SOBRE A MORTE E O MORRER

Nós todos vamos morrer. E, acredite ou não, esse é um evento tão natural quanto nascer, crescer ou ter filhos. No entanto, a idéia da finitude nos enche de terror. Por quê? Será que precisa ser assim? Dá para sofrer menos?

por Maria Fernanda Vomero


Há muito tempo, no Tibete, uma mulher viu seu filho, ainda bebê, adoecer e morrer em seus braços, sem que ela nada pudesse fazer. Desesperada, saiu pelas ruas implorando que alguém a ajudasse a encontrar um remédio que pudesse curar a morte do filho. Como ninguém podia ajudá-la, a mulher procurou um mestre budista, colocou o corpo da criança a seus pés e falou sobre a profunda tristeza que a estava abatendo. O mestre, então, respondeu que havia, sim, uma solução para a sua dor. Ela deveria voltar à cidade e trazer para ele uma semente de mostarda nascida em uma casa onde nunca tivesse ocorrido uma perda. A mulher partiu, exultante, em busca da semente. Foi de casa em casa. Sempre ouvindo as mesmas respostas. “Muita gente já morreu nessa casa”; “Desculpe, já houve morte em nossa família”; “Aqui nós já perdemos um bebê também.” Depois de vencer a cidade inteira sem conseguir a semente de mostarda pedida pelo mestre, a mulher compreendeu a lição.
Voltou a ele e disse: “O sofrimento me cegou a ponto de eu imaginar que era a única pessoa que sofria nas mãos da morte”.
A morte pode ser vista como um mistério incompreensível. Ou como um absurdo inaceitável. A morte pode até ser tratada como um tabu, assunto do qual a maioria das pessoas não gosta de falar. Mas, seja como for, aceitemos isso ou não, a morte é um fato, uma realidade inexorável. E que vem para todos nós. Por mais que queiramos nos esconder dela, deixar de existir é uma coisa tão natural quanto existir. Na verdade, a morte é provavelmente a única coisa certa na sua existência ou na minha – e também na de nossos pais, nossos filhos, nossos ídolos e inimigos, de todas as pessoas que amamos e mesmo daquelas que jamais chegaremos a conhecer: é certo que todos nós vamos morrer um dia. Pessoas boas, pessoas ruins, gente em Xanxerê, Santa Catarina, ou em Nagano, no Japão. E esse dia pode acontecer amanhã ou daqui a 60 anos.
A morte faz parte da vida. Todos começamos a morrer exatamente no dia em que nascemos. A morte, portanto, é um etapa da nossa existência com a qual temos que conviver. Pode-se conviver melhor ou pior com ela. Mas não se pode evitá-la. Pode-se aceitar a sua inevitabilidade e olhá-la de frente. Ou pode-se negá-la, fugir dela, imaginar que não pensar na morte possa fazer com que ela deixe de acontecer com você ou com a sua família. Mas o fato é que todos nós estamos programados para nascer, crescer e morrer – uma obviedade esquecida por boa parte da sociedade ocidental contemporânea, que teima em ver a morte como um evento artificial, inesperado e injusto. Sobretudo, costumamos vê-la como um evento exclusivo, pessoal, que isola quem sofre uma perda, por meio da dor, do resto do mundo. Quando, ao contrário, não há nada menos exclusivo do que morrer. Nem nada que perpasse mais a humanidade do que o sofrimento de uma perda.
Como está expresso na fábula tibetana, a morte não é privilégio nem desgraça particular de ninguém. Ela chega para todos, sem exceção.
Mas, afinal, se a morte é tão comum e corriqueira, por que ela nos causa tanto medo? “O maior desejo do homem é a imortalidade”, diz a psicóloga Ingrid Esslinger, da Universidade de São Paulo (USP), acostumada a atender pessoas em situação de luto. “Por isso, muitas vezes a morte é considerada uma inimiga.” E uma adversária, que poderia ser vencida pelos avanços científico-tecnológicos do século XX, que aumentaram indiscutivelmente a eficiência dos diagnósticos, dos medicamentos, das técnicas cirúrgicas etc. O sonho da permanência ganhou um reforço com as melhorias trazidas pela medicina, com o aumento da expectativa de vida, com a possibilidade de haver cura para todas as doenças, mesmo o câncer ou a Aids. Enfim, soa como um despropósito falar de morte a quem tem as descobertas da ciência a seu favor. Afinal, se existem meios de prolongar a vida útil do ser humano, de manter-se jovem, de atrasar o envelhecimento, de viver mais de 100 anos, por que pensar na finitude?
É um paradoxo: a valorização da vida e a ilusão de eterna beleza e jovialidade trazidas pela vida moderna acabam gerando, por meio do apego a tudo isso, muito mais tristeza e sofrimento pelo fim inevitável da existência do que felicidade pelo mais de vida que proporcionam.
O mundo ocidental transformou a morte em tabu: ela costuma ser ocultada das crianças e banida das conversas cotidianas. Tudo aquilo que possa lembrá-la – a enfermidade, a velhice, a decrepitude – é escamoteado. Os doentes morrem no hospital, longe dos olhos – e, não raro, do coração – de seus amigos e parentes. E os rituais de luto são cada vez mais rápidos e pragmáticos. O medo natural que todo ser humano sente diante da própria finitude vira pânico. E mesmo a morte natural – não causada, por exemplo, pela tremenda violência que a cada dia assola os cidadãos no Brasil – acaba virando sinônimo de aniquilamento sumário, de abreviamento. O que, no mais das vezes, não corresponde à realidade por se tratar apenas de uma vida que chegou naturalmente ao fim, de uma existência que simplesmente expirou.
“Partimos de idéias preconcebidas sobre a morte, formadas a partir da nossa personalidade, da educação familiar e do ambiente sociocultural e religioso em que vivemos”, diz a psicóloga Bel Cesar, do Centro de Dharma da Paz, em São Paulo, e autora de Morrer Não Se Improvisa. Tais imagens são rótulos que muitas vezes não correspondem à experiência humana e que acabam alimentando fantasias amedrontadoras. “Refletir sobre a morte pode torná-la mais familiar e, portanto, menos ameaçadora”, diz.
O primeiro passo para conviver melhor com a idéia da morte é esquecer aquela imagem medieval, um tanto tétrica, de um esqueleto coberto com uma capa preta carregando uma foice afiada na mão. Talvez uma imagem melhor para a morte seja imaginá-la como o fim de uma festa muito bacana: você já sabia que ela acabaria, que ela teria que acabar, em algum momento. E, pensando bem, talvez não seja de todo mal que a festa termine. Você agüentaria dançar na pista para sempre? Por melhor que seja a música, tem uma hora que seu corpo e sua mente pedem descanso. E aí, talvez, seja o momento mesmo de sair da pista, serenamente, sem traumas, e dar lugar a quem está chegando à festa cheio de gás.
Bel propõe um exercício de meditação, inspirado nas práticas budistas: repita a palavra “morte”, de olhos fechados, inúmeras vezes. “Surgirão pensamentos, imagens e sentimentos muitas vezes antagônicos. Mas, se você continuar essa experiência de mergulhar até onde a palavra ‘morte’ o levar, verá que algo dentro de você mudará positivamente”, diz ela.
O medo da morte é um sentimento inerente ao processo de desenvolvimento humano. Aparece na infância, a partir das primeiras experiências de perda. E tem várias facetas: trata-se de um medo do desconhecido, somado ao medo da própria extinção, da ruptura da teia afetiva, da solidão e do sofrimento. “O medo da morte é fundador da cultura”, diz a socioantropóloga Luce Des Aulniers, responsável pela disciplina de Estudos Sobre a Morte, da Universidade de Quebec, em Montreal, Canadá. “Esse medo funciona como pivô e como motor de todas as civilizações. A partir do desejo de perenidade, se desenvolvem as instituições, as crenças, as ciências, as artes, as técnicas e mesmo as organizações políticas e econômicas.”
Esse é o lado, digamos, vital da morte. “O medo da morte nos força a viver – a nos relacionarmos, a procriarmos, a criarmos, a construirmos coisas que nos transcendam”, diz Luce. Na ilusão da imortalidade, o ser humano acredita que suas obras sejam permanentes e garantam que ele não seja esquecido. Cada um adapta, à sua própria maneira, a máxima “plantar uma árvore, escrever um livro e fazer um filho”. Isso ocorre porque, para o nosso inconsciente, a morte nunca é possível nem admissível quando se trata de nós mesmos. “A idéia da não-existência provoca tal desconforto que a mente humana acaba criando alguns mecanismos de defesa para fugir dessa realidade”, diz o psiquiatra e psicanalista Roosevelt Smeke Cassorla, da Sociedade Brasileira de Psicanálise, em São Paulo. A negação e a repressão da idéia de morte são exemplos desses artifícios.
Nada disso é novidade. Desde os tempos mais remotos, os homens já enxergavam a morte como elemento antagônico à vida – e não como parte integrante e inseparável dela. Talvez fosse mais fácil aceitá-la como fato natural quando ela acontecia aos borbotões, quando a expectativa de vida das pessoas era de 35 anos. Mas o estranhamento e o terror sempre existiram. As pinturas encontradas nas paredes de cavernas como Lascaux e Chauvert, na França, revelam o incômodo que a morte provocava no homem de 30 000 anos atrás. Os episódios alegres, como as caçadas, eram retratados em cores vivas, usando óxido de ferro (alaranjado) ou calcário amarelo. As imagens fúnebres, por sua vez, eram pintadas com cores escuras, com carvão.
O antagonismo se mantém dentro de cada um de nós, no jogo constante entre Eros, o deus grego do amor, e Tanatos, o deus da morte, para usar uma imagem cunhada por Sigmund Freud, fundador da psicanálise. As forças da vida, representadas por Eros, estimulariam o crescimento, a integração, a autoproteção e a sobrevivência. As forças da morte, representadas por Tanatos, alimentariam os instintos destrutivos e as atitudes de auto-sabotagem, por exemplo. Da conciliação dessas forças contraditórias, surgiria o equilíbrio e o vigor emocional necessários para viver.
No entanto, o medo de morrer pode gerar um apego desmedido a elementos cotidianos e um conseqüente desespero diante da possibilidade de vir a “perder tudo” com a morte – a companhia dos amigos, o carro novo, os imóveis, o status social, os projetos não realizados. No budismo, assim como na tradição cristã, o desapego é condição essencial para uma “boa morte”. “Normalmente assumimos que precisamos dominar alguma coisa para que ela nos traga felicidade. E nos perguntamos: como é possível saborear alguma coisa se não podemos possuí-la?”, escreve Sogyal Rinpoche, em seu O Livro Tibetano do Viver e do Morrer. “Mas, na morte, não podemos levar nada conosco.” Nem bens, nem diplomas, nem o sucesso. Eis aqui outro paradoxo: para viver bem, sem o terror e o tormento da idéia do fim, é preciso cultivar um certo desapego em relação à vida.
Em outras palavras: para experimentar a “boa morte” e morrer serenamente – em oposição a viver atarantado pela iminência da “cadavérica” e assim morrer sofrendo – é preciso absorver a idéia de que, como quase tudo neste mundo, também nós somos impermanentes.
A vida é como um contrato que estabelece a própria vigência em uma das cláusulas. Ou seja, basta estar vivo para estar sujeito às leis da existência, que determinam o seu próprio término. Lutar contra esse fato inelutável é garantia de dor. Ao contrário, aceitar a transitoriedade da condição humana – que se aplica a você, a mim e a mais seis bilhões de indivíduos – ajuda a aliviar o sofrimento que a idéia da morte costuma trazer. Você não pode mudar o fato de que vai acabar um dia. Mas você pode mudar o modo como se relaciona com esse fato. Em certas ordens religiosas católicas, os monges, ao se encontrarem nos corredores do mosteiro, costumam dizer uns aos outros: “Memento mori”, uma expressão latina que significa “lembre-se de que vai morrer”. A saudação – que é o contraponto de “Carpe diem” (“aproveite o dia”) – funciona como um exercício espiritual de aceitação gradual e diária da morte, vendo-a como uma conseqüência da própria vida e também de preparação para o momento em que ela acontecer.
O contrário disso é o culto ao ego, ao “pequeno eu” que há dentro de cada um de nós, manifestado na não-aceitação do curso natural dos acontecimentos, quando ele não ocorre como gostaríamos. E que está presente no indivíduo que tenta se colocar sempre acima do todo a que pertence. Ao não conseguir fazê-lo, esse “eu” sofre exagerada e desnecessariamente para aceitar a parte que lhe cabe. Na vida, quanto mais você está centrado em si mesmo, sem compartilhar suas alegrias e suas frustrações com os outros, mais você sofre com a ausência de solidariedade, com o isolamento que impõe a si mesmo, com a falsa idéia de que está desamparado. Na morte, acontece a mesma coisa. Quanto menos você compartilha a sua dor – e o sofrimento é um dos elos fundamentais da humanidade –, mais insuportável ela se torna.
As perdas que você acumula ao longo da vida podem tanto potencializar o seu medo da morte quanto ensiná-lo a conviver melhor com a finitude. “Vivemos pequenas perdas todos os dias. Uma separação, uma demissão, a morte de um amigo, a notícia de uma doença incurável”, diz a psicóloga Maria Helena Bromberg, coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre Luto (Lelu), da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. “Essas experiências cotidianas de morte nos ajudam a entender que nada dura para sempre. Inclusive nós, em nossa natureza mortal.”
Uma história antiga ajuda a entender melhor esse processo de pequenas aprendizagens – e como muitos de nós o ignoram. Um dia, há muito tempo, um homem resolveu fazer um trato com a Morte. Prometeu a ela que não ofereceria resistência quando sua hora chegasse. Mas pediu, em troca, que fosse avisado com antecedência porque queria ter tempo suficiente para terminar todas as suas tarefas. O acordo foi feito. Tempos depois, houve um acidente grave na cidade e muitos amigos do homem morreram. Anos mais tarde, um vizinho próximo faleceu. Em seguida, foi a vez de um tio. Até que o homem ficou doente e, em alguns meses, encontrou-se com a Morte. Ela tinha vindo buscá-lo. Revoltado, reclamou: “Eu pedi que você me avisasse quando viria e não recebi um sinal!” Ao que a Morte respondeu: “A morte dos seus amigos, do seu vizinho, do seu tio não bastaram?”
Para quem busca na filosofia maneiras de lidar melhor com a morte, as reflexões finais do filósofo grego Sócrates – condenado a tomar cicuta, um veneno letal –, realizadas no século V a.C., representam um excelente exercício de aceitação. “Porque morrer é uma ou outra destas duas coisas. Ou o morto não tem absolutamente nenhuma existência, nenhuma consciência do que quer que seja. Ou, como se diz, a morte é precisamente uma mudança de existência e, para a alma, uma migração deste lugar para outro”, afirmou Sócrates. Em outras palavras: para quem não acredita na continuação da vida, a morte é o nada, é a ausência completa de angústias e desesperos, é o fim das aflições. E para quem acredita na continuação da vida, a morte é a passagem desta existência para outra melhor. De qualquer modo, a dor estaria na vida e não na morte.
Quando chegou o momento de beber o veneno, Sócrates disse a seus discípulos, numa última lição: “Mas já é hora de irmos: eu para a morte e vocês para viverem. Mas quem vai para melhor sorte é segredo, exceto para Deus.”
A morte é um assunto tão complexo que sequer há uma concordância entre os cientistas quanto sua definição. No campo filosófico, essa discussão fica ainda mais sinuosa. “Apesar de considerarmos a morte como um evento biologicamente irreversível, ela não pode ser determinada exclusivamente pelo critério biológico, pois envolve também questões ontológicas e filosóficas”, afirma o patologista forense Marcos de Almeida, professor de Medicina Legal e Bioética da Universidade Federal de São Paulo. Alma e consciência são sinônimos? Existe uma alma imortal? Se sim, para onde ela vai quando morremos? Sem respostas definitivas da ciência, o homem busca, nas crenças religiosas, explicações para o fenômeno da morte. Para uns, trata-se de uma passagem, uma transição desta vida para outra, mais plena e mais feliz. Para outros, é o momento máximo de iluminação, uma forma de libertação do sofrimento.
Há ainda aqueles para quem morrer é simplesmente deixar de existir – como se fôssemos uma lâmpada que se apaga, sem qualquer possibilidade de transcendência.
“Pesquisas demonstram que pessoas com forte grau de envolvimento religioso, independente da crença, geralmente têm menos medo da morte”, afirma a psicóloga Maria Júlia Kovácz, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM) da USP e autora de Morte e Desenvolvimento Humano. “A fé ajuda a superar a ansiedade em relação à idéia de finitude”, diz ela. Para o psicanalista Roosevelt Cassorla, “na religião o indivíduo convive melhor com a finitude porque lá encontra certezas sobre por que vive, por que morre e o que acontece após a morte.”
Se há uma outra vida que se segue à morte, existiria então uma continuidade da mente ou do espírito. “Viver em função dessa continuidade nos torna mais responsáveis pelas conseqüências dos nossos atos”, diz a psicóloga Bel Cesar. “O fruto apodrece, cai no chão, mas deixa a semente que dará vida a outro fruto. Assim também conosco.” A visão espiritual da morte implica desapego. Afinal, é também por meio da aceitação da impermanência humana que a religião ajuda a suavizar o sofrimento causado pela finitude. Por outro lado, a idéia de transcendência, do indivíduo que vence a morte, paradoxalmente embute uma aspiração à perenidade, ao não admitir que o sujeito chegue a um fim e ao propor que ele perdure em algum outro lugar, existindo de alguma outra maneira.
Em oposição à visão espiritualista da morte, há a tradição materialista ocidental, que surgiu na Antigüidade e depois foi retomada pelos filósofos do Iluminismo, a partir do século XVIII, para a qual a morte é o fim total e absoluto. Nada mais do que a interrupção de um processo neurofisiológico, de um mero evento biológico. Essa concepção, mais tarde lapidada pelos existencialistas, como o francês Jean-Paul Sartre, funda muito da nossa visão de que morrer é um fracasso, um escândalo, uma idéia inconcebível com a qual é impossível lidar e inútil tentar conviver. “Morrer é um absurdo”, escreveu o filósofo existencialista Arthur Schopenhauer (1788-1860). A morte não cabe na idéia cartesiana de vida – para a qual tudo poderia ser medido, compreendido, planejado. A finitude quebra a ilusão iluminista e antropocêntrica de que o homem poderia controlar tudo por meio da sua razão. A possibilidade de não estar mais aqui amanhã não cabe nesse jeito de entender o mundo.
O Ocidente, em seu esforço por não admitir a morte, está há pelo menos 30 anos obcecado pela idéia do jovem como metáfora de vida saudável. O envelhecimento, que também pode ser saudável, é visto sempre como decrepitude – e a morte é vista sempre como a epítome disso. “Há uma negação muito clara da finitude. Sobretudo porque os valores da sociedade de massa e de consumo são antagônicos à idéia de morte: o fetichismo da juventude eterna, os ideais de progresso, a acumulação de bens, a busca da imortalidade”, diz Olgária Feres Matos, professora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. A sociedade ocidental vive um presente perpétuo, imediato. “Não há nem a visão de um futuro nem a evocação de um passado. Por isso, a morte não é admitida como uma experiência humana aceitável”, afirma Olgária. O resultado é uma sociedade atormentada, que busca inutilmente a serenidade e a felicidade não no autoconhecimento, mas em fugas da realidade indiscutível de que um dia iremos deixar de existir.
“Atualmente se vive muito mal. As pessoas, hipnotizadas por falsas necessidades, não têm uma vida emocional rica. E morre-se de modo ainda pior”, diz o psicanalista Roosevelt Cassorla. Muitas vezes, morre-se sozinho, na assepsia gelada dos hospitais, experimentando um dos medos mais primitivos do ser humano: a solidão. Até o luto é suprimido – uma exigência implícita para que a dor seja contida, pois os sinais de morte não podem transparecer aos que ficaram.
“Gastamos nossos dias tentando aproveitar a vida e chegamos ao momento da morte totalmente despreparados”, afirma o filósofo Basílio Pawlowicz, da Associação Palas Athena, um centro de estudos especializado em temas ligados à espiritualidade, em São Paulo. “Se você não disse o que queria dizer, não amou o quanto poderia amar, não tentou aquilo que desejava tentar, logicamente morrerá angustiado, com a sensação de que a vida se foi e tudo ficou pela metade.”
Mesmo no mundo ocidental, no entanto, sobrevivem tradições que, ao festejar a morte, celebram a vida. O “Dia dos Mortos”, no México, é um exemplo disso. “Ainda existem aldeias que desenterram os mortos nesse dia. Trata-se de um costume indígena milenar. As refeições são feitas no cemitério e as crianças ganham doces e bombons em forma de caveiras”, diz o historiador Leandro Karnal, professor de História da América na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “No interior do país, sobrevive a prática de conversar com os mortos para colocá-los a par do que aconteceu durante o ano.” As famílias preparam altares para seus falecidos e neles colocam os objetos de predileção do parente morto: livros, cigarros, comidas, fotografias.
A atitude de festejar a morte também está presente na cultura japonesa. “Povoado do Moinho”, o último episódio do filme Sonhos (1992), do diretor japonês Akira Kurosawa, exibe o confronto entre a antiga concepção de morte, expressa nos ritos funerários do vilarejo, e a nova, ocidentalizada, representada por um forasteiro que assiste à cerimônia. O cortejo segue, alegre, pelas ruas do povoado. Crianças, jovens e adultos cantam e dançam durante todo o trajeto do enterro. Eles celebram a morte de uma das mulheres mais velhas da aldeia. O clima de festa surpreende o forasteiro, acostumado – como nós – à atmosfera sombria de boa parte da liturgia funerária ocidental. Um velhinho centenário, então, explica ao rapaz que é uma honra encontrar a morte depois de uma existência tão plena como a daquela mulher. Por isso, tal fato merece comemoração. A história mostra como o fato de morrer pode ser encarado com serenidade e satisfação, como uma homenagem à própria vida que terminou ali.
A morte já foi vista de modo mais familiar pelo Ocidente. E não faz tanto tempo assim. Até meados do século passado, era costume morrer em casa, cercado por parentes. “A família reunia-se em volta do leito para ouvir a última palavra daquele que estava morrendo”, afirma o historiador Eduardo Basto de Albuquerque, da Universidade Estadual Paulista, em Rio Claro. “Era um momento de despedida.” Não se ocultava das crianças a morte como se faz atualmente. O velório também era, na maioria das vezes, realizado em casa – tradição que ainda sobrevive em algumas cidades do interior do Brasil. “Existiam comidas típicas para a ocasião. Os parentes preparavam alguns pratos para receber os conhecidos que participavam do enterro. Havia, inclusive, cânticos e orações especiais para o momento”, diz Eduardo.
Com a morte tendo sido transferida para a impessoalidade dos hospitais, perdemos a noção da importância dos rituais funerários, que conferem um sentido ao sofrimento e à morte. A expulsão da morte da nossa intimidade, privando aquele que está prestes a morrer da nossa ternura e da nossa solidariedade nos momentos finais, é uma metáfora da negação da finitude que operamos em nossas próprias vidas. “Os rituais de morte estão presentes em todas as sociedades do planeta. Servem para a compreensão ‘social’ do fenômeno: ajudam a digerir o impacto provocado pela perda do outro e funcionam como fator de agregação daquela sociedade”, diz o antropólogo Guillermo Ruben, da Unicamp.
“Os rituais seculares foram esvaziados de sentimentos e significado”, escreveu o sociólogo alemão Nobert Elias, na arguta análise da experiência de morte nos dias de hoje, presente em A Solidão dos Moribundos. “O crescente tabu da civilização em relação à expressão de sentimentos espontâneos e fortes trava suas línguas e mãos. E os viventes podem, de maneira semiconsciente, sentir que a morte é contagiosa e ameaçadora; afastam-se involuntariamente dos moribundos”, afirmou. “Mas, para os íntimos que se vão, um gesto de afeição é talvez a maior ajuda, ao lado do alívio da dor física, que os que ficam podem proporcionar.”
O temor do “contágio” pela morte explica a solidão e a frieza das unidades de terapia intensiva, onde, muitas vezes, os doentes terminais morrem sem a possibilidade de dizer uma última palavra aos que amam e sem ninguém que lhe ofereça conforto espiritual. Claro que morrer assim dá muito medo. Estabelece-se aí um círculo vicioso: temos pânico da morte porque ela nos parece horrível e a tornamos muito mais horrível do que poderia ser porque nos afastamos dela – e de quem morre. O escritor budista Sogyal Rinpoche, autor de O Livro Tibetano do Viver e do Morrer, espantou-se quando visitou o Ocidente pela primeira vez, na década de 1970, e constatou a insensibilidade do atendimento aos doentes terminais. “O que me perturbou profundamente, e ainda continua a perturbar, é a quase inexistência de auxílio espiritual que há na cultura moderna para aqueles que vão morrer”, escreveu ele. “Cuidado espiritual não é luxo para poucos; é direito essencial de todo ser humano.”
No início dos anos 70, iniciou-se um movimento de humanização da medicina, principalmente no campo do atendimento aos pacientes terminais, que veio a se contrapor à frieza ainda dominante dos hospitais modernos. A enfermeira britânica Cicely Saunders inovou ao propor um atendimento multiprofissional aos pacientes portadores de câncer avançado, em locais chamados hospices. Nesses abrigos, o doente conta com os cuidados médicos e com a proximidade da família. Da equipe multiprofissional fazem parte também psicólogos e sacerdotes de diferentes religiões, prontos a oferecer assistência psicológica e espiritual. O “movimento hospice” incentivou a criação das unidades de cuidados paliativos, que funcionam ligadas aos hospitais, e do homecare, o atendimento domiciliar a pacientes terminais. A idéia é simples: tão fundamental quanto ter uma boa vida é gozar de uma morte mais humana, mais envolta em serenidade e ternura.
Eis o conceito, ainda tímido no meio médico mas bastante pertinente, de ortotanásia – a morte digna, sem abreviações desnecessárias e sem sofrimentos adicionais.
No Brasil, o pioneiro na divulgação dos cuidados paliativos foi o médico Marco Tullio de Assis Figueiredo, professor da Universidade Federal de São Paulo, antiga Escola Paulista de Medicina. Além de ter criado dois cursos voltados aos estudantes da área de saúde – um sobre Tanatologia (o estudo da morte) e outro sobre Cuidados Paliativos –, Marco Tullio implantou uma Unidade de Cuidados Paliativos no Hospital São Paulo. “Os estudantes de Medicina, em geral, nada aprendem em seus cursos sobre a morte e a dimensão do processo de morrer”, diz ele, que é sócio-fundador da Associação Internacional para Hospices e Cuidados Paliativos. “Por isso, vemos médicos tentando manter a vida do paciente a qualquer preço, mesmo que isso implique em mais sofrimento para o doente.” Tal prática é conhecida como distanásia, conceito que significa o prolongamento da agonia na tentativa de adiar a morte e de conseguir uma sobrevida sem qualquer qualidade – em oposição à ortotanásia.
A equipe multiprofissional de Marco Tullio também prevê o atendimento domiciliar. “Faço o possível para que meus pacientes morram em casa, próximos dos familiares. Procuramos, assim, resgatar as noções de humanidade e dignidade na morte que a medicina contemporânea perdeu”, afirma ele. Outras unidades de cuidados paliativos estão sendo criadas em diversas regiões do Brasil, mas ainda existe resistência, mesmo entre os médicos, em falar de morte.
Num esforço para reaproximar o tema do cotidiano de crianças, adolescentes, adultos e idosos, a equipe do Laboratório de Estudos sobre a Morte, da USP, preparou uma trilogia de vídeos chamada Falando de Morte. Cada episódio é dedicado a uma fase da vida. E a morte é vista como uma das etapas da existência. O objetivo é estimular discussões sobre o assunto na escola, na família, nos hospitais. “Falar da morte é transformá-la em aliada, conselheira, em uma presença natural”, afirma Ingrid Esslinger, integrante da equipe. “Lidar com ela de modo saudável significa ter mais realizações, finalizar mais tarefas e pedir mais perdões ao longo da vida. Só assim se vive de modo mais pleno e se pode morrer mais serenamente, rompendo com o hábito de deixar certas decisões para amanhã, depois de amanhã e assim por diante.”
Na filosofia oriental, existem práticas específicas de preparação para a morte. A principal delas é a meditação, que tem o objetivo de domar a mente, a ansiedade e as emoções negativas sempre – mas especialmente no momento em que a pessoa se aproxima da morte. A maior tranqüilidade dos orientais em relação à finitude se expressa também no maior respeito em relação aos velhos. As pessoas que se encaminham para o final da vida são respeitadas, incensadas. E, não raro, têm suas existências festejadas. Não são tornadas invisíveis e indesejáveis, como ocorre com freqüência no mundo ocidental.
Uma das imagens utilizadas na meditação para caracterizar os instantes finais da existência é a de uma bela atriz sentada em frente ao espelho. O último espetáculo está prestes a começar. Ela retoca a maquiagem e repassa a sua fala antes de pisar no palco pela última vez. Está preparada para a apresentação derradeira. Esse é o objetivo da meditação: adquirir a capacidade de manter a mente tranqüila e o espírito sereno no momento da morte, independente de quando e de como ela aconteça.
Reconcilie-se com a morte. Não por morbidez, não para se esquecer de viver, não porque seja bom deixar de existir. Mas simplesmente porque ela vai acontecer e não somente com você – mas com todos os que andaram, andam ou venham a andar sobre a Terra. A você e a mim, portanto, resta apenas aprender a conviver com ela. Encará-la de frente, compreendê-la, admiti-la. Em vez de escamoteá-la, negá-la, escondê-la. E, quem sabe, assim, sofrer menos com a visita que ela nos fará um dia e com os eventuais sinais da sua presença que ela já tenha plantado ao nosso redor. Desejo uma excelente vida para você, leitor. E uma boa morte.

Para saber mais

NA LIVRARIA
A Arte de Morrer, Marie de Hennezel e Jean-Yves Leloup. Editora Vozes, Petrópolis, 1999
A Solidão dos Moribundos, Nobert Elias. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2001
Da Morte, Roosevelt Cassorla (org.). Papirus Editora, Campinas, 2001
Distanásia – Até Quando Prolongar a Vida?, Leo Pessini. Edições Loyola/Editora do Centro Universitário São Camilo, São Paulo, 2001
Memento Mori, Muriel Spark. Companhia das Letras, São Paulo, 2001
Morrer Não Se Improvisa, Bel Cesar. Editora Gaia, São Paulo, 2001
Morte e Desenvolvimento Humano, Maria Júlia Kovácz. Casa do Psicólogo, São Paulo, 1992
O Livro Tibetano do Viver e do Morrer, Sogyal Rinpoche. Editora Talento, São Paulo, 1999
Reflexões sobre a Vida e a Morte, Vera Lúcia Rezende (org.). Editora da Unicamp, Campinas, 2000

Fonte:http://super.abril.com.br/cotidiano/morte-442634.shtml

Uma nova morte

Ela era a única certeza que tínhamos na vida. Agora, os avanços da ciência estão criando dúvidas que nunca tivemos antes e revolucionando o jeito como encaramos a morte


Em 1993, a assaltante Trisha Marshall, de 28 anos, foi internada num hospital da Califórnia com um tiro na cabeça e grávida de 17 semanas. Na UTI, a falência do seu cérebro foi diagnosticada. Seguindo os padrões médicos e legais, Trisha foi considerada morta. Mas o corpo demoraria a sair do hospital. A pedido da família, os médicos optaram por mantê-lo respirando por aparelhos até que o filho nascesse. E ele nasceu. Foi dado à luz por mulher clinicamente morta havia 3 meses.
A história de Trisha mostra um avanço espetacular da ciência. Graças a aparelhos que reproduzem a função dos órgãos vitais, a medicina consegue manter funcionando, por tempo indeterminado, um corpo com quadro irreversível. Quanto mais olhamos para as conseqüências dessa novidade, porém, mais fica claro que ainda não aprendemos a lidar com ela. Como a pesquisa em células-tronco e o aborto exigem uma resposta sobre quando começa a vida, assunto da edição de novembro da Super, os avanços da medicina atingem a outra ponta do debate: um corpo que funciona é um corpo vivo? Quando exatamente morremos?
Basta lembrar as polêmicas que esquentaram 2005 para perceber os problemas causados pela dificuldade de responder a essa pergunta. Em março, a decisão sobre manter ou não a alimentação de Terri Schiavo, que vivia em estado vegetativo havia 15 anos, parou os EUA e envolveu do presidente Bush à Suprema Corte. Em Franca, interior de São Paulo, Jeson de Oliveira tentou na Justiça autorização para a eutanásia do filho, inconsciente e desenganado pelos médicos por causa de uma doença degenerativa. No cinema, os ganhadores do Oscar de melhor filme e melhor filme estrangeiro, Menina de Ouro e Mar Adentro, falam sobre a vontade de morrer. E dão a dica: a postura que adotamos diante da morte está passando por uma profunda e barulhenta transformação.
A história da morte
Dúvidas sobre o momento da morte surgiram no século 18, quando relatos de pessoas enterradas vivas assustavam a Europa. Em 1740, o anatomista francês Jacques-Bénigne Winslow publicou artigo levantando dúvidas sobre como comprovar que alguém estava de fato morto. E em 1785, o médico britânico William Tossach provou que um homem afogado (e dito morto) poderia ser ressuscitado ao encher seus pulmões de ar.
Nesse período foram inventados os mais bizarros métodos para verificar o óbito. A técnica do médico francês Jean Baptiste Vincent Laborde consistia em puxar a língua do defunto por 3 horas. Mais tarde, ele inventaria uma máquina à manivela que executava a tarefa. Para a elite da época, o medo de ser enterrado vivo justificava qualquer esforço. Hannah Beswick, que morreu no final do século 18, deixou uma generosa quantia para que seu médico não deixasse que a enterrassem por 100 anos. Todos os dias, ele e duas testemunhas examinavam o corpo embalsamado à procura de sinais de vida. Como nada acontecia, o médico transferiu o cadáver para um caixote, que ele abria uma vez por ano. E, quando morreu, passou a missão a outro médico. Somente em 1868 o corpo da senhora Beswick foi sepultado.
Mas a maioria dos médicos da época mantinha-se fiel à antiga técnica de verificação de morte: a putrefação. Na Alemanha, cidades construíam câmaras mortuárias onde os cadáveres eram vigiados e mantidos até começarem a apodrecer. Apenas em 1846 começaram a ser estabelecidos os critérios para determinar o fim da vida. Naquele ano, o francês Eugene Bouchut ganhou um prêmio da Academia de Ciências de Paris pelo “melhor trabalho sobre os sinais da morte e as formas de prevenir sepultamentos prematuros”. Sua proposta: observar durante 10 minutos 3 sinais da morte – ausência da respiração, dos batimentos cardíacos e da circulação. “Essa ficou conhecida como a tríade de Bouchut e passou a ser adotada pela medicina de um modo geral”, diz Marcos de Almeida, professor de medicina legal e bioética da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Foi assim que o coração ganhou status de órgão principal da vida e sua parada, uma indicação definitiva da morte.
Mas já no final do século 19 o legista Paul Brouardel verificou que o coração de pessoas decapitadas continuava a bater por até uma hora. Concluiu, então, que a morte não era uma questão de coração e pulmão, mas de sistema nervoso central. Ou seja, é impossível que um indivíduo sobreviva sem cabeça, ainda que seu coração funcione. A observação de dano ao sistema nervoso central foi somada à tríade: se, sob um forte feixe de luz, a pupila estiver dilatada, quer dizer que as funções neurológicas não existem mais. É sinal de morte.
Mortos-vivos
O último suspiro do batimento cardíaco como critério de vida aconteceu nos anos 50, com a fabricação dos respiradores artificiais. Em 1964, o Bird Mark 7 ficou famoso por ser o primeiro produzido em larga escala – o aparelho é usado ainda hoje nos hospitais públicos do Brasil. Ninguém duvida da importância do respirador: ele reduziu a mortalidade de recém-nascidos de 70% para 10% e foi o primeiro passo para a criação das Unidades de Terapia Intensiva, as UTIs, concluídas na década de 1970 com equipamentos que reproduzem a função de órgãos. Aparelhos de diálise substituíram os rins, aspiradores deram conta das secreções. As batidas do coração passaram a ser controladas por estímulos elétricos do marcapasso e reanimadas pelo desfibrilador. O conceito de morte ficou ainda mais bagunçado. “Os médicos se deram conta de que poderiam manter quase indefinidamente os pacientes com os aparelhos”, diz Marcos de Almeida. Mas a medicina sabia também que quem tivesse danos irreversíveis no cérebro ficaria para sempre na cama, inconsciente e dependente das máquinas. Por isso, alguém precisava determinar o que fazer com aquelas pessoas meio mortas, meio vivas. Em 1957, um grupo de médicos franceses foi ao Vaticano pedir ajuda. O papa Pio 12 respondeu 3 dias depois. “A morte não é território da Igreja”, afirmou no texto O Prolongamento da Vida. “Cabe aos médicos dar sua definição.”
Em 1968, um comitê foi formado na Universidade de Harvard para estabelecer critérios mínimos de morte. O grupo determinou que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte total. A idéia é que existe um ponto a partir do qual a destruição das células do tronco cerebral é de tal ordem que o indivíduo não tem mais como se recuperar. Esse momento engloba toda a atividade encefálica, não apenas lesões que deixam uma pessoa em coma ou inconsciente para sempre. Desde então, o padrão de Harvard vem sendo adotado pela maioria dos países, inclusive o Brasil.
A formação do comitê em 1968 não foi por acaso. Além da evolução dos aparelhos de suporte de vida, transplantes de rins estavam sendo realizados com sucesso e, meses antes, o primeiro transplante de coração havia sido feito na África do Sul. Diagnosticar a morte com o máximo de antecedência, portanto, possibilitaria manter tecidos e órgãos intactos. E viabilizaria os transplantes. Para entender o porquê, o melhor é acompanhar uma pessoa clinicamente morta desde sua chegada a um hospital até seu corpo ficar rígido e gelado.
Por dentro da UTI
Um jovem chega à UTI de um pronto-socorro com trauma de crânio causado por um acidente de carro. É um caso parecido com o que matou Ayrton Senna, em 1994. O paciente respira por aparelhos desde que foi atendido pela ambulância, mas os médicos logo se dão conta de que seu caso é irrecuperável. Mesmo assim, ninguém se atreve a dar o diagnóstico de morte cerebral. “Somente profissionais da neurologia podem protocolar esse tipo de óbito”, diz a neurocirurgiã Margarida Conceição, que diagnosticou mais de 300 casos assim.
Quando entra na sala, o neurocirurgião começa a buscar algum reflexo cerebral. O primeiro exame consiste no velho teste da sensibilidade das pupilas, seguido de uma puxada suave do tubo de respiração do paciente. Em pessoas com o cérebro ativo, essa ação provoca tosse ou vômitos. Depois, o médico faz o teste dos “olhos de boneca”, virando a cabeça para o lado para ver se os olhos acompanham o movimento ou ficam parados, como se fossem de brinquedo. Outro exame é ainda mais estranho: colocar soro gelado em um dos ouvidos do paciente. Se os olhos desviarem para o lado contrário da água, ainda existe algum sinal de vida cerebral. Se nenhuma das tentativas der resultado, passa-se ao teste de apnéia: o médico desconecta o ventilador que mantém a respiração para ver se há tentativa de buscar ar por conta própria. Se a taxa de oxigênio no sangue começa a baixar, os médicos rapidamente reconectam o aparelho. Mas certos de que o tronco encefálico, responsável pelo ato involuntário da respiração, não funciona mais.
Pausa. Apesar de realizado em todo o mundo, o teste de apnéia é contestado por algumas vozes. O exame, exigido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) para a comprovação de falência encefálica, é apontado como capaz de causar a morte em vez de diagnosticá-la. Diversos estudos, como o trabalho publicado por uma equipe da Universidade do Estado de Nova York na revista Archives of Neurology, apontam os riscos da apnéia, que poderia provocar queda de pressão, reduzindo o fluxo sanguíneo no cérebro e, eventualmente, matando pacientes recuperáveis. E mesmo defensores do teste de apnéia reconhecem que não há consenso sobre o exame, como mostrou estudo do holandês Eelco Wijdicks publicado na revista Neurology. Mas os argumentos são contestados pelo CFM. “Os critérios em uso correspondem aos conhecimentos científicos atuais”, diz Solimar Pinheiro da Silva, coordenador da comissão do CFM que elaborou a resolução sobre morte encefálica. “O teste é o último a ser feito. O paciente é monitorado todo o tempo e recebe oxigênio na traquéia.”
Além da apnéia, há exames toxicológicos: é preciso ter certeza que o sistema nervoso não está em pane pela ingestão de álcool, barbitúricos ou analgésicos. Também é feita uma angiografia, a radiografia de 4 vasos cerebrais em busca de algum fluxo sanguíneo. Se as respostas são negativas, o trabalho do neurocirurgião está encerrado, mas não, ele ainda não pode assinar o óbito dizendo que o jovem do carro está morto. Pela lei, todo o procedimento tem de ser repetido pelo menos 6 horas depois. Enquanto isso, a polêmica continua.
“O único propósito do atual diagnóstico de morte cerebral é obter órgãos viáveis para transplante”, diz o anestesista britânico David Hill, que participou do encontro Sinais da Morte, promovido em fevereiro pela Academia Pontifícia de Ciências, no Vaticano. O simpósio patrocinado pela Igreja aconteceu como parte de uma tentativa de discutir o conceito de morte cerebral criado pelo comitê de Harvard. Para Hill, os atuais critérios de diagnóstico não são benéficos ao paciente, mas apenas para o receptor dos órgãos – ele preferiria ver a apnéia substituída pela hipotermia, que resfria o corpo para 33 ºC por até 24 horas na tentativa de recuperar alguma atividade cerebral. Esse tratamento, porém, é considerado caro, pode deteriorar a qualidade do órgão que será doado e tem a eficácia colocada em dúvida pela maioria dos médicos.
Quando a repetição do exame também apontar morte encefálica, um grupo especializado em falar com famílias sobre a doação de órgãos é destacado para o caso. Se os parentes concordarem, médicos voltam para a UTI, onde o corpo, legalmente morto há algumas horas, respira por aparelhos, tem o coração batendo e órgãos vitais perfeitos. Aquela pessoa nunca mais vai sentir, ver ou ter algum traço de pensamento racional, mas, quando o bisturi penetrar na pele, é possível que ela dê um pulo. Parece filme de terror, não? Trata-se do “efeito lazaróide” (de Lázaro, aquele que Jesus ressuscitou). Não significa que a pessoa teve alguma dor: é apenas um reflexo da medula espinhal. Por isso, alguns médicos costumam aplicar anestesia geral antes da operação. Mas peraí: se a pessoa já está morta, por que anestesiá-la?
Em 2000, a revista do Royal College of Anaesthetists, de Londres, recomendou usar anestesia em pacientes com morte encefálica. No Brasil, entretanto, essa prática não é costume. “Doadores de órgãos não precisam de anestesia, pois estão em coma aperceptivo, arreativo e irreversível”, diz Maria Cristina Ribeiro de Castro, vice-presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos. Quando um anestesista participa da operação, é para manter a saúde dos órgãos. “Ele se concentra na hidratação, oxigenação, pressão arterial e sobretudo nos hormônios que ativam os órgãos e que, com a morte encefálica, a hipófise deixou de produzir”, diz Elias David Neto, supervisor da equipe de transplante de rins e pâncreas do Hospital das Clínicas de São Paulo. “É como operar um paciente comum, mas que não sente dor.”
Após a retirada dos órgãos, os aparelhos são finalmente desligados. O sangue começa a parar, o coração dá as últimas batidas, as células deixam de se reproduzir. Depois de 3 horas, ainda é possível fazer um braço se contrair com estímulos elétricos. Só então o corpo do jovem que se acidentou com um carro fica duro, pálido e frio, aquilo que as pessoas geralmente aceitam como morte.
Diante do fim
A discussão para determinar a morte existe também quando não há órgãos em jogo, mas o fim da vida é apenas questão de tempo. Trata-se da antiga polêmica da eutanásia. Mas em casos assim, as questões técnicas viram um difícil dilema moral. É correto deixar de socorrer um bebê que ainda respira? O valor sagrado da vida existe mesmo quando só possibilita mais sofrimento? Devo ajudar a matar meu irmão que não quer ficar para sempre imóvel numa cama? A questão é especialmente difícil para os médicos. São profissionais que passam 7 anos aprendendo a lutar contra a morte para descobrir, na UTI, que às vezes devem agir a favor dela. “Ficamos entre duas opções: sermos assassinos ou torturadores”, diz Almeida, da Unifesp.
A lei no Brasil encara como homicídio a eutanásia, o ato deliberado de apressar o fim de quem está morrendo. A ortotanásia, a “morte no momento certo”, é considerada omissão de socorro e tem pena de 1 a 6 meses de prisão. Apesar disso, a ortotanásia é freqüentemente praticada. O médico retira os aparelhos e deixa o doente seguir seu curso de morte. Trata-se do modo mais comum de se morrer nas UTIs pediátricas do país. Dois estudos publicados em março pela Revista Brasileira de Pediatria, sobre 167 casos ocorridos em 2002 nas principais UTIs pediátricas do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, mostram que pelo menos 36% das crianças morreram após a “limitação do suporte de vida”, expressão que reúne decisões como não entubar, não reanimar e até retirar o suporte vital.
O estudo observou que pelo menos 30% desses casos são omitidos ou reportados contraditoriamente nos registros dos hospitais. Mas há quem veja na própria legislação fundamentos para apressar a morte quando o tratamento só prolonga o sofrimento. “O 1º artigo da Constituição assegura a dignidade da pessoa humana”, afirma Lívia Pithan, professora de Direito da PUC-RS. “Esse direito deve ser estendido até os últimos momentos. Casos como o de Terri Schiavo poderiam ter esse tratamento legal.” A chamada “obstinação terapêutica”, ato de prolongar o tratamento sem benefícios ao paciente, é condenado até pela Igreja. Na mesma alocução de 1957, Pio 12 afirmou que, “quando houver desesperança, os médicos não devem se valer de instrumentos extraordinários para prolongar indefinidamente a vida”.
Mesmo com amparo legal e religioso, ainda faltam critérios para estabelecer quando é lícito suspender o suporte de vida. Em julho, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo propôs resolução considerando ético limitar ou suspender procedimentos que prolonguem a vida do doente terminal. “Queremos que os médicos discutam com a família, assim como quando vão realizar uma cirurgia, a questão da morte”, diz Reinaldo Ayer de Oliveira, conselheiro responsável pela resolução. Hoje, em somente 9% dos casos a família é informada antes do desligamento dos aparelhos.
Como ainda não se sabe direito o que é certo ou não, a questão acaba sendo resolvida por um fator bem prático: grana. Dependendo se o plano de saúde estiver ou não pagando a diária da UTI, a recomendação da família pode mudar de “doutor, faça o possível para mantê-lo vivo” para “só queremos que ele não sofra mais”. O dinheiro também influencia a decisão dos médicos. Se o paciente atendido por um convênio estabiliza em estado vegetativo, é comum ser encaminhado para casa, o que a família nem sempre recebe como boa notícia. Será preciso alguém sempre por perto para dar banho, retirar as fezes e secar a pele com lâmpadas para evitar escaras. “A época em que os pacientes em coma mais infeccionam, precisando voltar ao hospital, é o Natal”, diz Margarida. “Muitas pessoas largam o paciente no hospital, desligam os telefones e só voltam depois do Ano Novo.”
Morrer com qualidade
Imagine a cena. Desenganado pelos médicos, sabendo que tem câncer por todo o corpo, você adquire doses letais de barbitúrico. Vai para casa e espera o tempo passar. Quando a dor ficar insuportável, antes de não conseguir mais ficar em pé, você reúne família e amigos, coloca as músicas preferidas e desfruta um bom jantar. Depois, toma o veneno que guarda há meses e dá adeus ao mundo.
Mortes assim já acontecem 3 vezes por mês no estado de Oregon, EUA. Desde 1997, uma pessoa em estado terminal pode receber instruções sobre como praticar suicídio quando a dor for insuportável. Esse caso é exemplo de um debate que cresce: a qualidade de vida do paciente e da família durante a morte. “Saber que a morte está próxima pode, sim, ser encarado como uma vantagem”, afirma o psicólogo hospitalar Cedric Nakasu. Se conseguir aceitar o prognóstico dos médicos e parar de lutar desesperadamente contra a morte, a pessoa pode aproveitar o tempo que lhe resta resolvendo problemas pendentes e se despedindo. Tendo uma morte serena. “O paciente tem chance de recordar, reviver e ressignificar seu passado. Esses 3 ‘erres’ definem uma boa morte”, diz Nakasu.
A idéia de qualidade de vida nos momentos finais também foi influenciada por outra constatação. Baseada em entrevistas com dezenas de pacientes terminais, a psiquiatra americana Elisabeth Kübler-Ross concluiu que a maioria deles sofre, além da dor física, com a separação da família, problemas financeiros, vergonha e até inveja de quem não está doente. “Num hospital, a pessoa deixa de ser ela mesma, de ter suas coisas, roupas e funções para se tornar apenas um paciente, tendo que obedecer regras, horários para dormir e comer que não são os seus”, diz Nakasu.
É por isso que muita gente prefere ficar em casa com a família a ganhar uns dias ao lado de outros doentes, equipamentos e enfermeiras. No Brasil, alguns estados já traçam leis nessa direção. Em São Paulo, o paciente terminal pode decidir quando e onde quer morrer. Uma lei sancionada pelo então governador Mário Covas em 1999 estabelece o direito de um doente recusar o prolongamento de sua agonia e optar pelo local da morte. O próprio Covas, que morreu de câncer, beneficiou-se dessa lei. O papa João Paulo 2º fez a mesma escolha. Silenciado pelo mal de Parkinson, morreu em seu apartamento no Palácio Apostólico.
Enquanto a retirada de aparelhos e o direito de arbitrar sobre a própria morte começam a ser considerados normais, a eutanásia permanece um tabu no Brasil. Não que ela não aconteça. “Muitos médicos, diante de pacientes terminais que sofrem dores atrozes, aplicam sedativos acima do limiar tóxico, sabendo que isso resultará em morte”, diz Almeida, da Unifesp. “Mas isso, é claro, nunca aparece nos registros.” Em alguns casos, a ação de matar o paciente produz menos sofrimento que o ato de não prestar socorro. O caso da americana Terri Schiavo é o melhor exemplo. Após os tribunais americanos decidirem pela retirada dos tubos de alimentação, Terri levou 13 dias para morrer de fome e de sede. “Seria bem mais ético aplicar uma injeção letal para reduzir não o sofrimento dela, que era incapaz de sentir, mas da família e dos médicos que a trataram por tanto tempo”, afirma Almeida.
Essa opinião toca num ponto crucial da cultura cristã: sempre preferimos omissões a ações. Em vez de aplicar uma injeção letal para acabar com a vida de um doente irreversível, achamos mais ético retirar seus aparelhos e deixar que ele siga seu curso “natural”. “Qual a base ética dessa distinção?”, pergunta o filósofo australiano Peter Singer, no livro Rethinking Life and Death (“Repensando a Vida e a Morte”, sem edição brasileira). “Tendo optado pela morte, devemos nos certificar de que ela se dê da melhor maneira possível.”
Publicado em 1994, o livro defende que nossos fundamentos éticos não estão adaptados ao mundo real. E que o valor sagrado atribuído a qualquer vida humana, um dos traços mais forte da nossa cultura, está se diluindo em favor de uma vida com menos sofrimento. Por exemplo: costumamos afirmar que a vida começa se não na concepção, algumas semanas depois dela. Mas podemos concordar com interromper essa vida para evitar o sofrimento de um feto anencéfalo e de sua mãe ou com a pesquisa de embriões se a pesquisa com células-tronco fizer aleijados andar.
Segundo Singer, esse jeito de pensar está fazendo parte das decisões diárias sem nos darmos conta. Em vez das regras tradicionais como “não matar” ou “crescei e multiplicai-vos”, médicos, doentes e familiares estão preferindo “responsabilize-se pelas conseqüências de seus atos” e “respeite o desejo de viver e morrer”. Ou seja: o caráter sagrado da vida pode estar ruindo. Se Singer estiver certo, discussões sobre o começo e o fim vão continuar. Mas ao menos será mais fácil entender por que vida e morte, as duas questões fundamentais do ser humano, estão causando tanta polêmica.
Revolta
Tudo o que Heiner Schmitz, 52 anos, queria era falar sobre sua situação. “Ninguém questiona como me sinto”, disse semanas antes de ser vítima de um tumor. “É frustrante ver todos evitando o assunto. Será que não entendem? Eu vou morrer!”
Mágoa
Waltraud Bening queria morrer em casa, mas o marido não concordou com a situação. Magoada, se internou e proibiu o companheiro de visitá-la. Um dia, mandou que chamassem o marido. Ele veio. E ela morreu na manhã seguinte.
Silêncio
É difícil saber o que se passou na cabeça de Michael Föge nos últimos dias de sua vida. Um tumor cerebral lhe tirou a capacidade de falar. Silenciosamente, ele definhou até que, em 12 de fevereiro de 2004, não acordou mais.
Surpresa
Seis meses antes de morrer, o contador Wolfgang Kotzahn ficou sabendo que tinha um carcinoma. “Foi um choque. Nunca havia contemplado a idéia de morrer. Agora vejo tudo com uma perspectiva diferente. Tudo é importante."
Leveza
Michael Lauermann era workaholic até que desmaiou no trabalho. Descobriu que tinha tumor cerebral inoperável. Aproveitou a situação com gosto – livre e leve, como se não tivesse peso na vida. Morreu 6 semanas após o diagnóstico.
Recusa
Mesmo ciente de que uma doença incurável lhe deixava pouco tempo de vida, Iara Behrens não queria encarar a morte iminente. “Tenho esperança de melhorar. Acabo de comprar uma geladeira nova. Se ao menos eu soubesse...”
Histeria
Ursula Appeldorn tinha um histórico de distúrbios mentais. No dia em que soube que iria morrer começou a gritar e assim ficou por dias. Num raro momento de lucidez, concordou em se internar numa casa para pacientes terminais.
Serenidade
Maria Hai-Anh Tuyet Cao, 52 anos, não temia a morte. Pelo contrário: preparava-se para o momento todos os dias enquanto seus pulmões perdiam força. “Abraço a morte. Ela não é eterna. Quando nos encontramos com Deus, nos tornamos belos.”
Culpa
Mãe de 4 filhos entre 7 e 15 anos, Beate Taube dizia que a pior parte de enfrentar a morte era deixar os filhos para trás. “Fico triste em saber que não estarei aqui para apoiar minhas crianças. Digo a elas 100 vezes por dia o quanto as amo.”

Os diferentes estágios do coma

Estado de Coma
A inconsciência é causado por danos na substância reticular ativadora, que regula nosso despertar. São os neurônios dessa substância que nos fazem acordar com toques ou ruídos. Em tipos leves de coma, a pessoa fica agitada, suando, emitindo grunhidos e tem delírios.
Coma profundo
Nesse estágio, nem mesmo estímulos dolorosos afetam o organismo. Dependendo da lesão, o paciente pode até manter sentidos, como a audição, mas dificilmente entenderá o que ouve.
Estado vegetativo
O paciente tem danificado o córtex, a “casca” do cérebro, região responsável pelo raciocínio, movimentos voluntários e sentidos. Não voltará a sentir, ter memória ou consciência de si, mas a atividade automática do corpo continua normal. Os olhos mantêm-se abertos, há respiração e até choro involuntário. A americana Terri Schiavo ficou assim durante 15 anos.
Coma irreversível
É causado por lesões encefálicas irrecuperáveis . Danifica movimentos voluntários e o funcionamento automático do corpo, que não recebe mais ordens para fazer funcionar atividades vitais, como a respiração. Nesse caso, a pessoa viverá para sempre sem consciência e com a ajuda de respiradores artificiais. Trata-se do que hoje se conhece como “morte cerebral”.
Pseudocoma
Tetraplégico e com paralisia de movimentos da faringe e da face, o paciente consegue apenas abrir as pálpebras e mover os olhos. Mas permanece acordado e em plena consciência, com a substância reticular ativadora intacta. Conhecido também como “síndrome de encarceramento”.

O longo caminho da morte

1) Morte do cérebro
Se o sangue deixar de fluir no cérebro por mais de 4 minutos, os neurônios do córtex param de funcionar e a pessoa deixa de sentir e pensar. Depois, o tronco cerebral entra em pane. Sem ele, cessam os movimentos involuntários do corpo – principalmente a respiração.
2) O coração pára
Com ajuda de um respirador, o coração pode ser mantido batendo e o sangue circulando. E apesar de clinicamente morto, o paciente pode suar e reagir a cortes. Mas se os aparelhos forem retirados, coração e respiração param.
3) As células estancam
O sangue pára de circular e as células deixam de se reproduzir. Cabelo, barba e unhas interrompem o crescimento.
4) O fim dos órgãos
Com o fim da circulação, o sangue começa a coagular nos órgãos e tecidos, deixando-os inviáveis para transplantes. Algumas exceções: as córneas, que podem ser retiradas até 3 horas, e os ossos, que resistem até 6 horas após o fim da respiração.
5) O cadáver
Cerca de 3 horas após a parada cardíaca, o corpo toma o aspecto conhecido como morte. O fim da circulação deixa a pele pálida. O sangue estaciona, produzindo a rigidez cadavérica, que começa no pescoço e termina nos pés. O calor do corpo cai cerca de 1 0C por hora, até ser regulado pela temperatura ambiente.
6) O esqueleto
O corpo começa a se comportar como um objeto físico. A membrana das células não funciona mais e o cadáver começa a perder água. Dezoito horas depois da parada cardíaca, as bactérias começam a decompor o cadáver e iniciam a putrefação. Depois de 8 semanas, resta apenas o esqueleto.

Antes e depois

As fotos que ilustram esta matéria foram feitas pelo alemão Walter Schels. Ao lado da repórter Beate Lakota, Schels retratou doentes terminais que concordaram em ser fotografados nos últimos momentos de vida e logo após a morte. As fotos viraram exposição, foram premiadas no concurso da agência World Press Photo e publicadas no livro Noch Mal Leben vor dem Tod (“Viver Novamente Antes da Morte”), editado somente na Alemanha.

Para saber mais

Ética Prática - Peter Singer, Martins Fontes, 1994
Sobre a Morte e o Morrer - Elizabeth Kübler-Ross, Martins Fontes, 1981
www.bioetica.ufrgs.br
 
Fonte:http://super.abril.com.br/ciencia/nova-morte-446150.shtml

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