ADOLESCÊNCIA E LAÇO SOCIAL CONTEMPORÂNEO : ENTRE O GOZO E A LEI

 

 

ADOLESCÊNCIA E LAÇO SOCIAL CONTEMPORÂNEO: ENTRE O GOZO E A LEI

ADOLESCENCE AND CONTEMPORARY SOCIAL LINK: BETWEEN ENJOYMENT AND LAW

Altair José dos Santos1
 

Resumo

A puberdade é constituída por uma realidade objetiva, por um corpo em transformação. Trata-se de um corpo estranho a exigir subjetivação e reconhecimento do adolescente e dos adultos à sua volta. Se na puberdade é essa realidade objetiva que se estabelece, na adolescência há uma realidade subjetiva que pulsa e exige objetivação na estranheza do corpo púbere. De modo geral, o escopo nessa reflexão é discutir acerca da subjetividade do adolescente e seus modos de laço social. Pretende-se especificamente, refletir acerca das condutas adolescentes ligadas ao que o discurso social nomeia por conflito com a lei.
Palavras-chave: Adolescência; laço social; lei; gozo.

Abstract

The puberty is constituted by an objective reality, by a body in transformation.  One treats of a strange body that requires subjectivation and recognition by the adolescent and the adults that surround him.  If in the puberty this is the objective reality that is established, in the adolescence there is a subjective reality that pulsates and requires objectification in the strangeness of the pubescent body.  In general, the purpose in this reflection is to discuss about the subjectivity of the adolescent and his ways of social link.  One intends specifically, to reflect about the adolescent conducts connected to what the social discourse names as conflict with the law.  
Key words: Adolescence; social link; law; jouissance.
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1Professor da Universidade Federal de Goiânia. Diretor do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise  – Núcleo de Goiânia. Doutorando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade de Brasília.
 

Introdução

O escopo que proponho para esse trabalho é refletir acerca da subjetividade do adolescente e seus modos de inserção no tecido social. De modo particular pretendo refletir acerca das condutas adolescentes ligadas ao que o discurso social nomeia por conflito com a lei. 
Aprendemos com Freud que o sujeito somente se constrói em relação ao outro, podemos dizer que o sujeito é efeito do outro. Esse sujeito que se esforça no sentido de obter satisfação depara-se com uma hiância entre o princípio de prazer e o princípio de realidade. A dinâmica desse furo é fundamentada na tensão entre o que é procurado, onde é procurado e o que é encontrado, onde é encontrado. Segundo Lacan (1956-1957 / 1995, p. 13), “é através da busca de uma satisfação passada e ultrapassada que o novo objeto é procurado, e que é encontrado e apreendido noutra parte que não no ponto onde se procura”.
Nesse jogo entre o sujeito e o outro, entre sujeito e objeto incide uma hiância, estabelece-se uma falta, pois, segundo Freud (1905 / 1976), o encontro com o objeto é sempre um reencontro, é uma redescoberta de algo que é desde sempre encoberto. Em consequência, no âmbito da pulsão o objeto é indiferente, a pulsão não tem um objeto próprio, ela é movida pela falta de objeto. Lacan (1956-1957 / 1995) nomeia esse desobjeto por objeto a. Essa falta de objeto inscrita por objeto a, propõe que qualquer objeto pode ser substituto daquele objeto mítico que se existisse obturaria o furo nomeado por objeto a. Fica sempre um resto, uma diferença entre o que se procura e o que se encontra. 
Em suma, a falta é condição para o sujeito do desejo. O problema é que o modo contemporâneo de organização do laço social, fundamentado na lógica do consumo, propõe que o objeto é acessível e que a satisfação é possível velando que a falta articula sociedade e gozo individual. Nesse modo de organização social o sujeito adolescente depara-se com um contexto que o empurra violentamente ao gozo pela via do consumo e/ou pela via do sofrimento. Tal estratégia propõe “aos sujeitos uma realidade posta (imposta), que os abstém dos dilemas éticos. Isso gera, para além do mal-estar, violências” (Rosa, M. D; Vicentin, M. C., 2012, p. 42). Movimento que se reinscreve repetidamente como tentativas de recusa da falta bem como de supervalorização do objeto.
Segundo Lesourd (2012), frente ao fracasso das tentativas de satisfação duas vias abrem-se ao sujeito: ele toma para si a responsabilidade pela sua incompletude, ou, ao contrário, imaginariamente ele atribui ao outro a responsabilidade por sua infelicidade, por meio de um discurso onde de vitima-se a si próprio.
Na via da responsabilização individual, os limites ao gozo individual são tomados como impotência do indivíduo: é ele, por deficiência pessoal, quem não pode satisfazer-se. Frente a essa realidade, melancólico, invadido pelo objeto, o adolescente pode tomar o caminho das depressões profundas e até do suicídio ou da adição como uma luta para manter um objeto de gozo na sua miragem da realidade. Por outro lado, na via da “vitimização”, tomando a si mesmo como uma vítima impotente, preso a essa lógica, resta ao adolescente revoltar-se contra seu ‘perseguidor’ e dirigir sua rebeldia, na forma de violência, contra o outro. De qualquer modo, parece certo que tanto o papel de agressor quanto o de vítima emerge como expressão da sua posição subjetiva no laço social. Lembro-lhes da radicalidade da afirmação, segundo a qual, não há subjetividade que se produza fora do laço social. 
Se por um lado, não há subjetividade que se desenvolva fora do laço social, por outro lado, todo laço social fundamenta-se naquilo que coloca limite ao desejo de gozo pleno dos sujeitos. Freud ensina que cabe à cultura o papel de regular os modos e as possibilidades de gozo para cada indivíduo. Papel esse que é indispensável na preservação da vida individual e na organização da vida coletiva. Dito de outro modo, nossa civilização fundamenta-se no recalque das pulsões e na regulação da satisfação individual.
Todas as culturas tradicionais ou clássicas construíam um limite ao gozo para os humanos, reservando a plenitude do gozo aos deuses e aos humanos que fossem ao seu encontro após a morte. A noção de paraíso, qualquer que seja o nome dado a ele pela cultura veicula a possibilidade da recuperação do gozo pleno para um sujeito, mas após a morte. Os vivos devem viver no gozo limitado (Lesourd, 2012, p. 30). 
O problema é que na contemporaneidade o mundo liberal se sustenta na promessa de gozo pleno imediato. O gozo individual é regulado pelo mercado e pela lei da oferta e da procura, não há previsão de interdição ao gozo pleno do sujeito, antes, há a promessa manipulada de gozo.
O laço social contemporâneo é organizado em torno de um discurso que se caracteriza por uma mudança radical na relação dos sujeitos com os prazeres e com o outro. Talvez uma das ideias mais importantes desse modo de organização do laço social seja a ilusão de liberdade e de autonomia individual. A ilusão de um indivíduo livre e autônomo para gozar desemboca na ideia de liberdade ‘obrigatória’ para consumir e de autodeterminar-se, quer dizer que o sujeito, nessa ordem, pode ser o que bem entender e gozar plenamente.  A única regulação que vale é a do mercado, o sujeito fica exposto à lei da oferta e da procura. Não se trata da Lei em sua dimensão simbólica referida à autoridade, ao passo que a lei em sua dimensão jurídica somente funciona enquanto faz valer a lei do mercado. É a própria noção de Lei que caduca! 
A noção de Lei proposta por Freud (1913/1976) é inaugurada miticamente em Totem e Tabu é o assassinato do pai que inaugura a Lei e funda o pacto entre os irmãos. O pai é morto pela horda, enciumados e excluídos do gozo pela tirania paterna, os irmãos se unem no crime. Sua intenção, por um lado, era a de interromper os excessos do pai, barrar seu gozo. Mas, por outro lado, cada um deles queria tomar seu lugar para fazer como ele, gozar. Após a morte do pai eles logo percebem que isso é da ordem do impossível: morto o pai resta a culpa. Emerge a necessidade de um pacto capaz de regular e distribuir entre eles as possibilidades e os limites do gozo. É em torno desse pacto que interdita o incesto e proíbe o parricídio que a civilização se desenvolve. A função da Lei é regular o gozo individual e ao mesmo tempo possibilitar a organização social. Referindo-se ao mito da origem da Lei, Freud diz que
sobrepujando o pai, os filhos descobriram que uma combinação pode ser mais forte do que um indivíduo isolado. A cultura totêmica baseia-se nas restrições que os filhos tiveram de impor-se mutuamente, a fim de conservar esse novo estado de coisas. Os preceitos do tabu constituíram o primeiro ‘direito’ ou ‘lei’. (Freud, 1930-1929 / 1976, p. 120/121).
A origem da Lei simbólica é, também, descrita por Freud em torno do mito de Édipo. Trata-se da Lei que interdita o incesto e proíbe o parricídio. Ou seja, é a Lei simbólica é que é responsável por ordenar os laços entre os homens, enquanto seres de linguagem. Segundo Joël Dor,
[...] o homem que tinha todas as mulheres só advém como Pai a partir do instante em que está morto enquanto homem. A edificação do homem em Pai se realiza, pois, ao preço de uma promoção simbólica que só se pode manter sustentando-se por um interdito que tem força de Lei (Dor, 1991, p. 40).
Mas ao que tudo indica, parece que testemunhamos um desencontro entre a Lei simbólica, a lei do mercado, a lei do direito e a lei do desejo. A lei do mercado é contínua em exigir que a sociedade gire em torno da produção do comércio. O contexto regulado pelo mercado não tem como foco o sujeito humano criativo, submetido à Lei simbólica, ou seja, com a possibilidade de advir enquanto sujeito de desejo. 
Nessa reificação o que se perde é a possibilidade da emergência do sujeito de desejo submetido à ordem simbólica. Talvez o que esse sujeito apresente de mais saudável seja a possibilidade de desviar, de apresentar-se claudicante. Segundo Lesourd, 
[...] esse novo projeto social sustentado pelo discurso do Capitalista induz à reivindicação pelo individualismo, que caracteriza nossa relação com os outros. Se o sujeito pode solitariamente determinar o que o designa, ninguém mais pode negar-lhe essa capacidade, desde que não atrapalhe a lei da troca que regula o laço social. Cada um pode agir livremente de acordo com sua cabeça (2012, p. 31). 
No sujeito, isso resulta na falsa experiência matizada por uma potência imaginária absoluta e calcada em expressões severas de narcisismo. No sujeito adolescente esse movimento resulta em expressões tipificadas pela lei jurídica como “atos infracionais” e o define como “adolescente em conflito com a lei”. Mas que alternativa resta ao adolescente em uma sociedade que parece transitar do discurso do mestre para o discurso do capitalista, no qual o laço social parece não estar em questão? Como pode o adolescente internalizar, pela via dos processos identificatórios, a Lei e com ela se haver em um modo de organização social  em que  se apresenta um tal empuxo ao gozo? 
O estatuto que orienta o sujeito no discurso do capitalista é o estatuto do consumidor. Surge no lugar do amor/ódio, a indiferença, a paixão da ignorância surge como manifestação da violência. Frente a esse discurso totalitário o que é da ordem da tensão, o que faz questão é tomado como manifestação individual de delinquência ou patologia. 
Mas a clínica psicanalítica ensina que o recalcado sempre retorna, seja como sintoma, seja como violência. É preciso considerar que o discurso do capitalista caracteriza-se por promover um curto circuito no laço social, o que abre espaço para as várias formas de violência e produz um gozo sem culpa. Do ponto de vista da psicanálise, como não pensar a violência como uma marca, feita pelo adolescente, advinda da impossibilidade de fazer laço social, de identificar-se, uma vez que a violência parece derivar de uma ânsia identitária?
 

Dever ser e sonho de ser

Nas expressões discursivas do laço social dominante da contemporaneidade apreende-se uma transformação profunda na constituição do sujeito. A ênfase não está mais no ideal do eu, a lógica dominante não é mais a do “dever ser”. A felicidade não é mais tomada como uma promessa futura que de algum modo regula a conduta de cada sujeito. Parece que esse “dever ser” que de algum modo regulava, pelo menos parcialmente, a relação com o semelhante não é mais operante. A promessa de completude é deslocada para o presente imediato e o discurso contemporâneo coloca em cena “[...] outra estrutura ideal, a do sonho de ser do eu ideal” (Lesourd, 2012, p. 35). Eu ideal que, segundo Freud (1923 / 1976), está mais próximo ao eu prazer da primeira infância. Dessa passagem, do recobrimento do ideal do eu pelo eu ideal depreende-se uma formatação subjetiva apoiada na exigência da satisfação imediata e na crença da potência absoluta dos desejos. 
Em decorrência, nos deparamos com reações violentas frente às frustrações e uma recusa da autoridade. Todos esses fenômenos que podemos observar nos sujeitos adolescentes em nossa contemporaneidade -  rupturas com a família e com a escola; violências contra o outro e contra si próprio; recusa de autoridade; drogadicção; depressão; aumento do índice de suicídios, dentre outros fatores - por um lado, são tomados com manifestações de sintomas fenomênicos do adolescente em conflito com a lei; por outro lado, devem ser considerados como efeitos do discurso dominante e da organização do laço social contemporâneo na subjetividade do sujeito adolescente. 
Assim, o adolescente em conflito com a lei é, antes de qualquer forma de nominação marginal, um indicador do modo de organização social que preconiza a obtenção imediata do prazer pela lógica do empuxo ao consumo. O adolescente em conflito com a lei é, antes de tudo, uma expressão do modo como o laço social contemporâneo articula a Lei, o gozo e o desejo.         
A adolescência é, para o sujeito, um momento privilegiado do processo identificatório e, portanto, de sua constituição subjetiva e de sua sociabilidade e eticidade. Do ponto de vista ético, a psicanálise se propõe a escutar o sofrimento desses sujeitos, bem como a forma de endereçamento de suas demandas. Ora, na adolescência a questão do agir é essencial. Como não escutar o que é veiculado no ato adolescente? Como negligenciar o que se repete em ato na vida do adolescente e manter a aposta ética da psicanálise? 

Referências

 
Dor, J. (1991) O Pai e sua Função em Psicanálise. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar.
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  (Original de 1930  [1929]).
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Lacan, J. (1995) O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge
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Lacan, J. (2008) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais 
  da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Original de1964).
Lesourd, S. (2012). Adolescentes Difíceis ou Dificuldades da Cultura? In: Gurski, R., 
  Rosa, M.D., Poli, M. C. Debates Sobre a Adolescência contemporânea e o laço 
  Social. Curitiba, Juruá.
Melman, C. (2000). O que é um adolescente. In: Congresso Internacional de
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Rosa, M. D. Vicentin, M. C. (2012). Os Intratáveis: o exílio do adolescente do 
  Laço social pelas noções de periculosidade e irrecuperabilidade. In: Gurski, R. 
  (orgs). Debates Sobre a adolescência contemporânea e o laço social. Curitiba.
 
Fonte:http://www.revistapsicologia.ufc.br/

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