INSTRUÇÕES PARA ZAZEN

Instruções para Zazen

A verdade é perfeita e completa em si. Se é assim, por que prática e realização seriam diferentes? O verdadeiro caminho é livre. Que necessidade há então de um esforço concentrado? Na realidade, o caminho está para além das impurezas. Para quê então pensar em limpá-lo? Se nunca está separado deste lugar, qual é a necessidade de ir aqui ou acolá para o alcançar? E contudo, se a mais pequena divisão surgir, é como se o caminho estivesse tão distante como o céu da terra. Se surgir a mais pequena preferência, a mente perde-se na confusão. Supõe que estás confiante quanto à tua compreensão e acreditas ter alcançado a iluminação, obtido a sabedoria inerente a todas as coisas, realizado o Caminho e clarificado a mente, tendo surgido a aspiração para alcançar o céu. Mesmo assim estarias a dar os primeiros passos no limiar do caminho, muito aquém da via para a emancipação.
Pensa no Buda – embora a sua sabedoria fosse inata, os traços dos seus seis anos de meditação ainda são visíveis. E quanto a Bodhidharma, embora tenha recebido o selo da Transmissão, os seus oito anos diante de uma parede ainda são recordados. Se mesmo os antigos sábios agiram assim, como poderíamos nós dispensar a prática?
Põe de lado a prática intelectual de investigar as palavras e correr atrás dos discursos e aprende a dar o passo contrário que volta a luz para o interior. O corpo e a mente caem por si mesmos e a tua face original manifestar-se-á. Se é isso que procuras, começa então a praticar imediatamente.
Para praticar Zazen, é necessário um local tranquilo. Come e bebe moderadamente. Põe de lado todos os compromissos. Não penses se é “bom” ou se é “mau”. Não julgues se está certo ou errado. Desiste das operações mentais, do intelecto, da consciência. Deixa de avaliar tudo através dos pensamentos, das ideias, das opiniões. Abandona mesmo a ideia de te tornares um Buda. Como é que isso poderia limitar-se a sentar ou deitar?
No lugar onde praticas a meditação, estende uma almofada quadrada e fina, sobre a qual colocas uma almofada espessa. Senta-te na postura de lótus ou de meio-lótus. Na postura do lótus, coloca o pé direito sobre a coxa esquerda e o pé esquerdo sobre a coxa direita. Em meio-lótus, apenas coloca o pé esquerdo sobre a coxa direita. A roupa deve ser larga mas não desleixada. Depois, coloca a mão direita sobre o pé esquerdo e a mão esquerda sobre a palma da mão direita, com as pontas dos polegares a tocarem-se levemente. Senta-te direito, sem te inclinares nem para a esquerda, nem para a direita, nem para a frente, nem para trás. As orelhas devem estar alinhadas com os ombros e o nariz deve estar alinhado com o umbigo. A língua deve ficar encostada ao céu da boca, os lábios e os dentes dever estar fechados. Com os olhos sempre abertos, respira calmamente pelas narinas. Finalmente, depois de ajustar o corpo e a mente da forma correcta, inspira profundamente e balança o corpo para a esquerda e para a direita, até que permaneça firmemente na postura de meditação, como se fosse uma rocha. Pensem em não-pensar. Como é que isto se faz? Não pensando. Isto é a prática essencial do zazen.
O zazen de que falo não é a prática da meditação. É simplesmente o portão do Dharma da alegre tranquilidade, a compreensão da verdadeira iluminação. É a integração do koan; as armadilhas nunca o poderão atingir. Se compreenderes isto, serás totalmente livre, como um dragão na água ou um tigre a caminhar na montanha. O verdadeiro Dharma surge naturalmente e ficas completamente livre de toda a monotonia e de toda a distracção.
Quando terminares o zazen, move-te deliberadamente devagar e com calma. Não te levantes de repente ou abruptamente. Através da meditação, é possível transcender o mundano e o sagrado, morrer sentado ou de pé. Além disso, é impossível para a mente discriminativa compreender como os Budas e os ancestrais, através de um dedo, vara, agulha ou tambor, expressaram a essência do Zen aos discípulos, nem como transmitem a iluminação com o bastão, o punho, o grito. Não se pode obter a compreensão através de poderes sobrenaturais, ou pela visão dualista de prática e iluminação. A meditação está para além do sujeito e do objecto, está para além do pensamento discriminativo.
Portanto, a questão não tem a ver com inteligência ou estupidez; não faças distinção entre o lento e o esperto. Praticar o caminho com persistência é, por si mesmo, a iluminação. Prática e iluminação, meditação e vida diária, não estão separados.
Neste e no outro mundo, na Índia e na China, o coração-mente de Buda foi igualmente preservado. Embora cada linhagem expresse o seu próprio estilo, todas se devotam, exclusiva e completamente, à absorção na prática da meditação. Diz-se que há muitos meios de compreender o caminho de Buda, mas a prática é a meditação. Não há razão para deixar o lugar onde nos sentamos para fazer viagens inúteis a outros países. Se o primeiro passo for errado, deixaremos de ver o que está mesmo à nossa frente.
Tiveste a sorte de nascer com um precioso corpo humano, então não percas tempo em vão. Agora, que encontraste o caminho de Buda, como poderias encontrar prazer no brilho de uma pedra? A forma e a substância são como as gotas de orvalho sobre as folhas, o sucesso na vida é como o brilho de um relâmpago, que desaparece num instante. Por favor, honrado seguidor do Zen, não duvides do dragão real. Usa a tua energia no caminho que leva directamente ao coração-mente original do Buda. Respeita aqueles que realizaram a compreensão completa e que nada mais têm a fazer. Torna-te um com a sabedoria dos Budas e alcança a iluminação dos antepassados. Se praticares a meditação constantemente, compreenderás tudo isto. Então, a sala do tesouro abrir-se-á por si mesma e poderás usá-la à vontade.

Eihei Dogen – Japão, 1200 – 1253 d.C.

Tradução do inglês por Chumani/ Margarida Cardoso

Zazen – como praticar

A prática da meditação não é um método para atingir a realização, é a própria iluminação.Dogen
Zazen – a postura
Vamos descrever a postura do Zazen, mas é importante pensar que não se trata de forçar um ideal de perfeição que não possuímos. Vamos começar com o corpo que temos e somos. A prática do Zen acentua o estarmos presentes aqui e agora. Não há nada a rejeitar ou a desejar. A observação do nosso espaço físico, das tensões, das repressões, do bem-estar, do que queremos agarrar ou do que podemos largar faz parte do caminho para o conhecimento profundo de si mesmo. Através da consciência da postura, entramos no caminho da prática. A meditação não é apenas manter o corpo numa posição correcta e conservar a mente calma quando sentados, a meditação é prolongar o estado de uma mente tranquila nessa e noutras situações e transparece na atenção e na consciência com que vivemos sob as mais diferentes condições.

Como sentar Senta-te na parte da frente de um cadeira ou de uma almofada alta, de preferência numa almofada de meditação (zafu em japonês). Cruza as pernas numa posição que possas manter confortavelmente. Em meio-lótus, o pé da perna esquerda vai apoiar-se na coxa da direita (ou vice versa). Em Lótus completo, os dois pés apoiam-se nas coxas opostas. Podes sentar-te ainda mais simplesmente com as pernas cruzadas e alinhando os calcanhares pelo centro do corpo. O importante é ter três pontos de apoio, e por isso é necessário que os joelhos estejam o mais próximo possível do chão. Se te sentares numa cadeira, conserva os joelhos afastados mais ou menos à distância dos ombros e os pés firmemente plantados no chão.
O mais importante é manter as costas direitas. Devem manter-se “naturalmente” direitas, com o equilíbrio centrado no baixo ventre. Avança a parte de baixo das costas um pouco para a frente, abre o peito, recua os ombros e inclina ligeiramente o queixo para dentro, mantendo a cabeça direita, no prolongamento da coluna. Balança o corpo com suavidade da esquerda para a direita, até alcançares naturalmente um ponto de quietude na almofada.
Os olhos ficam entreabertos, pousados no chão num ângulo de cerca de 45º.
Os lábios tocam-se sem pressão, e a ponta da língua toca o palato perto da raiz dos dentes. Podes começar por engolir a saliva antes de colocar a língua nesta posição.
Coloca as mãos na posição do chamado mudra cósmico, o mudra da unidade: pousadas no regaço, a palma da mão esquerda virada para cima, pousada na palma da mão direita. Em algumas tradições, a posição das palmas da mão inverte-se (a esquerda mantém a direita). A ponta dos polegares toca-se, formando um oval horizontal. As mãos ficam encostadas ao abdómen, cerca de três dedos abaixo do umbigo, o que corresponde ao centro de vajra na tradição tibetana e ao hara na tradição japonesa, o centro físico e subtil do corpo.
Exala profundamente. A tua respiração deve fluir num ritmo natural. Com uma postura física adequada, a respiração vai conduzir-se naturalmente para o baixo abdómen.
Conserva a imobilidade e concentra-te na respiração. Quando a atenção vagueia, trá-la de volta para a respiração.
No final da sessão, volta a balançar o corpo devagar da direita para a esquerda. Não te levantes bruscamente.
Tenta praticar todos os dias.

Porquê meditar

Diz-se que a meditação pode trazer benefícios físicos e mentais a quem a pratica com regularidade. Segundo estudos médicos, os seus benefícios variam entre o desenvolvimento da capacidade de  concentração e de raciocínio a melhorias na atividade do sistema imunitário, a alívio de insónias e problemas relacionados com tensão alta. Os praticantes Zen não deixam, porém, de contrair doenças, de sofrer, de morrer. A meditação não é um meio para se alcançar a imortalidade física ou para se libertar das leis da natureza.

Sentar-se em meditação não será egoísmo?

Se o Zen tem a ver com a compaixão, porquê sentar-se apenas em meditação? Não é isso egoísmo? Porque não fazer algo agora, já, para ajudar os outros?
A meditação é, fundamentalmente, para beneficiar todos os outros. Pode ajudar-nos, por exemplo, a estarmos menos auto-centrados em questões pessoais, profissionais, sociais e circunstanciais. Não podemos ser um veículo efetivo da verdadeira acção sem ego enquanto a nossa consciência-ego se interpuser entre nós e a necessária circunstância que está diante de nós.
O mestre Zen Dôgen encarava a ação moral correta como procedendo da sabedoria e da compaixão que designava como “não-dois”. Encarava assim a ação moral correta como procedendo do ver as coisas como realmente são, o que se nos manifesta em momentos de “sem pensar”. Livrarmo-nos do pensamento errado (distorcido), realizando a verdade, faz surgir a compaixão, incondicionalmente, sem desejarmos nada em troca. Se conseguirmos fazer isto integralmente, todos os nossos atos podem beneficiar os outros.
O verdadeiro vazio não tem religião, seita ou qualquer doutrina. Enquanto estivermos agarrados a conceitos, mesmo sobre a iluminação, o Buda ou o Caminho Aberto, estamos prisioneiros da nossa consciência, e a nossa verdadeira compaixão não pode operar. O verdadeiro ato de compaixão tem a sua origem além da mente consciente individual. Não pode ser gerado ou motivado por desejos pessoais.
Hôgen Yamahata
Mas é evidente que não precisas de alcançar a iluminação para começares a ajudar as pessoas.
cortesia de openway.org.au /tradução de José Eduardo Reis
Somos o que pensamos.
Tudo o que somos provém
dos nossos pensamentos.
Com os pensamentos
Fazemos o mundo
(do Dhammapada)
Ver as coisas como elas são, incluindo nós mesmos, é o principal motivo que leva os praticantes Zen a meditarem. De um modo geral, não nos damos conta da relação entre os padrões habituais da nossa atividade mental e o sofrimento que eles nos causam a nós e aos outros. A observação consistente da mente, durante a meditação e ao longo do dia, revela-nos que grande parte do nosso tempo é despendido a correr atrás de certas coisas e circunstâncias e a rejeitar outras. Damo-nos conta que despendemos uma parte considerável do nosso tempo e da nossa energia a reciclar prazeres e agravos do passado, ou ocupados em como podiam ou deviam melhorar as coisas no futuro, comparando constantemente pessoas e coisas, encarando-as segundo categorias dualistas como bem e mal, desejável e indesejável, certo e errado, culpado e inocente, amigo e inimigo, etc.
Ao meditarmos, passamos a ver com maior clareza os nossos preconceitos e apegos, e isto faz com que procuremos aperfeiçoar o nosso carácter. A observação simples, honesta, não verbal dos nossos processos mentais e emocionais produz de facto uma mudança no modo como encaramos as situações e as pessoas que encontramos. O efeito final é uma aproximação à vida que se manifesta em atitudes de não rejeição e de não apego, de não distorção da verdade, de abstenção do excesso de satisfação de desejos e de não cedência ao auto engano. Esta maneira de viver manifesta-se quer num plano pessoal quer num plano social, e decorre mais de uma profunda compreensão interior do que de um acto de vontade. Como consequência, tornamo-nos menos propensos, por exemplo, a tirar proveito egoísta da natureza ou do próximo, a voltar as costas à vida por ingestão de químicos
ou de drogas, a fechar os olhos às necessidades dos outros e aos efeitos das nossas vidas no meio ambiente.

Uma prática contínua de plena atenção ao longo de muitos anos pode dar origem a experiências de profunda compreensão interior que transformam a visão que temos de nós mesmos, ao ponto de podermos ver que o eu a que estivemos ligados prazenteiramente ao longo da nossa vida mais não é do que uma miragem auto-construída. É como se descascássemos uma cebola. Os falsos pensamentos são removidos, camada após camada, até deixarmos de ver não só um eu dissimulado e fingido, mas também um eu desnudado. Aspiras a descobrires o teu eu, mas acabas por descobrir que não há nada a descobrir.
Em termos mais concretos, praticar meditação faz diminuir gradualmente a errância dos teus pensamentos até experimentares um estado de “não-mente”. Perceberás naturalmente que a tua vida no passado foi construída sobre um acumular de noções erróneas e confusas que não são o teu verdadeiro eu. O teu verdadeiro eu é um que é inseparável de todos os outros. A existência objetiva de todos os acontecimentos compreende todas as várias dimensões da existência subjetiva do teu eu. Não tens, portanto, que procurar nada nem desprezar nada. O que está diante de ti em cada momento é o que tens procurado, e não podes nem tens de lhe acrescentar nada para ele ser perfeito. Ao alcançar este estádio, o praticante de meditação torna-se compassivo para com todos os humanos e todos os outros seres. O seu carácter torna-se radioso, aberto, luminoso como a luz da Primavera. Apesar de poder manifestar emoções em prol dos outros, internamente a mente do praticante de meditação está constantemente serena e límpida como a água num lago de Outono. Uma tal pessoa pode ser considerada iluminada.
Segundo um ensinamento essencial do Zen, a porta interior está aberta a todos, homens e mulheres, velhos e novos, sábios e ignorantes, fortes e fracos, pessoas de todas as profissões, ofícios e origens, de qualquer religião e crença. Todas estas palavras, no entanto, apenas falam do Zen, não são em si o Zen. A meditação Zen requer a tua determinação em aprenderes e a tua persistência em praticares. Falar do Zen sem o praticar só faz aumentar o conhecimento inútil e confuso da nossa já confusa mente. Não te é salutar alimentares-te apenas com imagens de comida.
cortesia de openway.org.au / tradução de José Eduardo Reis

Kinhin – meditação em andamento

Fechar a mão esquerda sobre o dedo polegar, que pressiona ligeiramente a zona abaixo do dedo anelar, e cobri-la com a mão direita. As mãos ficam à altura do plexus solar. Os antebraços paralelos ao chão. O olhar tem uma inclinação de cerca de 45.º como na meditação sentada. Ao inspirar, avança-se meio passo com o pé direito. Na inspiração seguinte, avança-se com o pé esquerdo. Uma expiração tem geralmente o dobro do tempo da inspiração. O peso do corpo fica sobre o pé que está à frente. Tornamo-nos um com a nossa contagem de respiração.
O Kinhin permite flexibilizar os músculos e estabelecer a circulação, depois dos períodos de meditação sentada.

Quando praticas Zazen, não desprezes nem te deleites nos pensamentos que surgem.
Olha simplesmente para a sua origem e reconhece que tudo o que se apresenta na tua mente ou é visto pelos teus olhos é ilusão, desprovido de realidade. Não o receies, não o reverencies, não o ames, não o odeies.


O Ponto de Quietude

Qualquer criatura à face da terra parece saber como estar quieta e tranquila. Uma borboleta numa folha, um gato em frente de uma lareira. Mas os humanos estão constantemente em movimento. Parece que perdemos a habilidade de estarmos quietos, de simplesmente estarmos presentes na quietude que é a base da nossa existência.
O ponto de quietude está no coração do processo criativo. No Zen, acedemos a esse ponto através do Zazen. O ponto de quietude é como o olho de um furacão. Quieto, calmo, mesmo no meio do caos. Não é, como muitos acreditam, um vazio em que nos retiramos, fechando-nos ao mundo. Estar quieto significa esvaziarmo-nos do fluxo incessante de pensamentos e criar um estado de consciência aberto e receptivo. A quietude é muito natural e descomplicada. Não é de nenhuma forma esotérica. Contudo é incrivelmente profunda.
No Zazen praticamos largar mão dos pensamentos e do diálogo interno, trazendo a mente de volta à respiração. A respiração torna-se mais fácil e profunda, e a mente repousa naturalmente. A mente é como a superfície de um lago. Quando o vento sopra, a superfície é agitada. Então há ondas e a imagem do sol ou da lua é quebrada. Quando o vento se acalma, a superfície fica como vidro. A mente tranquila é como um espelho. Não processa, apenas reflecte. Quando há uma flor em frente, reflecte a flor. Quando a flor desaparece, a reflexão desaparece. A mente volta à superfície tranquila original. Uma mente quieta está desobstruída. Não se segura ou se agarra a nada. É livre a todo o momento, independentemente das circunstâncias.
O ponto de quietude permite-nos não sermos consumidos pela loucura que nos rodeia, não apenas em situações extremas, mas na nossa vida do dia-a-dia. Tanto da nossa cultura actual leva à agitação e, frequentemente, deixamo-nos levar por esse frenesim. Todos somos condicionados, do momento em que nascemos até ao momento em que morremos. Somos condicionados pelos nossos pais, professores, nação e cultura. Vivemos grande parte das nossas vidas como se não tivéssemos mais potencial do que o cão de Pavlov. Quando alguém toca uma sineta, ficamos todos excitados. Damos por nós contrafeitos a viver o guião que os outros escreveram para nós. Ou reagimos compulsivamente e repetidamente contra isso, ainda assim escravos do guião, mas de outra forma. Há uma alternativa, dada pelo ponto de quietude – a de realizar a nossa liberdade não condicionada.
O primeiro passo para aceder ao ponto de quietude é simplesmente acalmar. Estamos constantemente a falar para nós mesmos. Passamos o nosso tempo preocupados com o passado, que não existe – já aconteceu. Ou preocupados com o futuro. Que também não existe – ainda não aconteceu. O resultado é que perdemos a consciência do momento presente da nossa vida e quase não o sentimos passar. Comemos, mas não saboreamos, ouvimos, mas não escutamos, amamos, mas não sentimos. Passamos as nossas vidas perdidos na nossa cabeça.
Viver na tranquilidade do ponto de quietude significa estar no momento, que é sempre aqui e agora. É muito fácil dizer “estar aqui e agora”, mas é muito difícil estar realmente presente.
Para aceder ao ponto de quietude, temos de nos voltar para o interior. Temos de estar disponíveis para voltar ao momento, uma e outra vez, consciente e deliberadamente. Não é fácil. Experimenta o seguinte: Senta-te confortavelmente, fecha os olhos e relaxa. Durante quinze minutos, apenas ouve, sem mexer o corpo e a mente. Apenas ouve. Não te concentres em nenhum som, não sigas nenhuma sequência particular de sons. Deixa que todo o teu ser funcione como uma esfera aberta de escuta de 360 graus. Não processes o que ouves. Não sonhes acordado. Não adormeças. Durante quinze minutos, apenas escuta.
Muitos de nós, incluindo os praticantes mais experientes, vamos achar que é muito difícil simplesmente ouvir. Ouvimos sons e imediatamente os catalogamos, ou associamo-los com outra coisa, comparamo-los, analisamo-los, ou tentamos encontrar a origem deles. Rapidamente apenas ouvir torna-se aborrecido e as nossas mentes vagueiam. Não é fácil deixar que as coisas simplesmente sejam, e abandonar os nossos comentários recorrentes.
Na prática Zen, tocamos o ponto de quietude ao focar a mente, o que se constrói gradualmente ao cultivar a nossa concentração. Primeiro, contamos a respiração: inspirar, um, expirar, dois, etc. Ao chegar a dez, voltamos ao princípio. Quando percebemos que a mente vagueia, olhamos para o pensamento, tomamos consciência dele, deixamo-lo partir, recomeçamos a contagem no um. Aos poucos começamos a construir joriki, o poder da concentração. De cada vez que conscientemente deixamos partir um pensamento e voltamos a nossa atenção para a respiração, desenvolvemos a nossa habilidade de colocar a mente onde a queremos, quando queremos, durante o tempo que queremos. E isso é incrivelmente poderoso.
A forma humana é absolutamente magnífica quando vivida plenamente. Muitos de nós arrastam-se pela vida apenas com uma minúscula fracção do nosso potencial. Joriki abre gradualmente as nossas reservas físicas, mentais e emocionais e abre as nossas capacidades espirituais.
Uma das formas do nosso poder espiritual se começar a manifestar é através da emergência do aspecto intuitivo da consciência. Esta é uma das razões da ligação íntima do zen com a criatividade. A criatividade é também uma expressão do nosso lado intuitivo. Entrar em contacto com a nossa intuição ajuda-nos a entrar no fluxo da vida, num universo em estado constante de se tornar. Quando desenvolvemos a intuição, através da arte ou simplesmente nas actividades do dia-a-dia, sentimo-nos como uma parte deste continuum criativo.
A concentração focada num ponto único desenvolve a intuição. Tornamo-nos mais directamente conscientes do mundo. Percepcionamos de uma forma não claramente compreensível, mas que é muito precisa. Quando a totalidade da nossa mente está focada num único ponto, o seu poder desenvolve-se. Construir a concentração é uma disciplina como outra qualquer. Se queremos desenvolver a musculatura, levantamos pesos. Para tocar piano, repetimos o mesmo exercício vezes sem conta. É o mesmo com o movimento, com a arte. A prática repetitiva desenvolve a nossa capacidade e perícia. E com a meditação acontece o mesmo.
Contar a respiração e voltar quando nos distraímos não exige esforço. Aí estamos prontos para seguir simplesmente a respiração, para nos tornarmos íntimos do respirar. Ao ser apenas a respiração, a testemunha desaparece e apenas a respiração respira.
Nas nossas actividades do dia-a-dia, mesmo pequenos movimentos como o toque da roupa contra a pele são o suficiente para reafirmar o sentido de um eu físico. “Aqui estou, contido num saco de pele”. Mas quando começamos a meditar e paramos de nos agitar, esse feedback contínuo desaparece, e com ele o sentido de um eu distinto. Ao desenvolver esse poder de concentração, atingimos um ponto em que desenvolvemos uma falta de sensação do corpo durante longos períodos de meditação.
Esta experiência pode ser muito perturbadora para alguns. É semelhante ao que aconteceu nos anos 70 nas experiências de tanques de privação sensorial. Pessoas imersas em água à mesma temperatura do corpo perdiam o sentido de fronteiras físicas. Para muitos, isto era uma experiência intolerável.
Durante a meditação, quando nos aproximamos dessa quietude completa, involuntariamente a sabotamos. O corpo por vezes mexe-se ou torce-se para restabelecer esse sentido de solidez. Mas, quando nos familiarizamos com esta falta de sensação, podemos descontrairmo-nos nela. Quando o corpo repousa na quietude, os pensamentos abrandam. Quando os pensamentos finalmente desaparecem, o pensador desaparece. Pensamento e pensador são interdependentes, surgem mutuamente. Não pensamento, não pensador, chama-se a isto “o desaparecimento do corpo e do espírito”. Este é o samadhi absoluto a focagem da mente num ponto único. Na focagem não há observador. Não há percepção do tempo, eu, ou outro. Contudo, não podemos tabalhar com um computador ou conduzir um carro neste estado. temos de continuar até que este estado se manifeste gradualmente como samadhi em acção, ou seja, estamos aptos a funcionar em actividade mas de dentro de um lugar de quietude, de centragem. Quando o samadhi absoluto surge na nossa meditação, espalha-se no resto das nossas vidas, em tudo o que fazemos. É uma forma de estar. Todos os nossos sentidos se tornam abertos, alertas, libertos de tensão, receptivos, mas sem nos agarrar.
Ao trabalhar o samadhi não há esforço, nem intenção. É uma consciência de 360 graus; não tanto como a consciência de um caçador, que está muito focada e dirigida, mas como a consciência da caça – sem restrições.

do livro The Zen of Creativity de John Daido Loori /tradução Chumani – Margarida Cardoso


Fonte:http://artezenpt.wordpress.com/meditacao-zen/zazen-como-praticar/

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