O BUDISMO E A CONDIÇÃO HUMANA - Jamgon Kongtrul Rinpoche

Jamgon Kongtrul III300x275



















“O budismo não é um fenômeno cultural. Não é do Oriente nem do Ocidente. O budismo é essencialmente chegar a ver as coisas como tal. O budismo é basicamente compreensão, e todas as pessoas têm essencialmente o potencial para praticar a sanidade absoluta. Neste sentido, o budismo não é uma crença de indivíduos ou grupos. É uma correlação do conhecer com a experiência baseada no potencial dos próprios seres.
Os ensinamentos budistas têm a capacidade de adaptar-se a qualquer contexto cultural. A razão disto é que baseiam-se na natureza fundamental dos seres e coisas. No que diz respeito à abordagem filosófica do budismo, esta está além de qualquer forma. Está na compreensão de ser transcendente à forma.
A verdade está além da forma. A verdade condicionada está sujeita à mudança e, assim, está aquém do absoluto. Não podem subsistir duas verdades absolutas, pois então não haveria a verdade absoluta.
Quando passamos da abordagem filosófica chegamos na verdade experienciada. Quando falamos de verdade e realização não estamos falando de especulações e imaginação. Não se trata de uma crença do tipo “isto deve ser assim”, mas a experiência fala por si mesma.
Quando integramos a verdade filosófica à prática, isto envolve métodos específicos e práticas que aplicamos na vida diária em relação a nossa conduta externa e intenções mentais. Estes métodos, no contexto da nossa realidade relativa, estão relacionados às formas A prática assume uma forma e gera a tradição, passando a ser vista como uma crença religiosa.
Vamos discutir alguns aspectos da visão budista. Todos nós, seres sensoriais, desejamos nos libertar do sofrimento e da dor. Com este sincero desejo de libertação nos dedicamos a todas as atividades, e tudo a que nos dedicamos visa a libertação de mais sofrimento.
Enquanto prosseguimos nossas vidas, é difícil e raro que consigamos o que buscamos: ser feliz com o que atingimos. Tão pronto chega-se a algo, há felicidade superficial e, por trás disto, impossibilidade de satisfação. Quanto mais temos, mais insatisfeitos nos sentimos, ou seja, há a ausência de um sentido de moderação. A mente, por seus hábitos, não conhece limites, e daí mais e mais sofrimentos decorrem. Assim, o sofrimento é contínuo. Isto não são palavras, mas é experiência.
Como não realizar a liberdade se a procuramos? A questão é que nossa abordagem é confusa com respeito ao sofrimento. Nossa abordagem é ficar livre do sofrimento, mas não sabemos como encontrar o conhecimento de olhar internamente a causa do sofrimento. Quando nos libertamos da prática externa e da experiência do sofrimento, nos libertamos só na superfície, sem tocar no aspecto fundamental. O que fazemos é tentar evitar a experiência do sofrimento. Temos a noção de que o sofrimento é algo errado, algo externo, e tentamos ficar afastados tanto quanto possível. A fuga não dá frutos sem que se localize a causa deste sofrimento, e sem dela nos libertarmos não nos libertaremos de sua experiência. É equivocado pensar em afastar-se da experiência sem afastar-se da causa.
É uma visão errada colocar o sofrimento como algo externo, como originado de fora. O sofrimento depende de circunstâncias externas, mas estas não são a causa-em-si do sofrimento. Quando permitimos que o exterior nos influencie, isto é uma permissão.
O primeiro discurso do Buda Sakiamuni foi justamente sobre a questão do sofrimento:

1- Entender o sofrimento, chegar a esta compreensão. Buscar entender a verdade do sofrimento em lugar de buscar a eliminação do sofrimento. Compreender a verdade do sofrimento. Mas o que é compreender a verdade do sofrimento? Compreendendo a verdade do sofrimento pode-se chegar à causa do sofrimento. O sofrimento não acontece apenas, mas tem uma origem. A natureza é dependente de causas; não há resultado sem causas.
2- A causa do sofrimento pode ser eliminada. A causa do sofrimento é um conflito de emoções e karma; tendências várias agrupadas. Karma, ignorância e hábitos são inseparáveis. Ignorância, no budismo, significa a crença em um ego independente. Devido a isto, há a fixação referencial aos outros. Devido à forte crença na dualidade eu-outro, há a permanência da separação sujeito-objeto e o dualismo de eternalismo versus niilismo.
Nossa tendência normal é crer que as coisas existem permanentemente (o que é o eternalismo), mas nada é permanente, e quando há mudança, isto nos perturba pois cremos no permanente. A realidade do mundo nos confronta. Assim, não é a mudança que traz o sofrimento, mas é a crença no eternalismo. Isto traz o sofrimento até nós. Os fenômenos existem interdependentemente. Tudo existe assim, e o que é interdependente não é permanente. A outra alternativa seria o niilismo, a inexistência de tudo.
Criado o conflito do eternalismo versus niilismo, estamos, de qualquer maneira, presos à dualidade. Portanto, geramos o sofrimento tanto de um extremo como do outro. Esta noção dual de sujeito-objeto nos induz ao surgimento de atividades mentais como agressão, raiva, desejo, apego, ignorância, ciúme, etc…
Nos ensinamentos do Buda falamos de cinco tendências que geram o sofrimento. Estas tendências são o karma. Karma é o potencias de chegar a frutificar em resultados. Devido a estas tendências que falamos, atuamos de modo confuso, agimos de forma nociva com o corpo, palavra e mente, o que conduz a uma maior acumulação de tendências e karma. Quanto maior a acumulação, mais ações nocivas ocorrem e, sem qualquer controle, caímos em um ciclo vicioso auto-criado.
Temos a crença que somos seres humanos e, então, espertos. Controlamos nossa vida, decisões, etc., e gostamos de crer que fazemos coisas pela nossa vontade. Se nosso desejo é viver mais e mais sofrimento, então nossas decisões estão corretas.
Nossas visões não vêm de compreensão correta, mas de nossas distrações. Somos completamente atraídos e envolvidos pelas nossas tendências e distrações. Um exemplo disto: a raiva. Ninguém deseja ficar zangado e com raiva; como se chega a isto sem desejar e sem controle? E o controle que pensávamos ter? Quando estamos com raiva e perturbados, todos os tipos de bobagens são ditas, tantas e tais coisas que nem sabemos o que falamos, o corpo treme…Quando isto passa, olhamos para trás, vemos com inteligência, e muitas vezes dizemos: não foi correto. Fica claro que não queríamos dizer o que dissemos, fazer o que fizemos, e nos aborrecemos por isso. Quem já viveu isso não diz ter sido bom. Não é feito sob o nosso controle. Não só nossa vivência de raiva veio e perturbou, mas seres humanos outros nos diriam, “fiquei muito assustado com sua raiva”.
Nossa experiência de sofrimento surge da experiência de uma mente confusa, e esta, da experiências de hábitos confusos. Segundo a tradição budista, se não somos capazes de examinar e gradualmente ganhar liberdade frente às tendências habituais da nossa mente, nunca vamos nos libertar do sofrimento e insatisfação. Arranjar as coisas externamente não vem ao caso. As circunstâncias externas e nossa reação são projeções mentais nossas. Para alguém libertar-se dessas tendências habituais, a ênfase é desenvolver a estabilidade da mente e daí a mente consciente e atenta, sem a qual não temos controle.
Para experimentar uma maior estabilidade da mente consciente e atenta, pratica-se a meditação. Meditação é o desenvolvimento de práticas e hábitos da mente que conduzem a mais e mais familiaridade com a estabilidade e clareza desta mente. Assim, a palavra budismo significa o caminho internalizador, significa voltar a atenção para o interior e examinar a mente, e operar com ela para dentro. Aí a questão, por acreditarmos que o problema é externo, equivocadamente o vemos lá fora.
Na tradição existem vários estágios, de acordo com as necessidades e capacidades das pessoas, e um destes é especialmente importante: a estabilidade e clareza da mente. Existimos para isto. E só após este grande trabalho é possível compreender a importância de desenvolver um coração suave e bondoso e, reconhecendo a própria capacidade – bodicita, voltar-se aos outros.
É importante para os indivíduos compreender que a fonte do sofrimento é interna. O potencial para a libertação está também dentro. Sem controle nada podemos fazer e nada merecemos. Na verdade, temos a capacidade de iluminação total. A essência do ensinamento do Buda Sakiamuni é esta: não devemos cometer nenhuma ação nociva, devemos evitar o egoísmo e evitar de ferir os outros por palavras, ações ou pensamentos.
Não permita que sua mente seja dominada pelas emoções cegas (kleshas, nyon-mongs). É preciso perseverar na prática da ação completamente sã e, através da compaixão, fazer o que os outros precisam. Abandonar o nocivo, praticar a sanidade. Praticar a mente totalmente descondicionada. Praticar a total não-agressividade e a bondade e suavidade libertas. Alcançar este estado é o ensinamento do Buda e sua experiência.
Para concluir: É ótimo que pratiquem a meditação. Sentem com vocês mesmos em lugar de sentar com os outros. Conhecer-se melhor, já que é com cada um que cada um vive e não com o outro. Surpresas agradáveis terão. Somos mais agradáveis e temos mais recursos do que imaginávamos. O Buda e a iluminação não estão fora, nem temos que aguardar ajuda externa mas apenas vivenciar o próprio potencial. É nossa responsabilidade conhecermo-nos melhor. Existem oportunidades de ajuda e apoio não apenas para ajudarmos a nós mesmos, mas quanto melhor nos sentirmos, mais generosos e bons seremos com os outros. Qualquer um, usando inteligência e método, terá êxito.”

Fonte: Vanessa Leite-
http://bodisatva.com.br/

Comentários