os rótulos de “eu” ou “meu” até mesmo dos seus próprios insights e estados mentais, como você os vê? Simplesmente como ocorrências de sofrimento surgindo e desaparecendo – perturbações surgindo e desaparecendo – sem adicionar ou eliminar nada. À medida que você prosseguir com essa forma de percepção, você estará adotando o primeiro tipo de vacuidade, como um método de meditação.

A Vacuidade como um Estado de Concentração

O terceiro tipo de vacuidade ensinada pelo Buda – como um estado de concentração – é em essência uma outra forma de empregar o insight da vacuidade como um atributo dos sentidos e dos seus objetos como um meio para alcançar a libertação. Um discurso (MN 43) descreve isso da seguinte forma: um bhikkhu senta para meditar num local tranqüilo e de forma intencional percebe os seis sentidos e os seus objetos como vazios de um eu ou daquilo que pertença a um eu. Enquanto ele se dedica a essa percepção, isso não traz a mente diretamente para a libertação, mas para o jhana imaterial da base do nada, que é acompanhado por forte equanimidade.

Um outro discurso (MN 106) desenvolve ainda mais esse tema, observando que o bhikkhu desfruta da equanimidade. Se ele permanecer só desfrutando dela, a sua meditação não irá adiante. Mas se ele aprender a ver aquela equanimidade como uma ação – fabricada, produto da vontade – ele poderá identificar o sofrimento sutil que isso implica. Se ele puder observar esse sofrimento em si mesmo, surgindo e cessando, sem adicionar ou eliminar nenhuma outra percepção, ele estará novamente adotando a vacuidade como um método de meditação. Abandonando as causas de sofrimento onde quer que elas sejam encontradas na concentração, ele por fim alcançará a forma mais elevada de vacuidade, livre de todas as fabricações mentais.

A Sabedoria da Vacuidade

Portanto, os dois últimos tipos de vacuidade por fim acabam conduzindo de volta ao primeiro, a vacuidade como um método de meditação – o que significa que os três tipos de vacuidade acabam no final das contas conduzindo ao mesmo destino. Quer o tipo de vacuidade seja interpretado com o significado de vazio de perturbações, (sofrimento), ou vazio de um eu, quer estimule o insight através da tranqüilidade ou a tranqüilidade através do insight, todos eles culminam numa prática que preenche as tarefas apropriadas a cada uma das quatro nobres verdades: compreender o sofrimento, abandonar as suas causas, realizar a cessação e desenvolver o caminho para essa cessação. O cumprimento dessas tarefas conduz à libertação.

O que é distinto neste processo é o modo como ele evolui dos princípios da ação-purificação que o Buda ensinou para Rahula, aplicando esses princípios a cada passo da prática do mais elementar ao mais refinado. Como disse o Buda para Rahula, esses princípios são o único meio possível através do qual a purificação pode ser alcançada. Embora a maioria das explicações deste enunciado definam a purificação como pureza de virtude, a explicação do Buda sobre a vacuidade, como um método de meditação, mostra que a purificação neste caso também significa a pureza da mente e a pureza da sabedoria. Todos os aspectos do treinamento são purificados ao vê-los como ações e suas conseqüências. Isso ajuda a desenvolver a integridade que está disposta a reconhecer as ações inábeis e a boa vontade madura que permanece objetivando conseqüências que impliquem cada vez menos em dano, perturbação e sofrimento.

É nisso que este tipo de vacuidade difere da definição metafísica de vacuidade como sendo a “ausência de existência inerente.” Enquanto a perspectiva metafísica da vacuidade não necessariamente envolve integridade - visto que é uma tentativa de descrever a realidade última da natureza das coisas e não de julgar ações – esta abordagem da vacuidade requer um julgamento honesto das suas ações mentais e dos seus resultados. A integridade é dessa maneira parte essencial dessa habilidade.

Desse modo, os níveis mais elevados de discernimento e sabedoria evoluem não do tipo de conhecimento fomentado pelos debates e pela análise lógica, nem do tipo fomentado pela pura atenção ou a mera notação, mas do conhecimento fomentado pela integridade, desprovido de presunção, unido à compaixão e boa vontade.

A razão disso é tão óbvia que com freqüência passa despercebido: se você quer dar um fim ao sofrimento, precisa da compaixão para ver que esse é um objetivo que vale a pena e da integridade para reconhecer o sofrimento que você causou no passado desnecessariamente e por negligência. A ignorância, que faz surgir o sofrimento, ocorre não porque você não tem conhecimentos suficientes ou não é sofisticado filosoficamente o suficiente para entender o verdadeiro significado da vacuidade. Ela provém da sua recusa em admitir que o que você está claramente fazendo, diante dos seus próprios olhos, está causando sofrimento. É por isso que a iluminação destrói a presunção: ela o desperta completamente da cegueira deliberada que o manteve por todo o tempo cúmplice dum comportamento inábil. Essa é uma experiência purificadora. A única coisa honesta a ser feita em resposta a essa experiência é abrir-se para a libertação. Essa é a vacuidade que é superior e insuperável.

Ao formular o caminho para essa vacuidade sobre os mesmos princípios que suportam os níveis mais elementares da ação-purificação, o Buda conseguiu evitar a criação de dicotomias artificiais entre a realidade convencional e a realidade última, na prática. Por essa razão, esta abordagem para a sabedoria última ajuda também a validar os níveis mais elementares. Quando você entender, que a compreensão não distorcida da vacuidade depende de habilidades que são desenvolvidas com a adoção de uma atitude responsável, honesta e gentil em relação a todas as suas ações, é mais provável que você trará essa atitude para tudo aquilo que você fizer – grosseiro ou sutil. Você dará mais importância a todas as suas ações e às suas conseqüências, você dará mais importância à sua noção de integridade, pois você compreende que essas coisas estão diretamente relacionadas com as habilidades que conduzem à completa libertação. Você não pode desenvolver uma atitude descartável em relação às suas ações e respectivas conseqüências, pois você estará jogando fora a sua oportunidade para uma felicidade verdadeira e incondicional. As habilidades que você precisa para se convencer a meditar numa manhã escura e fria, ou para resistir a um trago numa tarde preguiçosa, são as mesmas que no final das contas irão assegurar a realização não distorcida da paz mais elevada.

Assim é como os ensinamentos do Buda sobre a vacuidade nos encorajam a exercitar a sabedoria em tudo aquilo que fizermos.
 
Fonte:http://www.acessoaoinsight.net/arquivo_textos_theravada/vacuidade.php

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