VISÕES E REPRESENTAÇÕES DA ÁFRICA

 Do imaginário eurocêntrico ao afrocentrismo
Desde a Antiguidade, com Heródoto, a visão sobre a África foi de estranhamento. Os etíopes[1] narrados por ele, eram um povo diferenciado, por sua cor de pele, como sugere o nome, ao mesmo tempo em que admirava, os desqualificava. No período medieval, o imaginário sobre a África foi alimentado por vários fatores; por ser um período em que a mentalidade e visão de mundo eram voltadas para a religiosidade, assim, fica fácil entender as motivações que determinaram as representações sobre a continente. Momento das Navegações, os relatos dos aventureiros e navegantes trouxeram outro fator para a construção desse imaginário; agora, não somente de inferioridade, mas também de demonização. A localização geográfica, a cor da pele, o clima, todos esses elementos foram colocados como motivadores para a região africana ser um local de demônios, pecados, de povo não-civilizado, imerso na barbárie. A visão eurocêntrica de uma África totalmente tribal, inferiorizada, necessitando ser “civilizada”, justificaria o colonialismo (colonização das almas) e a política de escravidão, que ocorreu no a partir do século XVI. O surgimento do darwinismo no século XIX veio complementar a visão inferiorizada do continente africano, demonstrando por meio considerados científicos para a época, a evolução da raça humana e relegando ao negro o último lugar.
A imagem de África tribal permanece até os dias de hoje. Como herança cultural, temos em nossa mente esse imaginário, e é este mesmo imaginário do qual bebeu a historiografia. A História enquanto ciência surge no século XIX e, como não poderia ser diferente, – dado o seu contexto – não teve como preocupação o continente. Afinal de contas, neste momento, a História estava voltada para grandes feitos, heróis e nações, e se debruçava em documentos oficiais. Nesse sentido, a África não teria história, era um continente muito distante do progresso da humanidade. A existência de uma História sobre África para os historiadores neste período começa com a chegada dos europeus ao continente,
“Não só pela ação de registrar e relatar, feita por viajantes, administradores, missionários e comerciantes do século XV ao XIX, mas principalmente pelas mudanças introduzidas pelos europeus na África” (OLIVA, s/d, 438)
Além de não ter história, tudo que existia lá – sob o conceito de civilização – foi levado pelos europeus. Essa mentalidade relegou ao continente um permanente silêncio. 
No século XX, começaram a apontar os chamados estudos negros, principalmente nos EUA, porém, alguns deles tinham o objetivo de mostrar a superioridade africana, o afrocentrismo, apesar de abrir novos caminhos para a desconstrução do imaginário colonial-eurocêntrico e romper com o silêncio, acabou-se por inverter a fração. Ao se utilizarem de conceitos pré-estabelecidos da historiografia do período, colocavam a África como centro do mundo. Como é o caso das contribuições de Maurice Delafosse com as primeiras investigações sobre a cultura e sociedade África-subsaariana; com o Renascimento do Harlem, que trouxe à tona a questão do negro nos EUA; a produção caribenha anti-colonialista da década de 20 e 30; o conceito de negritude surgido na França, que visava potencializar e positivar a imagem do negro, como denúncia de um discurso colonialista e racista; juntamente com a intensificação do discurso de negritude de Cheik Anta Diop. Apesar das limitações metodológicas, todas foram contribuições importantes para a História da África e para o esvaziamento do discurso eurocêntrico. 
2. Novas análises; historiografia africana
Podemos considerar os estudos sobre a África como um campo recente na historiografia, apesar de como foi mostrado anteriormente, ele é recente no que diz respeito aos conceitos, às abordagens e aos métodos. Devemos observar os limites metodológicos dessas abordagens, já que se utilizavam de conceitos ocidentais para falar da África. Na Nova História, não só um novo olhar foi lançado sobre o continente, mas também uma nova forma de fazer História. 
A partir da década de 60, a historiografia africana sofreu mudanças e adequações, até a década de 80, era mais voltada para o econômico, buscando entender o período da escravidão. Só a partir da década de 90 que temos estudos com foco cultural mais completos. Os estudos sobre a escravidão permitiram abrir novos caminhos a serem discutidos; a questão cultural, por exemplo, a questão da diáspora negra, a questão econômica propriamente dita.  Mas é a partir de 90 que vemos uma guinada nos estudos negros. Como aponta Linda M. Heywood, é a partir deste período, com estudos culturais, que temos novos conceitos a fim de entender e analisar de maneira mais correta essa questão, como o conceito de Atlântico Negro e Atlântico Sul[2]. A revitalização do modelo de análise cultural permitiu, com uma “transculturalização” uma perspectiva de construção identitária para os negros, não vista antes. 
Novos temas são encontrados, o momento do multiculturalismo[3] nos trouxe questões como a etno-influência na América. Aos anos 90 coube a preocupação central da transformação das identidades e etnias, a partir do choque cultural ocorrido no período da escravidão, nossa herança cultural e religiosa são focos que mereceram cuidados nas análises. O próprio conceito de etnia está sendo reelaborado, no sentido de trazer uma realidade que quebre as barreiras do preconceito e da discriminação. Uma positivação da imagem do negro para alterar o imaginário eurocêntrico que ainda prevalece no senso comum; conceito de reafricanização de estudos sobre os centro-africanos no Caribe; a formação da identidade crioula-americana elaborada por Ira Berliu[4]. São todos estudos que estão no caminho de uma afirmação da identidade do negro, e das matrizes culturais da sociedade em si.
A Nova História trouxe novos agentes também, como é o caso do negro, que apesar de termos estudos anteriormente, é nesse momento que, com novas abordagens, com a historiografia bebendo de outras ciências, que podemos de fato falar de matrizes culturais negras e escravas por exemplo. Quando se trata África, ou de afro-brasileiros, centro-africanos, fica difícil sem ter uma perspectiva além da própria História, a etnografia e a antropologia, podem ter incorrido em erros anteriormente, mas foi assim com a própria História, e o que importa no momento é quanto se pode beber de outras ciências a fim de reestruturarmos a identidade do negro. Se assumir multicultural é entender a cultura além do eurocentrismo, ou do afrocentrismo, é entender as multiplicidades que influenciaram o processo de construção da cultura como ela é hoje.
Considerações finais
Nas linhas que se seguiram buscamos tecer alguns comentários sobre a historiografia africana, entendo ser um tema bastante complexo, visamos o essencial. A construção da identidade do negro, longe de ser uma questão congelada, é de constante refazer-se, e de redescoberta, sem jamais congelar no tempo.
Porém, não é só redescobrir a identidade do negro a partir da História da África, é também de redescobrir a identidade de uma sociedade no geral, pois direta ou indiretamente, somos herdeiros de matrizes africanas, assim como indígenas. Uma transformação social está além de um agente histórico, é uma redescoberta de todos, e as contribuições sociais da História da África são contribuições para uma sociedade inteira. 
Referências bibliográficas
ASSIS, Marta Diniz Paulo de. CANEN, Ana. Identidade negra e espaço educacional: vozes, histórias e contribuições do multiculturalismo. HEYWOOD, Linda. A Diáspora Negra no Brasil, São Paulo: Contexto, 2008.
OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares: Representações e imprecisões na literatura didática. S/d.



[1]  “Do grego Aethiops, significado terra dos homens de pele negra” Vide: OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares. Pg. 434.
[2] Vide HEYWOOD, Linda. A Diáspora Negra no Brasil. pg. 17.
[3]  “[...] movimento teórico e político que rompe com a idéia de homogeneidade cultural e busca respostas para incorporar a pluralidade cultural e o desafio à construção das diferenças nos espaços culturais plurais, incluindo a educação [...]. ASSIS, Marta Diniz Paulo de. CANEN, Ana. Identidade negra e espaço educacional: vozes, histórias e contribuições do multiculturalismo.
[4] “Berlin afirma que as culturas da América crioula tiveram seu nascimento nas comunidades que se formaram em volta dos fortes e povoados europeus na parte costeira da África, e que essas comunidades propiciaram a matriz básica para as culturas afro-americanas escravas. Certamente essa visão deve ser considerada em qualquer análise sobre a identidade e etnia escravas na América”. Vide HEYWOOD, Linda. A Diáspora Negra no Brasil. pg. 23
Por Paloma Andrade

Na vitrine, a África


Desde os ventos que sopraram na Europa nos anos após a Idade Média Central, o comércio de raridades e o valor cada vez mais crescente de “objetos das culturas exóticas” fez com que a classe dos mercadores passasse a catalogar, institucionalizar e cotar preços e valores culturais para criações de povos dos cantos mais remotos do mundo. Mesmo a Igreja com suas relíquias seguia uma tendência de valorização dos objetos (nesse caso, “santos”) de um passado distante ou de longínquas províncias do antigo Império Romano, ruínas dos primórdios do cristianismo. Com as explorações marítimas do final do século XV, três continentes tornaram-se fornecedores de curiosidades para o “mercado da cultura selvagem”, América, África e Ásia, e dessa tríade, a África se destaca no século XVI como também fornecedora de mão de obra escrava, e com o tempo, de matérias-primas, diamantes e terras para engrandecer os impérios do Velho Continente. O processo de exploração do Continente-Mãe, no entanto, tende a ser estudado por um único prisma, o da escravidão, mas há uma infinidade de questões a ele relacionadas, que se perderam mesmo da memória dos historiadores, e são praticamente desconhecidas da população comum. Uma dessas questões é a exposição que a burguesia colonialista fez e faz da cultura africana (também) como exotismo digno de apreciação das massas, e esse tema é abordado de forma primorosa no documentário As estátuas também morrem (1953), dirigido por Chris Marker (em seu segundo filme) e Alain Resnais.
O média-metragem enfoca as sociedades africanas a partir de sua produção de identidade própria, suas variedades de máscaras, rituais, modos de vida e meios de produção, ao passo que somos apresentados à visão capitalista do continente, que tem seu ponto máximo no momento em que os afrodescendentes só conseguem ter contato com sua cultura ancestral através da vitrine de um museu. Para os cineastas, as estátuas produzidas por essas sociedades morrem no dia em que são catalogadas e expostas à visitação, fora de seu contexto histórico original, tornando-se objeto de comércio e convenções artísticas, cobiça de Estados e curadores de diversas instituições. As estátuas morrem quando perdem o seu significado sagrado de criação e transforma-se em peça “desconhecida” ou “anônima” nas placas esmaltadas de identificação.
 Marker e Resnais partem do inanimado, das estátuas abandonadas, ruínas de uma história a que só se pode imaginar o conteúdo pela falta de outros indícios de sua existência. Desses fotogramas praticamente imóveis, a voz indiscreta de um narrador crítico nos apresenta a situação inicial: o abandono da arte e o resgate feito pelos museus, uma iniciativa nobre sob as bases repudiáveis da exploração. Mas uma ponte histórica é construída, e somos levados ao passado a fim de percorrermos uma linha do tempo em análise mais detalhada. Peças de Ifé, do Mali, rituais nagô, obras de Gana, Etiópia, Chade, resquícios dos reinos cristãos da Núbia, comunidades do litoral do Oceano Índico, região dos Grandes Lagos e Chade, do Baixo Zaire, Angola e Benin, um amplo resgate artístico e histórico (contidos em 30 minutos de filme) se faz diante dos nossos olhos. A demonização do negro (expiação dos pecados do branco), a selvageria territorial do continente africano, o sincretismo compassado ou imposto violentamente, a apropriação criminosa da cultura alheira, tudo isso se discute rapidamente sem responder absolutamente nada – a verdade absoluta não faz parte de um documentário dessa estirpe.
O conteúdo das imagens alternam-se entre fotogramas e panorâmicas geográficas sobre grandes extensões de terra. Animações feitas com mapas antigos do continente, peças destacadas em zoom dramático em direção ao espectador, primeiríssimos planos em máscaras, olhos, pilões, teares, uma variedade muito dinâmica de linguagens fílmicas é usada no decorrer do documentário, que não deseja ser uma opinião definitiva, deixando abertos os diversos caminhos para desvios de pensamento daquele que assiste. Além disso, há um certo “quê” de visão romântica, de “legenda rosa” sobre os fatos abordados, o que entrega ainda mais a construção do recorte antropológico dos realizadores.
Contudo, o caminho das pedras segue o rumo da morte da identidade negra, e chegamos à passagem do século XIX para o XX. Estudos realizados mostram comparações absurdas e anacrônicas com os materiais encontrados em sítios arqueológicos; enxergam deuses assírios, feições hindus e chinesas, o Cristo romano e o atleta grego em peças do Sael africano. Ah, a obsessão burguesa em dar rótulos a tudo quanto existe! E dessas disparidades acadêmicas, chegamos às disparidades atuais. O negro-escravo dá lugar ao negro-fantoche: o desempenho dos atletas negros nas Olimpíadas, o jazz, o boxe, os líderes políticos e revolucionários abaixo do Saara, todos se tornaram parte de um espetáculo que mixa complacência e incompreensão.
A manipulação de documentários antigos e vídeos amadores, a fusão de imagens, a construção do próprio espetáculo da crítica e a posição política dos realizadores antecedem aquilo que a “onda-verdade” dos documentários pregaria nos anos 60; e claro, a oposição com o cinema-direto americano é evidente. Marker e Resnais brincam com as imagens, fazem a sua versão da história, interferem na linha dos fatos e dramatizam com a música de Guy Bernard. Não só pela riqueza do que traz, mas pela não cristalização da verdade, As estátuas também morrem é obra obrigatória para os que buscam no cinema a semente das versões da história e da crítica dentro da herança deixada pelos irmãos Lumière.
Les statues meurent aussi, França, 1953
Por Luiz Santiago
[colaborador da Revista Parâmetro]
Direção: Chris Marker e Alain Resnais

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