DEPRESSÃO E IMAGEM DO NOVO MUNDO - MARIA RITA KEHL


 

Desde a década de 1990, dados da OMS indicam um crescimento expressivo dos casos de depressão nas sociedades ditas desenvolvidas do Ocidente. As depressões representam, hoje, a manifestação predominante de expressão do “mal-estar” no mundo industrializado, aliadas a novas formas de sofrimento mental como as anorexias, as drogadições e as manifestações delinqüenciais aparentemente gratuitas. “Mal-estar” foi o termo designado por Freud para referir-se ao custo subjetivo das condições da vida em sociedade.

Penso que uma das causas mais significativas das depressões na sociedade contemporânea – uma sociedade aparentemente “antidepressiva” – tenha sua origem na sedução exercida pelas formações imagináriasdo estágio atual do capitalismo. Nas sociedades industriais do século XXI, o Outro, em sua face imaginária, manifesta-se através do espetáculo, cuja oferta de imagens recobre quase toda a face do planeta1. A tal abundância de ofertas não corresponde, como seria de se esperar, uma diversidade de sentidos. A onipresença da indústria do espetáculo emite uma repetição coerente de mensagens, que aparentemente se diversificam para repetir sempre o mesmo mandato. Este mandato advém de formações do imaginário produzidas pela indústria das chamadas comunicações, o que implica que seus enunciados deixem de ser inconscientes. Eles partem da esfera pública, cujos principais arautos são as mensagens publicitárias emitidas pela televisão. De certa forma, é como se o fantasma, que situa o sujeito junto ao Outro, deixasse de ser inconsciente – e as respostas fantasmáticas à pergunta “o que o Outro quer de mim?” já não estivessem a cargo dos neuróticos.

O que o Outro exige do sujeito contemporâneo é que ele goze. Muito. Que esta seja uma das faces contraditórias do imperativo superegóico – “goze!/não goze!2” só faz tornar esta exigência, promovida a condição organizadora do laço social, ainda mais angustiante e opressiva para os sujeitos.

Há que se levar em consideração, ainda, o modo como o imperativo do gozo se articula aos ideais de eficácia econômica. Tal articulação subverteu os ideais de renúncia pulsional que oprimiam os contemporâneos de Freud, convocados a sacrificar seu gozo a favor da produtividade na fase de consolidação do capitalismo industrial. O gozo  na sociedade contemporânea, não se obtém nos intervalos de tempo roubados ao trabalho alienado. Na sociedade de consumo, gozar é a forma mais eficaz de trabalhar para o Outro. A dimensão subjetiva dos prazeres, das pulsões, dos afetos, transformou-se em força de trabalho na sociedade regida pela indústria da imagem3. O que este trabalho produz? Nada menos do que os sujeitos de que o atual estágio do capitalismo necessita: sujeitos esvaziados do que lhes é mais próprio, portanto disponíveis para os objetos e imagens que os convocam. Isto gira no vazio, na mesma velocidade em que se produzem as concentrações do capital virtual na bolsa de valores: um dinheiro a que não corresponde nenhuma produção de riquezas.

Ao apropriar-se dos signos de gozo circulantes no imaginário social, os valores da eficiência econômica estendem-s  a todos os âmbitos da vida, numa escala sem precedentes na história. A afirmação de Frederic Jameson, para quem “o capitalismo colonizou o inconsciente”, deve ser complementada com a advertência de Tomás Abraham4: “uma sociedade sem valores extra-econômicos tende a uma deriva perigosa”.

A articulação entre angústia, servidão e fatalismo, que se escuta na clínica dos depressivos, fala por si mesma: o nó que amarra esses três componentes das depressões é o sentimento de superfluidade dos sujeitos, tomados tanto em sua singularidade desejante como em sua dimensão criativa, de agentes capazes de produzir transformações na vida social5.

Podemos nos referir, sem pudor, a uma possível ressonância cínica da predominância do econômico sobre o político, sobre o moral, sobre tantas outras dimensões da vida social: se o mercado é a medida de todas as coisas, a condição do sujeito contemporâneo pode ser resumida em: tem valor porque se vende. O reconhecimento buscado é do valor de venda de cada um. Só que já não é mais o trabalho alienado aquilo que se vende. Nas condições atuais do mercado de trabalho tal valor é cada vez mais supérfluo. O que se vende, no estágio atual do capitalismo, é a dimensão mais íntima dos sujeitos, seu próprio valor de gozo6. O sujeito não vende seu tempo de trabalho; vende a si mesmo como objeto de gozo para o Outro.

Gozar para se fazer instrumento do gozo do Outro e, dessa forma, gozar ainda mais: trata-se de um imperativo verdadeiramente irrecusável. Nunca a frase de Adorno esteve tão certa: “divertir-se é estar de acordo7”. As obras da cultura do divertimento já não disfarçam seu caráter de documentos da barbárie. Sua função é instaurar o eterno presente da vida espetacular, para a qual todo passado é remoto e toda a experiência, supérflua. Assim se produzem os sujeitos expropriados da experiência do inconsciente e do desejo, ávidos pelo consumo de imagens8 que lhes indiquem quem eles são. Se não há como divergir de tal demanda-oferta de gozo proposta pelos “vencedores de turno”, é inevitável que a banalidade se imponha no campo das ações humanas, privadas de valor.

Tais considerações atestam a atualidade da proposta de Walter Benjamin, desenvolvida desde A origem do drama barroco alemão até as Teses sobre o conceito de história, articulando a melancolia ao sentimento de fatalidade que se produz quando a vida social transcorre em um mundo vazio do valor da ação humana.

Maria Rita Kehl-Psicanalista



1 Ver Guy Débord, A sociedade do espetáculo (1967). Rio de Janeiro: Contraponto, 2002. Tradução de Estela dos Santos Abreu. À p.17: “O espetáculo é o sol que nunca se põe no império da passividade moderna”.

2
Para uma boa discussão do imperativo superegóico do gozo, ver Ricardo Goldenberg (org.): Goza! Salvador: Ágalma, 1996.
3
Ver Maria Rita Kehl, “Três observações sobre os reality shows” em: Eugênio Bucci e M.R.Kehl, Videologias . São Paulo: Boitempo, 2004, p. 173.
4
Tomás Abraham, “O neoliberalismo quer ser sociável e se maquia” em: Goldenberg, Goza! cit., p. 55.
5
Hanna Arendt insiste nesta dimensão humana pouco contemplada pela psicanálise: a capacidade de criar o novo a partir da ação, ou do trabalho. Ver Arendt, The Human Condition. Chicago: The University of Chicago, 1958.
6
O conceito de valor de gozo é de autoria de Eugênio Bucci, em Televisão objeto... .(cit).
7
T. Adorno, “A indústria cultural” (1947) em: Adorno e Horkheimer, Dialética do Iluminismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. Tradução de Guido Antonio de Almeida. À p 135: “Mas a afinidade original entre os negócios e a diversão mostra-se em seu próprio sentido: a apologia da sociedade. Divertir-se significa estar de acordo”.
8
Embora poucos possuam recursos para consumir os bens em oferta, as imagens que ocupam a esfera pública são acessíveis a todos.
 
Fonte:http://www2.cultura.gov.br/programas_e_acoes/cultura_e_pensamento/noticias/agenda/

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