A BELA ADORMECIDA E SEDUÇÃO - ADELIA PRADO



A Bela Adormecida

Estou alegre e o motivo beira secretamente à humilhação, porque aos 50 anos não posso mais fazer curso de dança, escolher profissão, aprender a nadar como se deve. No entanto, não sei se é por causa das águas, deste ar que desentoca do chão as formigas aladas, ou se é por causa dele que volta e põe tudo arcaico, como a matéria da alma, se você vai ao pasto, se você olha o céu, aquelas frutinhas travosas, aquela estrelinha nova, sabe que nada mudou. O pai está vivo e tosse, a mãe pragueja sem raiva na cozinha. Assim que escurecer vou namorar. Que mundo ordenado e bom! Namorar quem? Minha alma nasceu desposada com um marido invisível. Quando ele fala roreja quando ele vem eu sei, porque as hastes se inclinam. Eu fico tão atenta que adormeço a cada ano mais. Sob juramento lhes digo: tenho 18 anos. Incompletos.



Sedução

A poesia me pega com sua roda dentada, me força a escutar imóvel o seu discurso esdrúxulo. Me abraça detrás do muro, levanta a saia pra eu ver, amorosa e doida. Acontece a má coisa, eu lhe digo, também sou filho de Deus, me deixa desesperar. Ela responde passando a língua quente em meu pescoço, fala pau pra me acalmar, fala pedra, geometria, se descuida e fica meiga, aproveito pra me safar. Eu corro ela corre mais, eu grito ela grita mais, sete demônios mais forte. Me pega a ponta do pé e vem até na cabeça, fazendo sulcos profundos. É de ferro a roda dentada dela.

Adelia Prado

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