DESERTOS - LUCIANA MARINHO

 
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Herberto Helder

Três crianças vivem comigo. A primeira tem um entrançado de silêncio nos cabelos e um vestido que a deixa com frio. A segunda atrai libélulas e outros seres diminutos. Corre juntamente com as folhas quando a terra é levantada pelo vento. A terceira eu nunca vejo bem, porque tem gosto pelo escuro. Elas falam entre si e sabem que descendem da morte e da vida. Existem porque os abismos se rondam e se cruzam. Vejo-as em tempo de chuva, quando se escondem por trás dos móveis e delas escapa luz. Elas brincam com as sombras. Ficam quietas quando ouvem gritos pela casa, o que me fez pensar que talvez entendessem o que eu dizia. Mas não falavam comigo porque não queriam. Depois descobri que não precisam. Meu modo de ser não as interessa. Minhas saídas ao trabalho, o jogo de cartas, os negócios resolvidos no terraço. Nesses momentos, elas dormem ou brincam na cristaleira. Mas quando eu passeio com os cães ou cuido das plantas, elas saltam e somem entre as laranjeiras, brincando com os sentidos e com a natureza. Deixam marcas pela casa, algumas garatujas e redesenhos de mapas. À medida que a presença delas fica mais frequente, começo a perceber que os móveis de minha casa são muito antigos e sem conservação. Os panos cheiram a mofo. Os porta-retratos têm as fotos retiradas. Não há pratos, talheres ou copos sujos em nenhuma hora do dia. Começo a duvidar se meu mundo não é uma lembrança. Grito: vocês me vêem? vocês me vêem? vocês me vêem? A terceira criança sai do escuro e me mostra as raízes minúsculas do sol.


Colagem e Palavras
Luciana Marinho

Comentários