ELAS AMAM SER SOLTEIRAS

 

Elas amam ser solteiras: mulheres ajudam a mudar antigos conceitos sobre as relações e legitimam os novos desejos femininos

Ana Raquel, Muryel e Geórgia ainda são minoria entre as mulheres brasileiras, mas ao bradarem que a solteirice é uma escolha de vida – e não uma falta de opção


Por Débora Rubin. Fotos Felipe Morozini. Produção Fernanda Ary
Editora Globo
Ana Raquel: “Ser solteira é uma licença poética”

Numa viagem à romântica Veneza, a publicitária Ana Raquel Renovatto, 32 anos, foi jantar num charmoso restaurante. Depois de servir o seu prato, o garçom ficou ao longe, olhando um tempão para ela. Ana está acostumada com os olhares masculinos, mas sabia que, naquele caso, não era admiração nem paquera. O olhar do italiano era de estranhamento – para não dizer de pena – porque ela estava desacompanhada. “Finalmente ele teve coragem, se aproximou e me perguntou se podia retirar os outros talheres”, conta. “Se eu fosse uma mochileira, ninguém me olharia feio, mas uma mulher de 30 anos, arrumada e bonita, não pode estar sozinha onde só tem casal.” Em vez de se recolher e jurar nunca mais viajar só, Ana Raquel acha graça. E inverte o jogo: “Sei que sirvo de inspiração para muitas mulheres, inclusive as casadas”.
Para ela, “ser solteira é uma licença poética, um modo de viver livre num mundo marcado pela dependência emocional”. E que, segundo Ana, nada tem a ver com dificuldade de amar. “Hoje, vivo sozinha, mas por dois anos morei com meu namorado francês. Me apaixonei loucamente e quando terminou o amor, não vi porque seguir adiante.” De tão convicta e satisfeita com a própria vida, a publicitária deixou sua mãe preocupada. “Ela faz as contas, dizendo ‘Filha, você está com 32 anos, até arrumar namorado e firmar, já estará com 35. Quando decidir noivar, serão mais dois anos. E se der tudo certo, aos 40 você casa. Mas aí, e os filhos?’, diz. Dou risada.” Ela sabe, porém, que esse é o raciocínio que vigora para a maioria. “Já encontrei muitas solteiras que se dizem resolvidas, mas no fundo querem um príncipe”, dispara. “As mulheres se consideram livres pelo fato de terem independência financeira, mas ainda estão presas às pressões sociais.” Das 43,7 milhões de brasileiras oficialmente solteiras detectadas pelo IBGE no Censo de 2010, pelo menos 15 milhões estão em uma união estável. E é bem possível que, das 28,7 milhões restantes, a maioria deseje ardentemente um marido.
Apenas uma ínfima parte desses milhões de mulheres é, como Ana Raquel, solteira por opção. Para essas raras criaturas, amar e transar é vital. A diferença é que, na visão delas, isso não significa namorar para casar. É o que a socióloga americana Bella DePaulo classifica como “solteiras de coração”. Segundo a autora do livro "Singled Out: How Singles Are Stereotyped, Stigmatized, and ­Ignored, and Still Live Happily Ever After" (Algo como “Discriminados: como os solteiros são estereotipados, estigmatizados e ignorados, e ainda assim vivem felizes para sempre”). A obra, que ainda não chegou ao Brasil, define a solteira de coração como a mulher que vive de forma intensa e criativa, sente-se completa, por isso nem pensa em termos de cara metade.
Ou seja, nem toda solteira é “de coração” – só aquelas que se identificam com esse estilo “avulso” de viver. “Estamos falando das que prestam atenção em quantas pessoas são importantes para elas, sem focar apenas ‘no cara’”, diz Bella. Para boa parte dessas ­solteiras, é nos momentos de solidão que elas conseguem ser mais criativas e focadas. “Isso aumenta a sensação de bem-estar e as faz ainda mais felizes”, afirma Bella. A socióloga explica que não se trata de mulheres que decidiram ficar sozinhas porque tiveram relacionamentos anteriores ruins. A solteira de coração não faz essa opção por ressentimento e, sim, por desejo. E razões não faltam: se arrumar para a balada, beijar e transar com homens diferentes; viajar­ sozinha e conhecer um monte de gente, decidir as programações de fim de semana sem ter que perguntar a opinião de ninguém.
"Nem filho nem marido garantem o
seu futuro.Isso é mito”
Jorge Forbes, psicanalista
AMIGOS NA NOITE
A paulista Muryel Dias, advogada, se reconhece no perfil. Aos quase 30 anos, tem a vida que sonhava quando era adolescente: um trabalho que a realiza e uma vida social agitada. “Às vezes, saio sozinha e faço amigos na noite”, conta. Nos tempos de colégio, ficava arrepiada ao ouvir as amiguinhas falando­ em casamento. Aos 14, pensava que uma união ideal era aquela na qual cada um tinha a sua casa. Após um longo namoro de seis anos, suas certezas se consolidaram. Workaholic assumida, a advogada enfrentava brigas com o ex toda vez que chegava muito tarde em casa. Quando ele sugeriu assinar os papeis, ela recusou. Preferiu continuar morando com a mãe enquanto junta dinheiro para comprar o próprio apartamento. Muryel acha que o matrimônio ameaçaria sua autonomia. Além disso, pensa que amor pressupõe saudade, enquanto o casamento gera comodidade. “É uma espécie de convivência forçada, não quero isso para mim”, diz.
“As mulheres estão começando a descobrir as delícias de viver só”, celebra a antropóloga social Mirian Goldenberg, autora de vários livros que tangenciam o tema como Toda Mulher é Meio Leila Diniz. “Ainda são poucas as que defendem a solteirice, mas esse número vai crescer e diminuirão os estigmas”, prevê. O principal deles é justamente o estigma do fracasso. O pejorativo termo “solteirona”, normalmente, é atribuído àquela mulher que passou dos 40 anos e, por não ter conquistado um homem a tempo, perdeu a chance. O segundo grande estigma é o de que solteiros terão uma velhice solitária. “O que é um grande mito, já que filho e marido não são garantia de companhia no futuro”, lembra Mirian. Por fim, resta o estereótipo de que todo solteiro é, no fundo, um egoís­ta. “Não! É o contrário”, defende a socióloga Bella DePaulo: “Os solteiros, em especial os que moram sozinhos, são solidários, mais dispostos a ajudar vizinhos, amigos e parentes do que os casados, que focam a energia só no parceiro”.
MÃE MODERNA
Se em pleno século 21, no Brasil, ainda é difícil bancar essa escolha, imagine quando a solteira convicta traz no pacote um filho? Geórgia Baçvaroff, 31 anos, assessora de imprensa em Belo Horizonte, percebe que, quando chega em qualquer lugar com seu filho Caio, 8, as pessoas olham sua mão esquerda em busca de uma aliança. Principalmente as mulheres. “É como se elas se perguntassem: tem um filho e não é casada? Como assim?” Para lidar com esse incômodo com mais naturalidade, Geórgia resolveu adotar respostas engraçadinhas receitadas pelo livro Mothern – Manual da Mãe Moderna (publicado pela Ed. Matrix) como: “Não posso contar quem é o pai, você corre riscos se souber”.

Editora Globo
Muriel: “Amor pressupõe saudade. Casamento gera comodidade”

TESTE DO CONVÍVIO O pai de Caio é presente no cotidiano do filho e fez parte da vida da mineira durante dez anos. Quando estavam na faculdade, chegaram a morar juntos por três meses: “Segui o conselho de meu pai. Ele sugeriu que eu fizesse esse teste antes de decidir se valia a pena casar”, recorda. Logo ela percebeu que não tinha nascido para o matrimônio. Geór­gia se incomodava com o fato de ela acordar cedo e ele tarde, de ela ser organizada, enquanto ele deixava tudo para a última hora e, principalmente, ela não achava graça no ciúme do namorado. Concluiu que, na vida a dois, a mulher sempre acaba se sobrecarregando. “Não aceitaria me doar mais que o outro, sei que começaria a cobrar e não gosto disso.” Continuaram namorando, mas cada um na sua casa. Quando Caio nasceu, o ex insistiu em oficializar a relação, mas Geórgia não topou. Dois anos depois, se separaram. Ela não bota fé nas supostas vantagens de casar, como ter alguém para conversar e fazer sexo regularmente. “Sexo sem compromisso também é muito bom e eu tenho tanta gente para conversar!” Com a vantagem de que não enjoa.
AUTOESTIMA
Para a sexóloga Carmita Abdo, coordenadora do programa de estudos da sexualidade­ da Universidade de São Paulo (USP), o relógio biológico exerce mais pressão na mulher do que o medo de não casar. No entanto, como a maternidade ainda é muito ligada ao casamento, poucas mulheres conseguem dissociar uma coisa da outra, como fez Geór­gia. Ao realizar um levantamento com mais de oito mil pessoas, a sexóloga verificou que a brasileira começa sua vida sexual aos 15 anos e só pensa em ter filhos depois dos 30. “O problema é que depois de mais de uma década de vida sexualmente ativa e com foco na carreira, essa mulher não vai querer se casar só para fugir da solidão ou para ter filhos. Ela quer alguém que valha a pena, que esteja à altura da autoestima que ela conquistou”, diz Carmita, resumindo um dilema moderno.
Na pesquisa, Carmita também detectou que a vida sexual das solteiras é mais intensa. “Os casados têm o outro sempre disponível, o sexo pode virar rotina”, diz a sexóloga. Muryel confirma que sua vida sexual esquenta quando está sem namorado fixo. Ana Raquel se sente mais solta com os desconhecidos. “É o momento de testar novas experiências sexuais­, não tenho vergonha ou medo do que o cara vai achar de mim.”
"Com vida sexual ativa e foco na carreira,
a mulher não quer fugir da ‘solidão’"
Carmita Abdo, sexóloga
LIVRES E PODEROSAS
Ana Raquel, Muryel e Geórgia incorporam algo que muitas outras mulheres já vivem, mas que ainda não enxergam como positivo. “Existem muitas solteiras felizes com a vida que levam, mas que não assumem”, acredita Mirian. “Elas valorizam essa liberdade, se sentem invejadas e poderosas, mas vivem com a sensação de que algo vai errado.” O psicanalista Jorge Forbes lida com essa realidade em seu consultório. Pacientes que se julgam infelizes porque não se casaram, mas que adoram seu jeito de viver. “Elas sofrem com o nome ‘solteira’ e não com o fato”, define o especialista, autor do livro "Você Quer O Que Deseja?" (Ed. BestSeller).
Esse descompasso acontece porque, segundo Forbes, estamos entrando na era do amor pós-moderno­: “Até 30 anos atrás, duas pessoas se uniam em nome de uma terceira coisa, fosse a família, a igreja ou pelo patrimônio”, explica­. Hoje, não existem outras justificativas para duas pessoas namorarem, a não ser o amor e o desejo. “Elas ficam juntas porque querem”, diz Forbes. É um novo romantismo? “Sem dúvida, o amor nunca foi tão valorizado”, afirma. Em função disso, a responsabilidade pelo êxito da união passou a ser compartilhada pelo casal, o que tirou um peso enorme dos ombros da mulher, sempre tida como a guardiã do amor. Para Forbes, o amor pós-moderno também desvencilhou-se da obrigatoriedade­ do “para sempre”, o que importa é a qualidade, não a longevidade. Tantas mudanças não impedem os conflitos, pois homens e mulheres ainda carregam as referências do passado. Entre elas, a de que amor e casamento andam de mãos dadas. E que uma união só faz sentido quando chegam os filhos. “O constituir família ainda legitima o amor”, pondera Forbes. Nesse contexto, as solteiras de coração são as porta-estandartes da pós-modernidade. Elas provam que casar e amar são dois verbos que se pode conjugar em separado. E que as mulheres têm muitas opções – inclusive a de se casar. Como todas as pioneiras, as solteiras de coração pagam o preço da pressão social. Muryel, presbiteriana que vai à igreja toda semana, é questionada pelos fiéis. Eles dizem que a religião preza a família e que é uma incoerência ela ser evangélica e não desejar formar o próprio núcleo familiar. Ela não se abala. “Incoerência é eles me cobrarem isso”, acredita. “Casadas ou solteiras, todas nós fomos feitas para ser feliz.” E Deus não tem nada a ver com as nossas escolhas.

Fonte:http://revistamarieclaire.globo.com/Revista/Common/

Comentários